O que é um condomínio? O que é essa estrutura presente repetidamente nas quadras de uma cidade, que abriga vários blocos de apartamentos ou mesmo um conjunto de casas? Quem habita esses lugares? Como se dá a relação entre seus moradores? Essas construções de propriedade dividida podem ser vistas, como coloca a artista Letícia Bertagna (2014), como uma espécie de microcidade. Uma microcidade que possui seus lugares de uso particular, mas também os de uso compartilhado, assim como um líder, que é escolhido pelos moradores. E já que viver na cidade significa conviver com o outro, com a diversidade (ASSIS, 2011), o condomínio também é esse espaço de encontro. Encontro de pessoas que possuem em comum o fato de morarem naquele mesmo endereço. Mas, que diferem nos modos de ocupar a estrutura celular de seu imóvel, possuem expectativas próprias e preenchem as suas horas com diversificadas rotinas.
Como exemplo claro dessa estrutura, temos o Condomínio Geraldo Santana, localizado no bairro Menino Deus de Porto Alegre (RS), residência de Bertagna e local da elaboração e realização de diversas de suas proposições, nas quais os moradores também tomam parte2. Construídos entre os anos de 1968 e 1970, os seis blocos que o constituem se distribuem ordenadamente no território de metade de uma quadra, formando duas linhas paralelas: uma com os blocos “A”, “C” e “E”, e outra com os blocos “B”, “D” e “F”. Cada um desses blocos possui quatro portas que dão acesso a oito apartamentos divididos em seus quatro andares. Entre as duas linhas de edifícios há uma espécie de travessia, que na ausência dos portões inseridos em cada extremidade ligaria livremente duas ruas.
Como primeira ação, realizada em 2011, da moradora-artista Letícia Bertagna da porta “C1”, foram espalhados bilhetinhos pelas caixas de correspondência dos apartamentos dos blocos “A” e “B”. Neles, se fazia um convite aos moradores para participar de um projeto em Artes Visuais. Desse contato, resultaram duas vídeo-entrevistas. Com dois vizinhos a artista realizou um questionário, como forma de dar conta de suas inquietações: “Como eu poderia me aproximar dessas pessoas? Como eu poderia conhecer essas pessoas?” (BERTAGNA, 2014). Foram feitas perguntas como: se você fosse uma cor, um objeto, uma comida, um lugar, uma peça de roupa, qual você seria? Porém, se a artista não deu seguimento às filmagens e nem à tentativa de abarcar uma grande quantidade de residentes, percebe-se que na ação inicial já estava um procedimento metodológico que viria a ser utilizado posteriormente: a produção de “listas”, como forma de adentrar no cotidiano e nos desejos dos vizinhos mais próximos de Bertagna.
Como novo recorte de habitantes dessa microcomunidade, a artista optou por trabalhar com seus vizinhos de porta, que compartilhavam a entrada “C1”, possibilitando o estabelecimento de um contato mais contínuo. Até então, entre eles havia a mesma espécie de vínculo que normalmente se estabelece com os moradores de um mesmo edifício, aquele dado por um “protocolo”:
(Morador 1 encontra Morador 2 no segundo lance de escadas).
Morador 1: - Oi, tudo bem?
Morador 2: - Tudo bem.
Morador 2: - E contigo?
Morador 1: - Tudo.
(E praticamente sem escutar a resposta, o Morador 2 já está dentro de seu apartamento e o Morador 1 está na porta de entrada).
Que relações, então, podem existir entre esses vizinhos além da resultante de pequenas trocas de cumprimento? De que forma se pode quebrar essa sequencia de frases ditas quase por um automatismo? Como coloca John Cage (2009, p.336), [...] “se existe uma experiência que conduz mais do que as outras para a receptividade, trata-se da experiência de ser atrapalhado por alguém, de ser interrompido por alguém”. Se formos “atrapalhados” em nossa trajetória entre a porta do apartamento até o portão do condomínio, temos na verdade a oportunidade de nos socializarmos, de entrarmos em contato com aquele que divide o mesmo endereço que nós. O treino da receptividade pode resultar em trocas de experiências, que ampliam percepções. Cage (2009, p.335) ressalta, entre as mudanças que fizeram um aumento de abertura da mente à música nos anos de 1970, uma sutil consciência entre as pessoas [...] “da riqueza e do caráter único de cada indivíduo e da capacidade natural, em cada pessoa, de abrir novas possibilidades para outras”. A essa capacidade natural que se deve dar chance ao desenvolvimento.
