O SARPÉDON DE HENRI LÉVY (1874)

ARTIGO DE RAPHAEL D’ANTONA

Bacharel em Artes Visuais pela UFRGS (2015), atualmente graduando em História da Arte pela mesma universidade. No presente, dedica-se à pesquisa da pintura do século XIX na França e seu atual estatuto crítico. É bolsista de Iniciação Científica CNPq, orientado pela professora Mônica Zielinsky.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.5, Nº14, JUL., ANO 2018
PENSAMENTO E AÇÃO DE SUBSISTÊNCIA

RESUMO

Este artigo aborda uma pintura de Henri-Léopold Lévy feita para o Salão de 1874, em Paris. Após investigar as diferenças notáveis entre a obra e o texto clássico que lhe serve de referência – a Ilíada de Homero –, tomando por comparação suplementar outra ilustração grega do século VI a.C., coloca-se o problema das categorias até então utilizadas para a compreensão da pintura francesa da segunda metade do século XIX e a necessidade de revisá-la, tendo em vista uma tendência que vem tomando força nos estudos de pintura moderna, sobretudo a partir dos anos 2000, na França. Sugere-se, a partir daí, o benefício dessa revisão junto à revisitação do problema da imagem na arte contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE

Pintura francesa. Academicismo. Salões de Paris. Henri-Léopold Lévy.

RÉSUMÉ

Cet article traite d’un tableau peint par Henri-Léopold Lévy pour le Salon de 1874 à Paris. Après avoir cherché les différences remarquables entre cette œuvre et le texte classique qu’elle prend pour référence – l’Iliade d’Homère –, nous faisons une comparaison supplémentaire avec une illustration grecque du VIe siècle av. J.-C. et nous essayons de remettre en cause les catégories encore utilisées pour comprendre la peinture française du XIXe siècle en faisant le lien avec des tendances déjà courantes dans les études de peinture moderne en France, surtout depuis le début des années 2000. Nous suggérons, à partir de cela, l’intérêt de revenir à la question de l’image dans l’art contemporain.

MOTS-CLÉS

Peinture française. Académisme. Salons de Paris. Henri-Léopold Lévy.

Imagem, texto e montagem

Há, no Museu D’Orsay, em Paris, uma pintura de um artista do fim do século XIX ainda não muito comentado: Henri-Léopold Lévy (1840-1904). Deparamo-nos com a obra (figura 1) após percorrermos a longa ala central de esculturas e entrarmos, ao fundo, no hall de pinturas de salão. Ao lado de nomes como Ernest Meissonier e William Bouguereau, é primeiramente Alexandre Cabanel que nos faz prender o fôlego: sua obscura representação de Paolo e Francesca, a famosa narrativa do casal luxurioso do Canto V da Divina Comédia de Dante, evoca o espírito de ilustração de textos clássicos.

Ao observarmos a pintura adjacente, no entanto, o olhar se choca com uma dubiedade. Vemos uma cena comovente: um pai lamenta o filho morto – será Zeus, o deus que após destronar seu pai e derrotar Titãs, é o soberano mais temido do Olimpo? No entorno, duas figuras aladas trazem o corpo – personificações míticas ou arcanjos? Mesmo a coroa de raios em torno da cabeça do deus, no modo como é representada, não deixa de ser ambígua ao demonstrar certa semelhança com uma auréola. Vamos à legenda, onde afinal lemos: Sarpédon. Estamos no Canto XVI da Ilíada de Homero. Enquanto gregos e troianos digladiam-se brutalmente, os deuses do Olimpo assistem ao teatro da tragédia humana: salvam seus guerreiros prediletos e deixam outros perecerem. Manipulam o destino ora favorecendo uns, ora castigando outros, e as razões por trás disso são, não raro, bem humanas: a ofensa à honra, o despertar do ciúme, a afronta ao status quo das deidades. Como nos esclarece o helenista norte-americano Bernard Knox (2011) em sua Introdução à Odisséia, a ira dos deuses recai frequentemente sobre os mortais, mesmo que não sejam culpados diretamente, e suas vidas devêm insignificantes quando o que está em jogo é o prestígio ou a sede de vingança de um deus poderoso. É precisamente um episódio como esse que tem palco no Canto XVI do poema.

