Uma das coisas que me interessa no livro
é essa ideia de passagem (MONTEIRO, 2014b).
Nos livros, sendo eles de artista ou não, está contida uma ideia de passagem, percebida quando a estrutura formada pela sobreposição de folhas de papel é desvelada, no momento em que as mãos escolhem abrir um livro em qualquer uma das páginas. Após a essa abertura, as folhas, uma a uma, vão sendo levantadas pelos dedos e deixadas cair no lado oposto de onde vieram. Passagem concreta para quem vê algo se movendo, mas também passagem das memórias ali impressas por Emanuel Monteiro1. Em cada página, camadas de matérias: flores e sementes, recolhidas do quintal de sua casa em Cambé/PR ou de sua atual residência em Porto Alegre; terras de diversos locais do país, pelos quais passou; palavras; textos e imagens de objetos, de detalhes do entorno que o rodeia, que o alimenta. Conforme o artista: [...] “vou misturando essas vistas das paisagens de vários lugares, colocando isso no mesmo lugar, no caso o livro. [...] Como se esses vários lugares, esses vários tempos pudessem habitar o mesmo espaço” (MONTEIRO, 2014b). Assim, a passagem das páginas, quando folheamos os livros, podem revelar outros tempos.
Mas, é por intermédio da referência desses lugares, das muitas casas que Monteiro habitou, que se define o espaço aberto do livro, em um lugar gerador de experiências ao “leitor”. Para o artista, fazer uma obra desse gênero é “construir um lugar, propor uma experiência temporal, a partir do livro, das imagens e das matérias utilizadas” (MONTEIRO, 2014b). Formam-se outras casas, cada página é um recanto gerador de imagens. As folhas de papel habitam esse livro, encolhem-se dentro dele, até o momento em que se deixam revelar2. A casa, assim como o livro, proporciona um espaço de conforto e intimidade, é [...] “um espaço que deve defender a intimidade” (BACHELARD, 1978, p.228). Por isso, talvez muitos desses trabalhos sejam denominados com nomes próprios, como o “Livro de Amaranta” (Figura 1), personagem do livro “Cem anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, ou o “Livro de Ancorado” (Figura 2), que embora traga na palavra “ancorado” o significado de algo que está fixado, pela letra maiúscula utilizada, subentende-se o nome de uma pessoa. Seriam tais livros receptáculos das memórias daqueles que os intitulam? Seriam guias de navegação para nossas próprias memórias?
O “Livro de Amaranta” é formado por flores e folhas sedimentadas sobre a superfície do papel com têmpera à base de terra e cola (MONTEIRO, 2014a). As páginas, nesse processo, se tornaram quase como chão, ficando cheias de nervuras. Elas sustentam as camadas de matéria, assim como o solo faz com as árvores. Percebe-se uma conexão entre os materiais utilizados na realização do livro: flores e folhas, recolhidas da natureza, que encontram na celulose do papel uma mesma origem. Por outro lado, a água presente como imagem em alguns dos trabalhos (Figura 2 e 3), também se apresenta como matéria na realização do macerado extraído das flores, utilizado posteriormente como tintura, ou na aquarela. Então, formam-se camadas suaves que se sobrepõem nas folhas de papel, como se cada película aquosa trouxesse seu tempo próprio. O resultado, metaforicamente, se dá como se tentássemos recordar um acontecimento antigo, quando apenas alguns fragmentos se deixam vislumbrar entre tantos outros fatos mais recentes. A inserção desse elemento vivo, com ações próprias, incontroláveis, transforma o lugar do livro, o constitui. A água invade o papel, mancha, altera os tempos.
Há uma preocupação com as transformações das coisas. A vegetação se liga à terra também a partir da água, há uma passagem de um elemento para o outro, como se eles se transmutassem, como num processo alquímico, lembrando o laboratório de alquimia de José Arcadio Buendía. As mudanças ocorridas na existência, que sobrepõem camadas de memórias, são vislumbradas nos livros de Monteiro a partir da ciência das relações que os materiais utilizados instituem no ambiente natural. Essas são transportadas para as páginas quando folhas, flores, galhos, sementes, terra e água são ali depositados. Mas, tais mudanças também podem ser percebidas nas trocas de matéria estabelecidas entre cada elemento no ambiente do livro. Essa atuação é regida, muitas vezes, pela ordem do acaso. Ainda, as alterações estão no bolor presente em alguns dos livros ou nos pedaços que se desprendem facilmente e tomam outros destinos. Ao trabalhar com o orgânico, Monteiro fala de diversos tempos da matéria, diversos estágios entre o nascer e o deixar-se ir, o ser e o modificar-se.
O encontro de textos nas páginas dos livros de Emanuel Monteiro também é marcante, oriundos de fontes literárias ou mesmo de escritos seus (Figura 4). As palavras são inscritas normalmente de forma grave, com uma ponta seca abrindo fendas. Muitas vezes, se desfazem, são ilegíveis, agindo apenas como forma, como presença enigmática que esconde seu significado. Para o artista/autor, possuem a importância de contribuir na constituição da atmosfera das páginas: “atmosfera onde as coisas pareçam ser permeáveis, onde elas pareçam estar se misturando, se contaminando e, em alguns instantes, pareçam estar se desfazendo” (MONTEIRO, 2014b). Colabora também para esse ambiente, o artifício das transparências, obtidas pelas aguadas coloridas, folhas de papel transparente e mesmo sementes com partes tão sutis que deixam vislumbrar o que está embaixo (Figura 5). Monteiro (2014b) comenta que gosta dessa transparência [...] “porque ela deixa aparecer a marca do que estava antes, ela deixa aparecer um rastro de algo que estava anteriormente. Por isso me interessa a aquarela, porque ela não esconde as camadas anteriores, vai adensando aos poucos”.
A sedimentação dessas camadas líquidas, de palavras inexatas, de materiais sujeitos ao tempo, leva para um lugar do impreciso, como um chão com partes soltas que descem ao serem pisadas. Sobreposição de imponderáveis, de camadas impalpáveis de memórias de lugares pelos quais Monteiro passou ou que nós mesmos passamos. A imagem de alguém que escava o solo, como um arqueólogo em busca de modos de vida já esquecidos, parece estar contida nesses livros. O remexer das folhas de papel, à procura do próximo indício, localizado na próxima página ou no entremeio das matérias ali dispostas.