Então, se iniciaram a coleta de listas de compras feitas em supermercados, que duraram cerca de três ou quatro meses: a artista pediu a cada morador que fosse guardando suas notas e esse material ia sendo coletado por ela em momentos aleatórios. De certa forma, esses instantes tinham a naturalidade dos encontros inesperados que ocorrem entre aqueles que dividem um mesmo prédio. Por exemplo, um morador encontrava Letícia por acaso e assim a convidava para entrar em sua casa, pois tinha listas para ela (BERTAGNA, 2014). Quebrava-se, dessa forma a sequencia protocolar dos cumprimentos. Mas, além disso, passar a juntar papeizinhos amarelos que descrevem o que foi comprado em um dos supermercados das redondezas e, assim, deixar de jogá-los fora, permite revelar hábitos: como a frequência com que se vai ao supermercado ou se as compras foram apenas para suprir faltas específicas de poucos produtos (ex. 06/05/2011 - goiabas e bananas). Além disso, podem-se construir narrativas possíveis sobre as refeições realizadas naqueles apartamentos. Conforme Bertagna (2011, p.19), “os comprovantes surgiram inicialmente como uma maneira de estabelecer um contato contínuo e como uma maneira sutil e silenciosa de travar conhecimento dos detalhes de seus cotidianos”3.
Na Convenção de Condomínio do Edifício Geraldo Santana, entre os deveres dos condôminos está: “não embaraçar o uso das coisas comuns”, o que resulta na impossibilidade, a menos que acordado por todos, do uso exclusivo de áreas comuns por um dos moradores. Letícia Bertagna ao propor a realização de um almoço coletivo no pátio do condomínio, não obteve a aprovação da síndica e, mesmo após o recolhimento de assinaturas de residentes concordando com a sua realização, a empresa administradora do prédio reafirmou o posicionamento contrário. Somente era permitido, no pátio: “caminhar, parar e respirar” (BERTAGNA, 2011, p.22). Confirma-se o fato de que, no processo de evolução do espaço urbano ou microurbano:
[...] a demanda pela liberdade individual, pelo direito de ir e vir, entra em conflito com a necessidade de espaços comunitários e regulamentos edilícios. Desde então, a movimentação dos corpos está sempre em conflito com a consciência física – nem sempre desejável – do outro. (FARIAS FILHO, 2013, p.209).
A proposta que parte da liberdade individual da artista, mesmo com o aceite de moradores, significava, para os administradores do condomínio, uma forma de atrapalhar aquele espaço comunitário. Como alternativa, a artista decidiu abrir as portas de sua residência. A ideia do almoço objetivava agregar os participantes do projeto, estabelecendo-se como um momento para o estreitamento de relações entre eles. A adesão acabou não sendo muito grande, pois apenas participaram moradores de três apartamentos (incluindo o da artista) do total de oito. O que pode nos levar a refletir sobre: quanto tempo dispomos para situações que desestabilizam nossa rotina? E quanto tempo temos para o diverso?
É importante destacar que os moradores envolvidos nas ações propostas por Letícia Bertagna possuem perfis diversos:
Ao mesmo tempo em que tinha uma família de cinco pessoas morando nesse apartamento, tinha apartamento em que era uma pessoa morando. Desde aposentado até criança pequena, em torno de três anos, com sua mãe. [...] Não tem como eu dizer que tem um padrão. Na verdade, essa é uma característica de todo condomínio (BERTAGNA, 2014).
O condomínio foge, portanto, de um uníssono de vontades, afazeres, preocupações. O que pode ser confirmado pelas listas de rotinas e de desejos escritas por alguns dos moradores por proposição de Bertagna (ver Figura 3 e 4)4. Essa mistura também se expressa na mescla de cheiros dos alimentos cozinhados, os quais percorrem os andares do edifício (BERTAGNA, 2014). Estabelecem-se conversas alimentícias: o aroma do pastelzinho encontra com o do arroz cozido, e eles flutuam e se agrupam com outros sabores. De uma mistura de cheiros, de uma mescla dos gostos alimentares dos moradores se fez esse almoço. Pois, para esse encontro, a artista escolheu um dia das notas de supermercado e com os alimentos que haviam sido adquiridos montou os pratos.