Na mitologia clássica, a deusa Hera, esposa traída e vingativa de Zeus, além de tomar partido dos gregos na batalha de Tróia, persegue amantes e filhos espúrios do marido em diversas narrativas mitológicas. O episódio mais conhecido é a morte de Héracles (filho de Zeus com Alcmena), cujo pano de fundo é semelhante ao do tema que Henri Lévy escolhe como referência para seu quadro: Sarpédon, lutando ao lado dos troianos e sendo, igualmente, filho de Zeus com a mortal Laodâmia1, é também vítima da ira da deusa, que urde seu fim convencendo Zeus a permitir que Pátroclo, o escudeiro do herói Aquiles, o derrote em batalha, como vemos nos seguintes versos (v. 433-61):

[Zeus]: “Dói-me que o mais caro entre os humanos, Sarpédon,
a Moira-Morte o dome sob as mãos de Pátroclo […]”
Então, olhos-de-toura, Hera augusta, lhe torna:
“Que palavras são essas, ó terribilíssimo
Croníade? Um ser mortal, […]
deixa que ele pereça no violento embate,
domado pelas mãos de Pátroclo Menécio.
Assim que a psiquê e o éon vital dele despeguem,
manda que a Morte, Tânatos, e Hipnos, o Sono,
o transportem de volta ao vasto país dos Lícios,
onde a família e amigos lhe darão […]
o tributo devotado aos mortos.”
Disse. E escutou-a o pai dos homens e dos deuses.
E choveu sobre a terra um orvalho de sangue,
honra ao filho dileto […].

No fragmento, além de um aspecto primordial da cultura grega arcaica – o apreço pelos ritos funerários do morto (moeda com a qual Hera argumenta com Zeus) –, notamos um ponto que nos é imprescindível: Zeus como o “terribilíssimo Croníade”2, ou aquele que uma vez detendo a supremacia, sendo o mais forte e temível deus do Olimpo, não deveria demonstrar hesitação diante da iminência da morte de um filho que teve com uma mortal. As passagens que demonstram a ira, o poder, e mesmo a força bruta de Zeus se proliferam pela Ilíada, e vale lembrar que a própria Hera, por ser sua esposa, desperta receio nas outras divindades ao lhes endereçar pedidos, os quais são atendidos devido ao tempo diante do poder de Zeus – como Afrodite, no Canto XIV, no episódio em que Hera lhe demanda seu cinto de sedução: “não posso, nem devo opor-me à tua palavra, pois dormes nos braços de Zeus poderosíssimo” (v. 211-13). Em seguida, no Canto XV, é a própria Hera que se vê coagida, quando Zeus, tendo sucumbido à sua sedução e percebendo as consequências de se distrair da guerra, a ameaça (v. 14-24):

[Zeus]: Maranha maligna
a tua, imanejável Hera, que fez Héctor
deter-se e pôs em fuga o exército. Por prêmio
dessas manhas maldosas, não sei se faço
antes colher açoites. Lembras quando, do alto,
te suspendi, aos pés, duas bigornas; às mãos
grilhetas inquebráveis, de ouro? Em meio às nuvens,
no éter, pendias. Os deuses no Olimpo se iravam:
não te podiam soltar, […]
aquele que o tentasse, do limiar do céu
o arremessava à terra, já sem forças, frouxo.

Portanto, Zeus cogita açoitá-la e faz menção a um episódio anterior em que teria prendido os pés e mãos de Hera com grilhões e bigornas, fulminado ainda qualquer outro deus que tentasse auxiliá-la. Esses exemplos já nos caracterizam com certa precisão a conduta e o temperamento do deus dos trovões em sua matriz referencial, mas antes de retornarmos à pintura de Henri Lévy, é de igual importância observarmos uma representação grega desse mesmo contexto originário. Trata-se de uma das faces da Cratera de Eufrônio, um vaso no estilo kalyx (utilizado para misturar água ou vinho) que data do século VI a.C. (figura 2).

