Se quiséssemos juntar todos os instantes de uma vida, todas as fotos que foram tiradas em família e entre amigos, todas as trocas de afeto, as discussões, os lugares por onde passamos, os autores lidos, ou os não lidos, os filmes vistos, de quanto espaço precisaríamos? De vez em quando, podemos nos sentir assim ao tentar guardar tudo sobre determinado assunto, apreender os mínimos detalhes, perscrutando todos os aspectos. E se só tivéssemos um minuto para fazê-lo, um minuto para colocar todas as memórias? Quanto seríamos capazes de guardar? Quanto poderíamos depositar nesse último minuto, em que o mais precioso deveria ser salvo?
No vídeo o “Último minuto”,1 de Vitor Butkus,2 foram colocadas 1547 recordações. Ao assisti-lo, o olhar é atingido por imagens do arquivo familiar do artista, mas elas passam tão fugazmente, que não se consegue apreendê-las. Há um certo incômodo físico ao se ser submetido a tal quantidade de informação sem ser possível segurar um fragmento que seja. A menos que se clique no “pause” e, então, um instante é resgatado desse compactador de lembranças (mas isso talvez seja trapaça).
Vivenciamos, atualmente, um estado de superinformação, que tem seus perigos, pois podemos não conseguir selecionar o que realmente importa e, como no vídeo, não sermos capazes de rememorar o que nos foi mostrado no último instante. Como reflete Butkus (2015), passamos a uma sensação de completa amnésia ao sermos atingidos por tamanha quantidade de imagens. É como uma impotência de se lidar com os conteúdos disponíveis, de se criar nexos ao que está sendo acumulado. É nesse estado paradoxal, de ver e não realmente ver, que o artista nos coloca durante esse angustiante último minuto.
No entanto, é através de tal trabalho e também de outros, que se pode crer que Butkus é alguém capaz de submergir em arquivos, como o de fotos de sua família, e ainda subverter tal paradoxo, pois recorta essa matéria condensada de memórias e lança seus fragmentos, agora ressignificados, em nossa temporalidade. Como afirma o artista, “o trabalho se dá na mudança de sentido que esses elementos sofrem, ao passar de seu universo original ao outro. Trabalha-se na lógica da colagem ou da montagem cinematográfica” (BUTKUS, 2015).
Na instalação “Sem título (26 anos)” e na obra “Caixa de ferramentas”, notam-se procedimentos semelhantes ao de transformação de fotografias conservadas em seu arquivo de família. Para a primeira, foram selecionados pedaços de céu presentes nas fotos, para que 26 cubos fossem revestidos de estruturas azuladas quase abstratas. E, na segunda, tem-se uma caixa preenchida por imagens de objetos que sempre estão presentes em nossas fotos, mas que, normalmente, não lhes são direcionados o foco principal. São recortes de elementos do segundo plano, daquilo que não constitui o retrato de nós, mas nos revela indiretamente. Assim, apesar de, no princípio, essa coleção de fotos remeter à biografia do artista, com o processo de edição que elas são submetidas, há uma despersonalização, passando a dizer respeito à memória de todos nós. Segundo Butkus (2015), nesses trabalhos, lhe interessou “frequentar o paradoxo de uma escrita de si que destrói as suas provas máximas para se fazer outra”. As fotografias tornam-se pedaços de céu ou simples objetos do cotidiano, como um baldinho e uma cadeira de praia, estando ausente o semblante que se tinha em um determinado dia. E, dessa forma, podem remeter à lâmina fina do tempo que nos transpassa sem notarmos, mas que está ali e pode ser vista pelo canto do olho.
Nos trabalhos de Butkus, percebe-se a importância de três verbos: amar, morrer e criar. Sem ser nessa ordem, mas de maneira intrincada, essas ações parecem se dar como motores de sua produção. Em “Malogramos sempre ao falar do que amamos”,3 obra múltipla que se desdobra em intervenção no pátio do Hospital Psiquiátrico São Pedro (2010) (Figura 2 e 3), publicação de artista (2011) (Figura 4) e performance4 (Figura 5 e 6), pode-se notar o movimento de tais forças. Partindo dos últimos textos escritos por autores que o circundavam em sua biblioteca (REDIN, 2013), como Caio Fernando Abreu, Gustave Flaubert e Walter Benjamin, Butkus atua de forma a reativar essas últimas palavras. Palavras que se colocam no limite entre a eternidade que a humanidade, enquanto preservar sua cultura, poderá alcançar e a parada física dos corpos, quando incapazes de atuar no mundo.
Quando Butkus trabalha a partir da obra de outros autores, como nesse caso ou nos vídeos relacionados ao artista Rafael França, realizados em ocasião de sua dissertação de mestrado “Libro negro: respostas a Rafael França” (2013)5 , há inicialmente um mergulho profundo no que cada um pensava e produzia (BUTKUS, 2015), resultando em uma espécie de paixão entre o artista/pesquisador e essas vidas criadoras. Assim, “Malogramos” é costurado através do seu círculo de afetos, dos autores que ama, guardados em sua biblioteca, estando nele presente “a dimensão de uma fragilidade humana (amar), justaposta a uma outra fragilidade (morrer)” (BUTKUS, 2015). E ao lançar-se nesse arquivo de últimos textos, sejam eles inacabados ou não, e os colocar no tempo presente, inter-relacionando-os em uma justaposição inesperada, Butkus atua com a única ferramenta que encontramos para permanecer: a do criar.
Para o artista, essa apropriação, seja ela de textos, fotos e mesmo de vídeos, estabelece-se como “um modo de criar que lança a criação em outro lugar” (BUTKUS, 2015), distante daquele localizado na construção de uma pintura ou desenho. A apropriação se dá, então, como um ato de extração daquilo que o fisga, que o encanta. Aproximando-se daquela situação de encontro inesperado que nos leva a algo que, intuitivamente, sabíamos muito querido, mas que ainda o desconhecíamos. Dessa forma, Butkus se apresenta muito mais como um colecionador de encontros, de memórias, de pensamentos, que um colecionador de objetos físicos.6 Mesmo que essas ideias estejam sobre o suporte matérico de uma folha de papel, pois esse é apenas o meio para que elas possam transitar pelo mundo.
No vídeo “Anotações na Vertigem” (2013),7 Butkus interrogou diversas pessoas, entre os anos de 2011 e 2013, sobre questões como a experiência da criação, a prática do sexo anônimo e a proximidade da morte. Nos últimos minutos, uma jovem sentada com uma pequena tesoura em suas mãos (no tempo suspenso do ferir-se e não se ferir), comenta da experiência de se chegar a um limite, determinado pelo fato se perder as forças, de não se poder mais prosseguir. Como se dentro do processo de criação, a vivência de finalizar uma obra fosse equivalente a de uma vertigem. O embaralhamento da vista, a tontura, na deposição de mais uma contribuição ao oceano de ideias do mundo. É uma ânsia de não malograr, de não deixar esquecer, de vir a retornar.