Sabemos que a arte tem caminhado nos últimos séculos rumo a uma segmentação especializada. Apesar de termos como utopia o desejo de uma arte para todos e exercitarmos a facilitação do acesso, do entendimento e, principalmente, do interesse entre um público amplo e a cultura em geral, o nível da intelectualização e do hermetismo associado ao campo resulta em um constante distanciamento entre a discussão artística e a sociedade.
Retornando um pouco, é possível perceber o princípio embrionário do sistema artístico atual nos séculos XVIII e XIX, uma vez que, aos poucos, passam a surgir mais e mais museus, ocorre a abertura dos salões, inicia-se o trabalho da crítica, assim como da atuação dos chefes de coleções. Ao mesmo tempo em que a arte sofre uma democratização, abrindo suas portas ao público, proporcionando maior acesso e visibilidade, fecha-se também por concretizar um campo cerrado formado por instituições, conhecimentos especializados, agentes culturais e, consequentemente, uma restrição à fruição gratuita cultural. Assim, de volta à situação contemporânea, sabendo que essa problemática perpetua-se até hoje, percebemos a reivindicação contra esse afunilamento por parte de artistas que levantam a bandeira sobre essa questão da crítica institucional1, trabalhando sobre a tentativa de amplificação da discussão de arte para além dos muros legitimadores dos órgãos culturais.
É nesse sentido que se pode apontar uma série de estratégias que auxiliem nessa abertura do campo e de unificação - ou acercamento - entre arte e vida. Um exemplo é o caso de artistas que negam a exigência de apresentar arte dentro dos locais expositivos, optando por levar seus trabalhos para o meio da cidade, inserindo suas expressões na própria sociedade. Aqui se levanta o projeto encabeçado por Raisa Torterola, além de Joice Rossato e Marcius Andrade (Kínese- Coletivo de Criação Cultural) intitulado Eu-Ilha. No trabalho performático, Raisa Torterola constrói uma ação artística de resistência, imersa no cenário urbano frenético de hoje, na qual se posiciona em uma escada particular, vendada, e ali estabelece seu contato isolado com os demais pedestres e cidadãos que percorrem o local. A performance afasta-se dos núcleos institucionais, invertendo o espectador curioso artístico pela massa urbana que frequenta as ruas de Porto Alegre (entre outras cidades). Assim, o projeto Eu-Ilha direciona o conteúdo artístico à comunidade e trabalha no sentido de despertar a sensibilidade e o questionamento sobre as relações comportamentais estabelecidas entre o indivíduo e o coletivo na sociedade atual, de forma a romper com os padrões dos espaços expositivos tradicionais e instigar o desfrute artístico em situação corriqueira e cotidiana.
No entanto, não é possível resumir o projeto a uma crítica sobre a atuação dos estabelecimentos artísticos. Não se trata apenas de onde a arte está sendo exibida. Pelo contrário, trata-se de uma provocação, antes de tudo de caráter social. Reflete o contexto temporal de uma contemporaneidade frágil, engolfada pela velocidade das metrópoles, dos veículos, da comunicação, dos contatos e das afetividades líquidas, assim como pela consequente segregação dos distintos grupos sociais. A performance desperta o olhar sobre as relações de interdependência entre os indivíduos, retratando a sensação de ilhas que as pessoas constroem - ou são submetidas - ao tatear sua sobrevivência em uma coletividade hostil. Além da sugestão do distanciamento provocado pela performer com as demais pessoas em trânsito, observa-se também a ideia de alienação e cegueira, já que Raisa Torterola encontra-se vendada em seu espaço de isolamento. "A venda reflete a sociedade em que estamos vivendo e participa como metáfora para as ilhas que se estabelecem ao nosso redor".2
Curiosamente, ao mesmo tempo em que o projeto trata, tão sutilmente, de questões insignes da problemática contemporânea, como o isolamento das minorias sociais, a visibilidade míope dos indivíduos perante as imposições e os conflitos da convivência no espaço urbano, a sensação de movimento e fluxo exacerbado em choque com a imobilidade performática, entre outros, acaba, também, tendo êxito em trazer em metáfora metalinguística a própria situação de não acessibilidade e de distanciamento entre público/cidade e arte em si: o ilhamento de uma cultura, hoje, não entendida ou percebida pela massa. A artista, em sua performance, encontra-se isolada, elevada, ascendida perante os transeuntes do entorno, talvez, da mesma forma que percebemos o campo artístico, "superior" e segmentado. Provoca o estranhamento e a não compreensão nos que ali passam, instigando sobre a relação que se estabelece entre o observador e o objeto de arte que ocorre também nas situações de museus e galerias.
Dando margem a essa leitura, o elemento venda pode apresentar-se como crítica à visibilidade reduzida que o campo artístico destina à comunidade de maneira geral, uma vez que se torna difícil aproximar os distintos grupos sociais de um conhecimento especializado. No entanto, Raisa Torterola acrescenta uma observação interessante sobre sua permanência na escada, vendada, durante sua ação artística.
Descobri que vendar os olhos e me colocar em um local de risco potencializava meus sentidos e passava a enxergar mais e melhor o mundo ao meu redor. Sem a visão, precisei ativar todos os outros sentidos e compreender as informações que capturava. Ao mesmo tempo, todo o som me permitia imaginar uma outra realidade, aguçando minha capacidade de produzir e projetar imagens, impedindo meu isolamento.3
Aqui, é possível inverter a noção de cegueira, rumo a uma maior sensibilização. Apesar do "ilhamento", a artista ressignifica sua aproximação com os demais indivíduos, potencializando uma outra estratégia de contato. "Por mais que esteja 'ilhada' não me encontro isolada"4 e, assim, o projeto Eu-Ilha indica seu intuito pelo redesenho das interações sociais. Dessa maneira, torna-se interessante pensar essa correlação entre arte e público. Talvez, hoje, impera-se uma dificuldade de percepção entre um e outro. O crucial é pensarmos em novas formas de inter-atuação e de participação. É possível que estimulando a quebra dos convencionalismos e explorando essas distintas maneiras de aguçar os sentidos facilite-se a integração cultural na sociedade, de forma a despertar nela o raciocínio crítico, questionador e criativo. Com propostas como a do projeto Eu-Ilha, entre outras tantas atuações presentes no cenário contemporâneo, a arte pode ainda estar ilhada mas, cada vez menos, isolada de seu entorno.