Deter-se sobre algumas das obras que compõem a série "A paixão faz das pedras inertes, um drama"2 (2010-2011) do artista Ismael Monticelli é adentrar em pequenos mundos, onde o espaço em que o ar ocupa apresenta-se compartimentado por placas de vidro. Essas superfícies vítreas, que possuem 30 cm2, estão posicionadas de forma equidistante sobre uma base de madeira, estabelecendo um sistema de medida para o ambiente em número de placas. A contagem das mesmas estabelece o quão distante se está da outra face da estrutura.
Ainda por outras razões, o vidro se constitui como elemento importante nos trabalhos de Ismael, como o seu caráter ficcional: parece ser imaterial, mas não se pode atravessá-lo; parece translúcido, mas quando muitas placas estão sobrepostas surge uma espécie de névoa. O artista comenta que, ao elaborar os trabalhos, percebeu “o quanto o vidro pode ser um material enganoso” (MONTICELLI, 2013). Ele [...] “possui uma potência de construção de ficção, de ilusão, de algo que parece, mas não é” (MONTICELLI, 2013). Além disso, a estrutura construída com as placas de vidro permite dar espessura ao ar, outro elemento que muitas vezes nos passa despercebido. Conforme o artista (MONTICELLI, 2010, p.36): “Existe a materialização de alguma coisa, uma espécie de substância, uma densidade, provida pelo sequenciamento de placas de vidro, onde estas são visualizadas, em seu conjunto, como uma massa cúbica, semitransparente”.
Nesses lugares criados por Monticelli, há também a presença de alguns habitantes: em cada trabalho, uma ou no máximo duas pessoas, com altura de 2 cm, convive(m) com outro elemento, que varia desde um outdoor ou poste de luz até o som de uma música, como em "Liebestod I" (ver imagem de capa deste texto). Aqui o "parece, mas não é" também está presente. As miniaturas, utilizadas normalmente em maquetes para projetos arquitetônicos, representam objetos e pessoas, mas verdadeiramente não o são. É dentro do contexto de cada obra que elas podem assumir esses papéis.
Dando prosseguimento à observação desses lugares cultivados pelo artista, podem ser percebidas as sensações cotidianas de seus moradores. Uma delas seria a da experiência do vasto, pois estão inseridos em uma estrutura com dimensão muito superior a deles. A outra a da impossibilidade de continuidade do movimento, já que as longas distâncias não podem ser percorridas, pois os vidros são barreiras translúcidas e impedem o ir e o vir por esse mundo. Vivencia-se, portanto, uma espécie de congelamento das ações, das vontades, que não chegam a se concretizar. As divisórias irão licenciar apenas a ação do ver. Por causa disso, infere-se que o sentido da visão deve ser o mais aguçado dessas pequenas pessoas, desses pequenos objetos.
É através do contato visual ou a partir de diálogos silenciosos que as miniaturas utilizadas pelo artista se comunicam. Ressalta-se que não há diferenciação entre o potencial comunicativo de cada elemento, mesmo os que possuem forma de objetos comunicam-se. De acordo com Monticelli (2010, p.44): “Os objetos que, no plano real, consideramos inanimados, possuem a mesma potencialidade em estabelecer uma comunicação”.
Em cada obra percebe-se uma narrativa, na "Sem título (outdoor)" um homem e um outdoor estão separados pela estrutura de placas de vidro. Posicionados em faces opostas do cubo, eles trocam olhares entre si. Porém, como explicado anteriormente, são incapazes de reduzir a distância física que os separa. A ação está contida pelos muros transparentes. Quando se orbita em torno desse mundo, diferentes situações se apresentam. Posicionando-se na face onde está o homem, percebe-se um conjunto de reflexos de seu corpo nos vidros. São como projeções de sua intenção de aproximar-se do outdoor, assim, tal desejo vem a se realizar no nível do virtual. Se a posição de observação escolhida for a da face onde está o outdoor, a situação se inverte, e agora é ele que se aproxima. Já nas laterais, os reflexos não são visíveis, e a definitiva impossibilidade do encontro se apresenta.
No caso de "Liebestod I", a composição se difere, existem duas conformações com vidros e um habitante, em cada região central, sobre base circular giratória. Ainda, há duas caixas de som posicionadas sobre a base que comporta toda a obra. Delas, propagam-se as ondas sonoras da música "The way you look tonight", interpretada por Peggy Lee, que percorrendo todo o ambiente acabam por unir os dois personagens . Eles estão girando, é como se dançassem, e, nesse movimento cíclico, olham repetidamente o entorno. Em certos momentos, ao longe, cada um deles observa, entre a nebulosidade ocasionada pelas placas sobrepostas, a outra figura.
Como chama a atenção Ismael Monticelli (2013):
Uma obra pode fundar um mundo em si própria, mas, aquele que lançar seu olhar para ela, estará enraizando-a no solo do seu mundo cotidiano. Ao mesmo passo em que um trabalho pode ser um mundo, aquele que lança seu olhar sobre ele, também, é um mundo, que percebe as coisas a sua maneira.
Assim, é no contato entre o fruidor e o trabalho que as narrativas irão se constituir, sempre com múltiplas leituras possíveis. Também nesse momento, o observador poderá se projetar naquele espaço, a partir de sua identificação com as vivências da miniatura de formato humano. Mas, é porque as obras de arte sempre se referem à realidade humana em algum grau (LAGEIRA, 2010), que se torna possível essa conexão entre a obra, fruto da “ação imaginante” do artista, e o nosso cotidiano.
Jacinto Lageira (2010, p.153), sobre a relação entre a ficção na obra de arte e a realidade, coloca: “É porque se refere à realidade sem ser essa realidade que a obra é uma metáfora ou uma ficção. Mas ela permanece metáfora ou ficção de alguma coisa. E essa coisa não é mais do que a realidade, sob todas as suas formas e em todas as suas dimensões”. Com o espaço cúbico composto pelos vidros e a inserção de miniaturas, constrói-se um outro lugar, distante do nosso por sua dimensão e por suas regras próprias, em que a tentativa de aproximação entre os personagens é impedida pela fisicalidade das placas vítreas. Lugares que também são metáforas da realidade. Trazem, com outra forma, por exemplo a experiência de quando queremos obsessivamente algo, mas que se apresenta inalcançável.
Por outro lado, também chamam a atenção, pelo contrário, para a nossa incapacidade de percepção do entorno na “correria” cotidiana. Ismael Monticelli (2013) sobre isso escreve: “Sinto que a impressão de aceleração temporal que estamos acometidos, faz com que nossos corpos adormeçam, os olhos que permeiam nossa pele ficam cegos”. Essas estruturas criadas pelo artista de fato forçam o exercício do olhar aos que nelas habitam, já que nesses ambientes, onde as longas distâncias não podem ser ultrapassadas, é o olhar que permite ir além de onde se está. Assim, as obras de Ismael tornam-se propostas para que os olhos de nossa pele despertem.