Estimado Sr. Fan Ho,
Aqui ainda é sábado e o tom nanking das nuvens noturnas se esvai, pouco a pouco dissolvido pela chuva que aqui cai e, aos poucos, borrifa no ar o odor do gramado, revelando, para quem apure o olfato, a olência do solo. A esta hora, os pássaros já cantam. Aqui no sul, o joão-de-barro, principalmente, canta contente e confiante desde o galho da paineira, onde faz sua casa, dizem, protegendo a entrada das chuvas – do solo, vemos a fenda através da qual ele some quando entra em sua casa-ninho. Talvez cante assim faceiro, pois sabe que, lá, os gatos não os alcançam, secreto em seu buraco negro, pura sombra, segurança e escuridão. Sorte nossa, que assim vivemos sob o seu canto, o joão-de-barro, construir casas nos altos galhos do sul. Imagino cada casa-ninho do joão-de-barro como uma pequena caixa de ressonância musical. Lá se guarda, ele, a tecer melodias em seu desvão. Fico a pensar, aleatoriamente, enquanto olho o ninho naquela paineira, de onde cantarão pássaros como os chupins, os tecelão-parasitas, os cucos? Em suas casas verticais, olhando o mundo desde o alto, percebendo de nós o que não percebemos deles. Pássaros também reutilizam casas-ninhos uns dos outros. Nem sempre são fraternais.
Sei que há alguns, como os grous, que se negam a cantar. Em seu silêncio, os grous se negam. Aqui no sul do Brasil, parece, não temos grous. A esse pássaro que, no Japão, o transformaram em símbolo do origami. Ave da dobra, ave do silêncio. Não sei se o grou será também ave das sombras. Como o senhor já percebeu, estou com a sombra, essa espécie de contraluz, a guiar nossa conversa. Tenho certos cacoetes, todo mundo os tem. Soube, mais recentemente, que o grou, no Japão, simboliza também longevidade. Uma longevidade física, alcançada pela saúde, pela felicidade, pela prosperidade – valores expressos no mundo real e objetivo, no mundo físico e limitado dos corpos humanos. Valores que dependem de trabalho e de cuidado; e de atenção... Começo já a fazer digressões e sei que me perco um pouco por aqui. Ia ainda dizer: valores não valorizados, valores como não-valores, num mundo no qual tudo converge para o acúmulo de capital e a disputa de territórios. Por isso, acho curioso o que ouço no nome do grou quando pronunciado pelos japoneses: sua ave sagrada, a chamam Tsuru (como se, afagados por nossa riqueza, ao dizermos “tesouro”, pronunciássemos a primeira sílaba com o “e” bem fechado, e reduzíssemos o ditongo, “ou”, algo como t’sôro). Somos uma espécie que elege seus valores, entretanto, tais valores nem sempre são compartilháveis: buscamos, narcísicos, valores para nós.
Sr. Ho, me perco e me perco mais. Respeitosamente lhe digo: a culpa, por perder-me, é um pouco sua (li que é isso mesmo o que suas fotografias provocam: o desejo de perder-se pelas cidades, não de se encontrar, não de saber-se; nem de “acumular lugares visitados”, nesta nova modalidade estimulada pelo turismo de acúmulos – “já fui, já vi, já estive”, trinam os humanos voando mundo afora). Soube que seu desejo é nos ensinar a, ao acaso, perceber o nunca visto. Meu impulso ao lhe escrever se deve a isso, mas, enfim, não temos intimidade, por onde afinal eu deveria começar?...). Ando assim desde que me caíram em mãos, meses atrás, algumas de suas fotografias (reclamo que poucas). Coloquei uma delas em minha pantalha do computador. Mais recentemente, graças à internet, descobri seu título: Mirror Lake. Devo dizer claramente: coloquei sua foto, a do pescador solitário por entre... por entre o quê? por entre diáfanas montanhas da Capadócia (que por si só já seriam diáfanas, embora essas que aqui vejo, imagino, não sejam da Capadócia)... sua foto (olhando para sua foto, aqui gaguejo, a foto de um pescador necessariamente solitário, ele num miliplano à frente das diáfanas montanhas, desdobrado em seu próprio reflexo – mirror lake, misturado aos reflexo das varas, do barco, das montanhas em sua profusão e profundidade, da borda em sua orgânica configuração, tudo levemente rebaixado na imagem do lago-espelho),... esta sua foto do pescador (terão havido decerto outras), e a outra que parece a esta tão oposta (a de uma única mulher, também posta em sua solidão, cabisbaixa, encostada numa quina de escala monumental, ela ali ínfima, confrontada pela sombra que a sobredetermina, e que lentamente se aproxima, approaching shadow),... Ambas as fotografias me forçaram a lhe escrever. Todas as suas fotografias me forçam a tentar escrever. Sem êxito, hesito, titubeio: como dizer da foto? Digo então apenas da tentativa.