Nele observamos quatro figuras, da esquerda para a direita: Sono (Hypnos); Hermes Mensageiro; Sarpédon, que jaz sangrando e moribundo ao chão; e por fim a Morte (Thânatos). Enquanto Hermes levanta a mão em gesto fúnebre, Sono, com trajes brancos, e a Morte, com trajes negros (perceba-se o preenchimento com hachuras), erguem o morto, um de cada lado, em preparação para levá-lo de volta à Lícia. Todas as figuras expiram seus nomes – as “palavras aladas” do texto homérico –, que são escritos com o sentido de acordo com a posição onde se encontram: uma forma antiga da grafia grega. E o mais importante: não vemos Zeus presente na cena, o que, no modo de representação escolhido pelo artífice, está perfeitamente de acordo com a passagem em que é dada a ordem derradeira de retirada do corpo do campo de batalha (XVI, v. 666-683):

A Apolo disse então o ajunta-nuvens Zeus:
“Do sangue escuro, Febo dileto, depura
Sarpédon […]; levando-o bem longe […];
depois, a portadores velozes o entrega,
aos gêmeos Sono e Morte, que o conduzirão
ao opulento e vasto país dos Lícios […].”

Recapitulando a sequência narrativa, temos: 1 – Hera convence Zeus a deixar que Sarpédon morra em batalha com Pátroclo; 2 – Zeus observa a luta e decide o momento de sua morte; 3 – Zeus dá a ordem para que Febo Apolo purifique seu corpo e que Sono e Morte o levem de volta à Lícia. A partir daí, a personagem não é mais citada e, no fim do Canto, volta-se para outro duelo no qual Pátroclo morrerá enfrentando Heitor. Em nenhum momento o deus se vê in loco junto a Sarpédon derrotado. A personagem é retirada do combate (e assim da narrativa) sem que Zeus deixe de assisti-lo do cume do Olimpo, e, portanto, à distância; e mesmo se ele expressa seu conflito diante da situação, o faz igualmente de modo feroz, isto é, fazendo chover “um orvalho de sangue, honra ao filho dileto”.

Voltemo-nos agora para o Sarpédon de Henri Lévy. Retornamos ao hall de pinturas de salão. Nossos olhos deslizam novamente sobre a magnífica pintura a óleo da segunda metade do século XIX. Por um lado, existe uma clara correspondência iconográfica que se revela na ilustração de elementos como o Monta Ida (Olimpo), erguido da parte inferior esquerda; a presença de adereços como coroas com formas que lembram asas e chifres na figura de Sono, com manto cinzento e asas alvas, à esquerda e mais ao centro da composição; e a Morte, com manto em azul-ciano e asas enegrecidas, à direita e na parte mais inferior da composição; e então na parte superior direita da pintura, na qual enxergamos, logo abaixo do capitel de um pilar do palácio celestial, a cabeça de Zeus, em posição de perfil, debruça-se e alcança com os braços o corpo de Sarpédon, que lhe é trazido e erguido por Sono e Morte, envolto em um manto ao mesmo tempo rubro e róseo. Com uma das mãos, o deus-pai segura-lhe a cabeça – seu rosto e sua boca quase a tocam; com a outra, ele busca a do filho, com o braço dobrado sob o peito, e puxa seu corpo para próximo de si; a figura do guerreiro morto desfalece com um braço pendente – assim como suas pernas, sem força, que nos evocam a morte e a perda das forças na derrota.