A conversa girou em torno do que cada um gostava de comer, da história do condomínio, mas também sobre o que cada um desejava para o lugar onde moravam (BERTAGNA, 2014). Dentro de um condomínio, onde seus moradores constituem uma microcomunidade, o estabelecimento de uma proximidade maior entre seus membros pode facilitar soluções de problemas e também criar um círculo afetivo até então inexistente. Conforme depoimento da artista, “se tu não sabes o que as pessoas querem, ou se as pessoas não sabem o que umas e outras querem e desejam para esse espaço, não tem como ter conversa”. O questionamento que fica é “como nós podemos aliar essas necessidades, dentro de uma coisa coletiva?” (BERTAGNA, 2014). Não é a toa que, atualmente, uma das moradoras que participou do projeto e a artista estão envolvidas com a melhoria de um dos espaços do condomínio. Para Bertagna (2014), a imagem da gota ou da pedra que cai na água e gera ondas circulares, que se propagam para além do ponto central, é o modo pelo qual uma prática pessoal pode assumir uma função política. Uma ação que parte do círculo mais próximo de pessoas pode vir a intervir em outras camadas da sociedade, sendo impossível saber qual o limite para as suas ressonâncias.
A última proposição envolvendo esse núcleo de vizinhos foi a realização de fotografias, uma em cada apartamento, constituindo a série: “Situações domésticas para corpos clandestinos”. Nela, Letícia Bertagna sugeria uma interação entre o(s) corpo(s) do(s) morador(es), o espaço habitado e um determinado objeto, que depois era captada fotograficamente. Essas escolhas, de alguma forma, relacionavam-se com as listas e as conversas tidas durante todo o período do projeto. Mas, além disso, conforme a artista:
[...] a maneira com que cada um se expressa em sua casa e as funções a que a ela atribui foram o ponto de partida para a escolha dos objetos e das situações formuladas, a fim de causar um deslocamento do hábito e um desconforto em seu território existencial. (BERTAGNA, 2011, p.31).
Destaca-se, no presente texto, dois aspectos da série de fotografias. O primeiro em relação aos objetos, os quais foram alçados do conjunto de coisas que nos cercam. Esse conjunto proveniente dos objetos dispostos na casa ou daqueles que ocupam os espaços externos (por exemplo, o pátio do condomínio), muitas vezes, se torna uma espécie de zunido, que de tanto escutarmos o anulamos. Assim, não perdemos o foco nas ações que estamos realizando e que dizem respeito a nossa rotina. Mas, nessas fotografias esses singelos objetos emergem do ruído, tornam-se vivos, são interagentes. A foto do apartamento do térreo, a partir da inserção de plantas no espaço de um quarto com beliche, realça a proximidade espacial da moradia com o jardim. Bertagna (2014) havia catalogado as plantas existentes no condomínio e a partir desse levantamento foram escolhidas as vegetações que no momento da proposição puderam interagir mais diretamente com aqueles habitantes. Outra situação é a apresentada pela foto do empilhamento de colchões intercalados por pessoas, na qual o objeto colchão é vivenciado de forma a intensificar a presença dos muitos moradores do apartamento, uns sobre os outros dividindo o mesmo espaço.
O segundo ponto é a interação espacial diversificada desses corpos com o ambiente de suas casas. Sendo o edifício, uma espécie de empilhamento de módulos (os apartamentos)5 e também uma justaposição de cômodos geralmente ortogonais, como deixar as suas fronteiras mais orgânicas? Verifica-se, em muitas fotos da série de Letícia Bertagna, um desacomodamento em relação ao modo de experienciar esses espaços. Não se veem os corpos por inteiro, são fragmentos: pés, mãos, pernas e braços, são “corpos enfiados nessa arquitetura” (BERTAGNA, 2014). O invisível dos moradores, então, está nas entranhas das paredes, dos pisos, dos tetos: tornou-se parte.
A estrutura do condomínio interfere nos hábitos dos seus moradores: a disposição dos blocos, das escadarias, dos cômodos dos apartamentos, acarreta em trajetórias mais ou menos impostas de se ir de um lugar ao outro, como da sala até a cozinha. As vistas disponíveis das janelas também dependem dessa localização. Os supermercados mais próximos do condomínio serão aqueles com probabilidade de serem mais frequentados. Parte das pessoas com quem temos contato, diariamente, também está determinada pelo local onde se mora. O trabalho de Letícia Bertagna se faz dentro da estrutura do condomínio, mas a extrapola, colocando em cheque os limites impostos pelas paredes que separam os apartamentos ao problematizar as relações de convivência, assim como os modos corpóreos de habitar esse espaço.