Situo-me para que o sr. imagine a cena: escrevo esta carta na pantalha da direita, deixando que sua foto, Mirror Lake, na pantalha da esquerda, me acompanhando, reduplicada, a cada tanto me seduza (e me impeça...). Gosto de pensar num mundo redobrado em papel, talvez por isso volatilizado, quase aéreo, no qual nossas vidas, chãs, se ampliariam. Ganhariam em sentidos, ganhariam mais sentido. Na dupla tela, então, quando ficam apenas abertas, e eu não estou ali trabalhando, telas como janelas ao alcance dos olhos, as dobras ao infinito de sua fotografia multiplicam-se...
Que homens produtores de cultura têm enorme responsabilidade sobre o estado civilizatório da humanidade é um lugar comum que deve ser sempre reafirmado. Termos a presença do senhor, entre nós, nos ajuda a equacionar a exigente tarefa de sobrevivermos ao cotidiano, cada um de nós a cada dia mais atolado em miserabilidade e falta de compaixão. Presunçosos mortais, a um só tempo, míticos, egóticos e dramáticos, nos pretendemos fundamentais atlantes e cariátides, na corte de um superatlas, mas falimos, consumidos por excessos: incumbências, obrigações, tarefas não cumpridas a nos penalizar. Em luta contra nossos zeuses cotidianos, em busca de outra ordem para nosso microcosmo, tragados (seduzidos?) pela matéria e pelo trabalho, esquecemos de nós. Esquecidos de nossa escala, esquecemos de quem somos, do que miseravelmente valemos e podemos. Vemos apenas o já visto, vivemos o vivido. Pois afinal, vivemos nos abandonando.
É grande sorte a nossa, termos a presença do senhor entre nós, nos ajudando a, de uma específica maneira, volatizar o peso do mundo.
Sr. Fan Ho, retomo a conversa (repito, o sr. tem sua parte em todas essas aeradas anotações): cada fotografia sua me envolve e me quedo em silêncio. Sem algazarra passarinheira, pareço um grou redobrado em mim (se fosse mulher diria, poderia dizer “pareço uma grua”)... A fotografia me impõe a contemplação. Contemplação que, devo destacar, é pagã. Pois contemplação das coisas objetivas, reais. Cada foto sua me faz pensar na força miraculosa de certa capacidade duramente desenvolvida pelo homem (o duro trabalho da repetição!), para a apreensão daquilo que, por apenas alguns instantes, aparece no mundo. Como vemos o que vemos? O que vemos, fazemos existir? Como validar o que vemos?... Sr. Ho, dependerá disso o encontro com a linguagem?...
Queria eu, poder dizer o mundo numa única frase, numa única palavra, numa única letra. Num ideograma, num caractere, num Hànzì. Queria eu, poder dizer uma obra num telegrama, num bilhete, num post-it. Queria eu o “instante da obra” (o senhor sabe que em nossa língua, tão distante da sua, o feminino de “grou” é “grua”? E que “grua” é o nome dado a uma espécie de guindaste? E que as aspas, já não lembro mais se foi Derrida quem disse, guindam as palavras entre elas?... Fiz referência à grua, linhas atrás e depois fiquei aqui pensativo, pendurado nela). Queria eu o “instante da obra”; me pego pensando em coisas como: a “insistência do instante”, a “emergência do instante”, a “duração do instante”, ... a “amplitude do instante”. Questões caras à arte da fotografia, questões sem dúvida onerosas para a vida cotidiana, já que “o relógio de pulso é nosso confidente”, diz nosso poeta Drummond.