Seu corpo límpido compõe, junto com as belíssimas asas abertas da figura à direita, o centro de luz que chama primeiramente nosso olhar, ao passo que, no momento seguinte, vemos a cena da lamentação paternal. Só então nossa atenção se dirige para a fluidez das asas suspensas, em repouso, da figura abaixo, com seu manto azul-ciano esvoaçante. Em seguida, as densas nuvens e o monte escuro nos fazem recompor o invólucro da cena, enquanto nosso olhar passa a notar elementos secundários em sua riqueza de detalhes. Notamos os pés suspensos, e o matiz azulado presente nas asas de Morte; há também uma coruja, fincada na névoa; na coxa de Sono, uma aljava, enquanto seu manto sem cor se esvoaça, e sua coroa tem ricos ornamentos; o sudário do guerreiro é esticado pela Morte, e lhe sustenta no ar; protuberâncias da rocha nos chamam atenção para um pilar do palácio celestial, e vemos seu capitel; por fim, vemos uma águia, símbolo do deus dos trovões e, adjacente a ela, é ele mesmo que surge, envolto em tecidos dourados, exibindo porte físico, barba e cabelos que pendem de sua face, prostrada sobre o cadáver do filho querido, morto em batalha. Uma auréola dourada de pequenos raios circunda sua cabeça. Choramos a morte da prole dileta junto com o pai dos céus. E é exatamente por isso, esse pathos de lamentação compassiva operante na reconstrução de uma referência textual, que podemos afirmar definitivamente: perfazendo um arco temporal de quase três mil anos entre o texto de origem, a Ilíada, e sua representação, já não estamos mais diante do terribilíssimo filho de Cronos.

Além disso, Henri Lévy imaginou uma cena posterior à narrativa homérica, uma cena suplementar. Entre outras palavras, o artista fez uma montagem sob a narrativa, como se antes de um deles sair de cena, ocorresse o encontro de personagens que na sequência original se mantêm à distância, e cujas aparições em cenas se alternam de modo desigual em relevância (como já comentado anteriormente). Essa foi a manobra necessária para deificar o herói morto – que aqui é o protagonista – e compor a cena do pathos de lamentação paternal. Se lançarmos novamente um olhar para o vaso de Eufrônio, veremos como as representações de Sono e Morte, descritos por Hesíodo na Teogonia como “os filhos da lúgubre Noite, Sono e Morte, deuses terríveis” (v. 758-9), foram também suavizadas na composição, conformadas em um revestimento de criaturas celestes, à semelhança dos anjos da iconografia cristã; as figuras da cratera, ao contrário, portam trajes belicosos: elmos e malhas de ferro.

Dessa forma, podemos dizer que o quadro é construído através de um deslocamento de personagens na narrativa, que se unem em uma composição dramática, a qual não é de todo condizente com o discurso que pretende representar: o deus terrível é agora compassivo; os irmãos tenebrosos, angelicais; tudo, por fim, rearranjado, reconstruído por uma lógica de montagem. Essa reconstrução permite que o protagonista morto e lamentado em cena seja gatilho do pathos mencionado – mecanismo possibilitador da construção de uma dramaticidade envolvendo o amor (Eros) e a morte (Thânatos), por meio de narrativas clássicas. Apesar de serem lugar-comum da pintura acadêmica, tais procedimentos revelam, como visto, um engajamento criativo paralelo a um interesse pela criação da imagem que nos faz pensar na arte contemporânea: em geral, podemos observar tal interesse na arte de hoje em dia? A questão, relacionada à situação que gostaria de chamar de a perda da imagem em nossa época, é pertinente e pode ser colocada após uma outra: aquela da situação e do juízo de valor que pode se fazer da obra de Henri Lévy e da pintura acadêmica em geral em uma história da arte.

