Sendo a temática do retrato uma produção clássica e recorrente na história da arte e, tendo essa sido muito explorada ao longo do tempo, como seria possível avançar sobre o que já foi feito e transgredir sobre a representação retratista no período contemporâneo? O valor de um retrato nos tempos atuais é outro. “As redes sociais, os sites de relacionamento e até mesmo os sites de notícias abrem espaço para que se apresente nossa identidade de forma distinta, redesenhando a ideia tradicional de retrato”1 . Muitos artistas hoje em dia tem provocado essa questão e proposto novas maneiras de associarem identidade a um indivíduo. Um exemplo disso é o artista visual Eduardo Montelli, mestrando em artes visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que desenvolve seu projeto poético sobre a divagação da identidade própria e social, através da apropriação de recursos bastante atuais.
Em seu trabalho intitulado Lemonade, Montelli organiza um sistema apoiado pelas ferramentas virtuais de construção de sua identidade, transmitindo-a através de uma seleção de imagens coletadas e atribuídas por ele mesmo. O universo imagético de signos que é edificado pelo artista é visualizado através do processo de busca de palavras do Google. Ao digitar seu próprio nome no campo de pesquisa, surge um conjunto de referências visuais que o ilustram, sendo esse agrupamento de imagens resultadas da pesquisa o efeito de uma manipulação efetuada pelo próprio artista.
Não procuro apresentar uma essência identitária e sim um processo de investigação e de acumulação de múltiplos signos que de alguma forma fazem parte da minha formação como indivíduo e como artista. [...] não procuro signos que dizem respeito apenas a minha experiência individual, mas que sejam, principalmente, da cultura de massa. [...] neste projeto, as noções de autorretrato e de identidade, apesar de fazerem parecer que estou querendo falar sobre a minha identidade como artista e indivíduo, são trabalhadas conceitualmente de maneira problematizadora, questionadora e desconstrutiva. (MONTELLI, 2013).
É interessante perceber a associação de seu trabalho com a ideia de retrato. Mesmo não se tratando de uma representação física da sua pessoa, as imagens apresentadas caracterizam sua pessoa e suas indagações como artista. Além disso, Eduardo Montelli se apropria dos meios tecnológicos de hoje para provocar uma discussão sobre a transformação do caráter do indivíduo e da sociedade atual como um todo. Como já havia colocado Hal Foster (1985), crítico e historiador de arte, o artista contemporâneo torna-se mais um manipulador de signos do que um produtor de objetos de arte, atuando no sentido de ressignificar conteúdos existentes e, através deles, instigar novas conceituações. O uso de uma plataforma digital não apenas marca a “contaminação mútua” entre “práticas artísticas” e “práticas do cotidiano” (MONTELLI, 2012), como também aponta para uma possível associação entre o caráter virtual, potencial e não real que uma identidade pode assumir. Ademais, o processo criativo construído através da rede da internet invoca novas possibilidades para o discurso em arte, quebrando com os suportes tradicionais. “A arte multimídia suscita novas questões sobre suas estruturas materiais e temporais que por si só já quebram com o horizonte do discurso habitual da história da arte” (BELTING, 2009).
Além de Montelli, podemos lembrar outros artistas que desenvolvem uma poética visual apoiada nos suportes virtuais e que utilizam a rede digital como um dos meios de elaboração e de apresentação de seus trabalhos artísticos. É o caso do francês Jean-Benoît Lallemant, que também se apropria do sistema de busca de palavras oferecido pelo Google como mecanismo de estudo sobre o repertório visual que percorre pelas distintas localidades. Em seu trabalho Encyclopedia, Lallemant executa a busca do termo “arte contemporânea” no sistema do Google, buscando perceber a definição visual que esse termo leva nos mais diferentes países, do ocidente ao oriente. O artista então recolhe essas informações e as apresenta através de uma publicação editorial que traz o aspecto de enciclopédia; um dicionário visual sobre as variadas concepções da arte atual.
Para ambos os artistas, as imagens substituem conceitos. No entanto, tanto Eduardo Montelli como Jean-Benoît Lallemant discutem, a partir de seus trabalhos, esse processo de construção de significados e de definições na sociedade atual – seja o conceito de identidade de um artista, como no caso do trabalho Lemonade, seja o conceito genérico atribuído à arte contemporânea, como propõe Lallemant em Encyclopedia. Para eles, esse processo da construção conceitual é mutante e relativo, consequência de uma contemporaneidade dinâmica, plural e transitória. A ferramenta da internet proposta pelos artistas provoca uma modificação na ordem de apresentação das respostas buscadas pelo Google e esse resultado não é mais o mesmo de um dia para outro. As definições tornam-se cambiantes. Assim, constrói-se um autorretrato conceitual em que a alteridade é determinante.
Mais do que um exercício de busca pela identidade, Eduardo Montelli atua no sentido de alcançar a representação de uma “identidade em formação” (MONTELLI, 2012), valorizando o caráter “processual, inacabado e fragmentado”, ressaltada pelo próprio caráter interdisciplinar e interseccional da visualidade apresentada pelo artista como uma caracterização em constantes transformações. Para Montelli, talvez seja melhor pensar nesse hibridismo como proposta identitária. Concebê-la menos como definição concreta de uma forma final, mas mais como investigações de formas possíveis, propondo assim uma concepção contemporânea de seu próprio retrato.