GAMBIARRA

VERBETE DE MARIA FERNANDA DE MELLO LOPES

Artista visual e mestranda no programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP

RESUMO

O presente verbete reflete acerca da gambiarra enquanto pensamento criativo, a partir de uma fotografia da série Gambiarras de Cao Guimarães.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.6, Nº15, MAR., ANO 2019
VERBETES DA ARTE

Tosco, feio, sujo, pobre, mal-acabado, paliativo, improvisado, adaptado, consertado, reciclado, artesanal, feito à mão, deslocado, subvertido, trucado, traquitana, gato de energia, ilícito, jeitinho, malandragem, “faça você mesmo”, falta de planejamento, desvio. Estas são algumas das palavras e expressões que vêm à tona quando se escuta a palavra gambiarra.

Esta reflexão parte do trabalho do artista Cao Guimarães, precisamente de uma foto da série Gambiarras (2000-2014). Nela, um homem parece tirar um cochilo, deitado em um banco (aparentemente ao ar livre), utilizando um coco como travesseiro.

No conteúdo da fotografia, é possível identificar componentes que lhe conferem o status de gambiarra e/ou desvio – considera-se desvio na medida em que o curso do socialmente considerado normal e correto é alterado. Dormir em um banco, mobiliário tradicionalmente projetado para pessoas se sentarem, já configura um desvio; usar um coco como travesseiro também. Isso porque o coco presente na foto é, em geral, primeiramente visto como alimento. Além disso, sua forma arredondada e de consistência dura tem aspectos totalmente diversos do que se espera de um travesseiro ou algo que cumpra função parecida.

A gambiarra fotografada diz mais respeito à alteração do uso e das funções dos objetos do que de sua materialidade, o que chama a atenção para o gesto que a criou. Tendo isso em vista, interessa-me refletir sobre a gambiarra enquanto pensamento criativo e seus possíveis motivadores.

A gambiarra acontece no dia a dia quando alguma coisa tem que ser consertada e, consequentemente, acaba virando outra (ou mesmo outras). Por isso, ela existe no entre (coisas e gestos), como um devir. Compreende, assim, uma forma de construção de pensamento, ecoando como forma de ser e de agir: desvio, porém não exceção e nem regra. Compreende tanto o ato de fazer como a coisa feita: contém o múltiplo e abarca a variedade. Logo, é impossível pautá-la pelo pensamento uno ou binário, ou somente como boa ou ruim (PINHEIRO, 2013).

Uma gambiarra é feita por conta de uma urgência, uma carência irremediável em dada situação. Porém, existe no ato criativo dessa solução uma habilidade em relacionar e incorporar elementos, recombinando e remexendo aquilo que estava enrijecido, uma vez que aquela forma não serve mais. Por conta disso, não cabe reduzir a sua justificativa a questões apenas ligadas à precariedade e à falta de recursos econômicos, por mais que possam ser a sua causa imediata.

Essa habilidade em incorporar os elementos do entorno pode ser considerada um tipo de antropofagia: se nos povos ameríndios ela se mostrava de forma mais evidente em práticas como rituais sagrados que envolviam o canibalismo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002), essa antropofagia hoje se apresenta de maneira mais próxima ao sentido cultural, como proposto por Oswald de Andrade (1970). Em maior e menor escala, é possível detectar a vontade/habilidade em acessar o entorno, incorporar o de fora, o outro, pela soma e não pela oposição, vontade que aqui detectamos por meio das feituras de gambiarras: “só me interessa o que não é meu, lei do homem lei do antropófago” (ANDRADE, 1970, p. 13).

A gambiarra, não raras vezes, vem justificada pela frase “é o que tem pra hoje”.

Não faz sentido definir o que pode ser a gambiarra de maneira restrita, fechada e acabada, haja visto que ela existe no “entre”. Contudo, faz sentido apontar uma de suas razões de ser: a habilidade incorporadora/antropofágica. A gambiarra pode ser então tudo aquilo que vem borrando os limites, comendo as linhas delimitadoras do padrão e do não padrão. É o que tem pra hoje e ainda mais: é o que fazemos com “o hoje”.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Oswald deDo pau-brasil à antropofagia e às utopias: manifestos, teses de concursos e ensaios. Rio de Janeiro: Civilização, 1970.

PINHEIRO, AmálioAmérica Latina: barroco, cidade, jornal. São Paulo: Intermeios Casa de Artes e Livros, 2013.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O mármore e a murta: a inconstância da alma selvagem. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 181 – 264.

www.caoguimaraes.com/foto/gambiarras/. Acesso em: 14 out. 2018.  

Lista de Imagens

Cao Guimarães, #54, fotografia da série Gambiarras.