A pintura acadêmica: uma revalorização no contexto contemporâneo

O crítico de arte Rodrigo Naves, em artigo dedicado a Almeida Júnior, faz menção a Alexandre Cabanel – com quem Henri Lévy teve aulas a partir de 1858 na École de Beaux-Arts – como “o sumo sacerdote do academicismo declinante” (2011, p. 140). Tanto em relação ao artista em questão quanto ao período histórico-cultural mencionado, essa visão, predominante nos “manuais” de história da arte, é ainda compartilhada por muitos, mas vem, sobretudo a partir dos anos 2000, sendo questionada e reavaliada. Mais que isso: seu estudo aprofundado, no espírito de novas histórias da arte, atentas às singularidades, nuanças e sutilezas de seus objetos, vem investigando como o imaginário e o gosto suscitado por esse tipo de arte figurativa continua reverberando no decorrer do século XX até os nossos dias, criando relações com outras constelações de objetos que requerem, igualmente, consideração. É nesse sentido que se apresenta o artigo “Académisme et modernité dans la peinture française de la seconde moitié du XIX ème siècle autour d’Édouard Manet”, de Atsushi Miura (2009), mas antes de o analisarmos, é necessário colocar bem a questão.

Em 1814, Quatremère de Quincy – arquiteto e teórico classicista, um dos principais defensores de Winckelmann à sua época – defende, em seu Le Jupiter Olympien (2018), baseado em gravuras supostamente feitas a partir de escavações arqueológicas, a policromia na estética clássica. Já em 1848, Théophile Gautier comenta em seu Salon de 1848 as seguintes linhas: “todos os mitos antigos estão para ser refeitos. Os velhos emblemas nada mais significam. É necessários criar de todas as partes um vasto simbolismo que corresponda às ideias e demandas do tempo teológico, político e alegórico” (2001, p. 6); e ainda, em 1860, quando da inauguração do monumento da fonte São Miguel, Gabriel Davioud (então seguidor de Quincy) causa escândalo ao empregar a policromia trazida em voga por seu mestre, gerando críticas e entusiasmo por parte daqueles que viam isso ora como sinal de um classicismo “degenerado”, ora como a originalidade de algo “totalmente novo”, como nos esclarece Dominique Jarrasse em seu artigo “La fontaine Saint-Michel : le classicisme controversé” (1982). Disso deduzimos que a tensão entre tradição e inovação se revela problemática no seio mesmo daquilo a que se associa o selo de clássico. O caso de Delacroix, que se fazia herdeiro da junção de Michelangelo e Rubens, descrito por Baudelaire no Salon de 1845 como “o pintor mais original dos tempos antigos e modernos” (1868, p. 5), também é de extrema importância por unir admiradores díspares tanto no presente – do que a pintura Hommage à Delacroix (Henri Fantin-Latour) de 1863 é a melhor descrição – como na posteridade, chegando até Cézanne e Van Gogh – tendo o primeiro lhe imitado a Pietà, e o último o homenageado em sua última pintura inacabada, Apothéose de Delacroix.

O trabalho de Miura (2009), partindo da exposição Vencedores e Vencidos (2001), realizada em Copenhague, problematiza a ideia da classificação simplista a partir do título da exposição para discutir questões de valor e estética que têm como procedimento reconhecer Couture e Cabanel como pintores que, apesar de se ligarem à vertente acadêmica (o primeiro abre seu atelier após competir, sem vitória, sucessivas vezes ao Prêmio de Roma da École de Beaux-Arts; o segundo, além de professor dessa instituição, também dava aulas em seu atelier), mantiveram grande proximidade com a vanguarda impressionista.

Pode-se dizer isso na medida em que, primeiro, integrantes desse grupo foram seus próprios alunos, saíram de seus ateliês, levando seus ensinos para outras direções, mas ainda sim se apropriando deles; segundo, por ambos os grupos de artistas não apenas terem formação semelhante como disputarem o prestígio perante as mesmas instituições (ao que, evidentemente, o Salão dos Recusados fora uma reação – mas ainda assim, e por isso mesmo, uma consequência), fossem do Estado ou da burguesia – Miura chega mesmo a citar que ao final de sua vida, Manet se encaminhou ao Prefeito do Sena (hoje Departamento de Paris) para fazer pinturas murais no Hotel de Ville; terceiro, no que diz respeito à estética, é evidente que a situação se abre na complexidade de diversas particularidades, mas ao menos, podemos esboçar o seguinte: muito diferentemente de possibilitar uma classificação entre tradição declinante e vanguarda vencedora, a situação da pintura na segunda metade do século XIX na França foi totalmente permeada por trocas, inter-relações, críticas recíprocas e reapropriações
ambivalentes – é assim que a bipolaridade de Édouard Manet é posta em cena, ao que poderíamos, com os estudos de Jorge Coli (2010), adicionar o classicismo “pervertido” de Ingres, ou mesmo, o “novo classicismo”, de Degas.