Queria eu poder dizer sutil e certeiro, como sua obra faz. Encontrar minha forma breve, um soneto, um mero ditado, um haicai, um ritmo que dissesse o todo do instante escolhido. Seco e exato, sem titubeios. Mas que fosse leve, como os pássaros, feitos de esqueleto e plumas, pássaros hieróglifos, garatujas sutis, origamis capazes de planar como só certos aviões...
Um dia, já longe no tempo, me disseram: parece que, na obra de Fan Ho, “as coisas (quase) estão”. O que em se tratando de fotografia, dependente do “ser das coisas”, parece impossível. Isso faz de seu trabalho um aturdimento! Pois bem, nem sei se me desculpo ao dizer, mas o senhor é bastante milagreiro, pois, no intervalo entre o grande salto e a aterrisagem adiante, o senhor consegue, a cada vez, “registrar o instante”, escriturar o instante, garantir a existência do instante – dar ao instante valor de patrimônio. Quero dizer, e não sei se consigo, é como se o sr. fosse capaz de perceber o “antes do instante”, o “quase ali” do instante. Repito: o sr. é um milagreiro, pois, no intervalo entre o grande salto e a aterrisagem adiante, o senhor consegue, com seu trabalho fotográfico, produzir novos espaços. Em cada fotografia sua, em cada uma das milhares de fotos, milhares de instantes intermitentes contemplados, sua descoberta: a “contemplação do instante”. Pois, atônito, sim atônito, pergunto: como seria possível contemplar longamente um instante? Dos remos de um barqueiro o sr. faz suas asas, de montanhas o sr. nos dá seus entretons, da sombra acachapante o sr. faz fenda, de dezenas de janelas, seu olho, ora geométrico, ora orgânico, faz telas de pura luz. Com suas fotografias, nosso mundo se desdobra e volatiza. Vemos por entre, vemos pela presença e pela “obstacularização” (!) da luz. Vemos buracos negros que reconfiguram os lugares, oferecendo sentidos quiçá capazes de nos tornar mais fraternos, pelo impacto da beleza do que é simples e do que simplesmente está ali.
Sr. Ho, milagreiro, homem do olhar insistente, fotógrafo de Shanghai. Carrega consigo milhares de instantes. Como oferenda, nos dá milhares de unidades de certo “tempo espacializado”, em composições fotográficas. Quando a Técnica e a Tecnologia a tudo dão acesso, parece ouvirmos o sr. Ho dizer: isto é apenas fotografia.
Agradeço-o, e o saúdo a cada dia.
Cordialmente, subscrevo-me,
Andréan Renand
P.S.: Sr. Ho, o senhor sabia que por volta do ano de 1889, quando da inauguração da Torre Eiffel, Miguel de Unamuno, o filósofo, era reitor da Universidade de Salamanca quando conheceu as dobraduras japonesas? Encantado com aquela magia feita de dobras, passou a difundir no mundo hispânico a Arte do Origami. A essa Arte se associa, como a qualquer Arte, um pensamento. Em nossa língua, ao pensamento advindo do fazer das dobraduras de papel, nomeia-se “papiroflexia”... Curiosamente, em função de o símbolo da arte do origami ser o grou, uma ave, os espanhóis passam a dizer la pajarita, tanto ao se referirem ao “fazer” quanto ao “pensamento enquanto dobra”... Acho essa história irresistível e precisava contá-la ao senhor, embora o sr. talvez já a conheça. Despeço-me, agora sim sr. Ho, com um dos raros poemas que sei de cor. Pois tudo parece fazer muito sentido. Quase um haicai, de Nicolas Guillen, poeta cubano, “La Pajarita de Papel”, poema do livro El gran zoo, publicado nos anos de 1960:
Sola, en su jaula mínima,
dormitando,
la Pajarita de Papel.
Obs.: (anotação posterior, a lápis): esta carta não pôde ser enviada. Fan Ho havia falecido aos 19 dias do mês de junho deste ano, em San José, Califórnia. Soube disso posteriormente, quando já profundamente envolvido por suas imagens.