A partir disso, podemos concluir que tanto uma diferenciação absoluta das duas tendências quanto uma homogeneização plana se veem relativizadas diante da observação atenta da especificidade dos objetos artísticos. Assim, Henri-Léopold Lévy insere-se nesse contexto multifacetado, e seu vínculo a uma ou outra tendência não determina, a priori, qualquer possibilidade de juízo de valor.

Ao final de seu estudo, Miura (2009), utilizando como referência a influência evidente de uma pintura de Jules-Louis Machard (Séléné, Museu Chi Mei), de 1874, em uma propaganda de saquê japonesa (Gekkeikan, Museu e Livraria da Universidade de Arte de Musashino), de 1933, postula que “poderíamos compreender assim que a tradição do nu feminino acadêmico perdurou de forma ininterrupta no imaginário popular do século XX” (2009, p. 78, grifo aposto) – ao que eu gostaria de, a partir de uma ilustração de Amos Nattini para o Canto XX do Inferno de Dante, publicada pela primeira vez em 1928 (figura 3), acrescentar algumas questões a respeito da arte e do consumo de produções estéticas na atualidade.

Na obra de Nattini enxergamos uma espantosa maestria técnica operante no apuro de representação das formas humanas, seguindo uma tendência naturalista que, apesar disso, ilustra uma narrativa fantástica de um dos épicos mais clássicos da cultura ocidental, por meio de uma lógica de apresentação que prevê a edição e o enquadramento para impressão. Essa combinação de realismo das formas, ilustração de fantasia e apresentação em formato tecnicamente reproduzível – prevista no modo de construção da imagem – prediz certos elementos do cinema fantástico contemporâneo mas também os videogames e as séries televisivas, com todos seus efeitos especiais e a maravilhosa construção de uma fantasia que é montada de forma a gerar uma imagem que se aproxime tanto quanto possível da realidade no exato momento em que se afasta dela. Podemos compreender, como atesta Miura, que não apenas o nu feminino sobrevive no imaginário do decorrer do século, mas também toda uma importância dada à representação e ao virtuosismo técnico não é de forma alguma “erradicada” – antes, ela continua exercendo sua influência, sobretudo no gosto do público.

Há aí, no entanto, ao mesmo tempo, o sintoma de um paradigma e a emergência de um paradoxo. Pois a questão da figuração como capacidade de reconstruir e representar objetos da realidade de modo plástico nos faz, justamente, puxar um fio que perpassa toda a história da arte e de suas teorias. Talvez possamos afirmar que o conceito de “arte” surja em ambientes onde determinadas representações são feitas e causam efeitos suficientes para que discursos sejam criados para e a partir delas. E uma vez que haja arte, a representação parece quase sempre fornecer um critério para que juízos e jogos de linguagem sejam criados em relação a ela. Basta pensarmos sobre a fábula dos pássaros de Plínio, a lenda giottesca do retrato de “modelo vivo” de Vasari3 e a crítica nascente de Diderot: todas tomam a capacidade de representação, mesmo que em diferentes contextos com diferentes estatutos, como critério da boa arte. Seja como capacidade de iludir (PLÍNIO, O VELHO, 1985), índice de distinção da renascita em relação ao medievo (VASARI, 1998) ou identificação com a “natureza” ou a “verdade” (DIDEROT, 1876), a boa representação, tal como se acredita que deva ser, parece constituir, em cada época, um paradigma crítico – de compreensão, fruição e gosto. Talvez o rompimento que o Impressionismo tenha feito possa ser compreendido no sentido de ter sobre-erguido o paradoxo subjacente a esse paradigma: valoriza-se o fim representativo (icônico) ignorando o meio material (concreto). Nossa capacidade de reconhecer o conflito entre a representação da realidade em uma linguagem e a realidade dessa própria linguagem4 é então muito recente – uma tomada de consciência para a qual as vanguardas e a arte moderna foram justamente a condição. Mas isso terá sido compreendido pelo grande público? Terá tido alguma influência no gosto e no olhar que se lança à arte pela maior parte das pessoas? Especialmente hoje, em uma época em que as salas de cinemas dos shopping centers estão lotadas e sites de serviços de séries por streaming como Netflix têm milhares de assinantes, enquanto as exposições de arte contemporânea parecem cada vez mais, para esse mesmo público, serem sinônimo de uma distração intelectualista vazia e sem sentido? Por essa perspectiva, a “vanguarda” não parece realmente ter sido muito “vencedora” – e penso que isso se relaciona diretamente com nosso mal-estar em relação à arte contemporânea – por evidenciar o fato de que, mais intensamente após os anos 1960, o que houve foi, na verdade, uma perda da imagem, que se torna em muitos casos uma perda do engajamento criativo. Perdemos a imagem sem compreendê-la – e isso significa também sem compreender sua força e as razões do prazer que ela nos suscita. E se o grande público busca outras opções estéticas também sob um critério de prazer da imagem, como poderíamos dizer que a escolha não é legítima? Ao contrário, ela o é – e deve ser levada em consideração, como afirma justamente Miura (2009). Diante de tal situação, penso que seja proveitoso para a arte contemporânea e sua relação com o público a recolocação do problema da imagem e da representação. Sendo assim, parece-me oportuna a retomada e a reavaliação da pintura da segunda metade do século XIX como um todo, em todos os seus nuances e particularidades – do que o Sarpédon de Henri-Léopold Lévy seria um exemplo –, assumindo uma postura e um olhar maduro diante da figuração e da construção da pintura como linguagem e no que isso pode nos dar a conhecer sobre as diversas plataformas pelas quais a arte transita hoje, bem como suas inter-relações complexas, seus ganhos e perdas e possíveis caminhos a serem seguidos.

Notas de Rodapé

1   É assim em Homero, conforme narrado no Canto VI. Em outras versões, Sarpédon aparece como filho de Zeus e Europa, outra mortal.

2  No texto em grego da edição bilíngue utilizada neste trabalho: “αἰνότατε Κρονίδη”. Sendo que o adjetivo que antecede o epíteto de parentesco com Cronos aparece sob forma hiperbólica. É exata, portanto, a tradução de Haroldo de Campos.

3  A respeito especificamente dessa fábula, discorre Georges Didi-Huberman no artigo “Ressemblance mythifiée et ressemblance oubliée chez Vasari”, disponível no endereço: https://www.persee.fr/doc/mefr_1123-9891_1994_num_106_2_4334.

4  Didi-Huberman também se debruça de modo exemplar sobre essa questão no artigo “Questão de detalhe, questão de trecho” em Diante da imagem (ver Referências).

Referências Bibliográficas

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Lista de Imagens

1   Henri-Léopold Lévy, Sarpédon, 1874, Óleo sobre tela, 306 x 234 cm. Museu D’Orsay, Paris. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Henri_l%C3%A9vy,_sarpedon,_1874.JPG .

  Eufrônio, Sarpédon, cerca de 515 a.C., vaso kalyx de figuras vermelhas, altura 46 cm, diâmetro 55 cm. Museo Nazionale Etrusco di Villa Giulia, Itália. Fonte: http://traffickingculture.org/encyclopedia/case-studies/euphronios-sarpedon-krater/ .

3   Amos Nattini, Canto XX, Inferno, litografia, 36 x 27 cm. Primeira Ed. 1928, Casa Éditrice Dante, Roma. Fonte: https://blogdabn.wordpress.com/2017/05/21/fbn-serie-documentos-literarios-a-divina-comedia-ilustrada-por-amos-nattini/