SOBRE O MAU PINTOR | BUSCA, IMPOSSIBILIDADE E FRACASSO - A PINTURA COMO LINGUAGEM IMPERFEITA
ARTIGO DE HUGO HOUAYEK
Hugo Houayek desenvolve uma pesquisa artística sobre o campo pictórico, suas margens e limites, entendendo a pintura como um corpo de mil olhos que não para de olhar incessantemente; de maneira que a pintura se comporta como uma linguagem, com todas as suas imperfeições, impossibilidades e fracassos. Doutor em Linguagens Visuais no programa de pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes na UFRJ. Foi professor substituto no curso de Artes Visuais na EBA na UFRJ.
RESUMO
O artigo abarca conceitos, tais como fracasso e impossibilidade, que se relacionam com a posição do artista contemporâneo no mundo e de como este pode atuar criticamente. Aproximando o campo pictórico do campo linguístico, o objetivo do texto é apresentar a atividade artística como o encontro com algo indizível.
PALAVRAS-CHAVE
Arte contemporânea, Linguagem, Pintura
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.6, Nº15, MAR., ANO 2019
VERBETES DA ARTE
Do rigor na ciência.
… Naquele Império, a Arte da Cartografia logrou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. Menos Adictas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas.
Suárez Miranda: Viajes de Varones Prudentes, livro quatro, cap. XLV, Lérida, 1658. Jorge Luis Borges, O fazedor, 1960.
Desconfiar das palavras o suficiente para acreditar no mundo ou desconfiar do mundo o suficiente para acreditar nas palavras. Talvez devamos isso à literatura, que apresenta um movimento duplo de afirmação e de recusa, de crença e de dúvida. Esta relação ambígua entre as palavras e o mundo é extensível a outras formas de modelar a experiência enquanto representação. A imagem fotográfica, por exemplo, supõe uma relação com o mundo que se define por uma paradoxal e simultânea afirmação da identidade e de produção da distância — ao mesmo tempo no mundo e fora dele, com o mundo e contra ele, uma imagem e sua legenda. Todas as formas de modelação do mundo enquanto coisa humana supõem esta ambiguidade: exigem a remissão da representação para a coisa, mas implicam com a mesma força a consciência da sua intransponível dissociação. É a incapacidade de transferência adequada das significações com seu mutismo obstinado — o que Jacques Rancière (2002, p. 22) chama de a palavra muda das coisas. É um segredo metafísico que nunca iremos alcançar, uma busca pelo silêncio para além do som.
Imaginar um mapa que coincida com a realidade que representa encena aqui os limites da representação e consequentemente da linguagem. Os limites ditados pela incapacidade da palavra ou da imagem em apreender o mundo e transpô-lo para os seus discursos são os limites da própria linguagem. O sucesso absoluto da representação significaria a sua total transparência e consequentemente o seu fim. O fim da linguagem se daria por uma completa identificação entre a representação e o real, o que acarretaria necessariamente à negação da sua natureza representacional. A redução do mundo à sua própria imagem, ou às suas próprias palavras, implicaria a supressão de toda linguagem enquanto experiência significante. A realização da representação não traduz aqui o questionar do real, mas o questionar da convencionalidade de sua representação. Fazer uma transmutação direta das coisas em palavras significa anular a distância sem a qual a palavra não vive.
Para além da fé cênica na representação que subjaz ao texto de Borges, a narrativa exigiria a constância do próprio mundo, isto é, o discurso só poderia cobrir em absoluto a realidade se esta fosse perene e ininterrupta, entretanto a realidade sempre escapa porque está em permanente transformação, é instável. Distintamente, aprendemos a desconfiar no mesmo plano das palavras e da realidade, das coisas e dos seus correlatos representacionais. Não apenas as palavras não são susceptíveis de coincidir com as coisas, como estas não coincidem consigo mesmas.
Em Freud, em Schopenhauer, em Nietzsche, em Hegel, em Platão, nos pré-socráticos, e enfim, em todo filósofo, não se acha dita, não se acha escrita, não se acha designada a última palavra ou um significante que venha pôr um termo definitivo à representação total. Todos os filósofos não fizeram outra coisa senão tentar apreender um significado que só se dá, paradoxalmente, no movimento centrifugo de sua própria nomeação, ou inscrição. Essa incompletude do simbólico, mais exatamente, essa instabilidade do real no momento em que a falta estava para ser preenchida, resulta ambígua na medida em que é por meio dela que o sujeito cria e recria, constrói e destrói, une e desune. De modo que tal dinâmica já manifesta um vínculo com a qual e pela qual a significação não cessa de resistir, de fugir, de se subtrair e, ao mesmo tempo, de desdobrar e de superar toda e qualquer tentativa de representação. A linguagem se desenvolve numa rede de significantes que não cessam de terminar, porque estão sempre começando ou recomeçando. A incessante realização da realidade é a própria impossibilidade de tradução do real.
Podemos tomar emprestada a ideia de tradução do campo linguístico: a tradução entre dois idiomas é um procedimento fracassado. Nunca se alcança uma transparência perfeita naquilo que é resultado de uma tradução, restando sempre algo opaco e, por conseguinte, intraduzível entre linguagens que se confrontam. A opacidade afirma a impossibilidade de redução de uma linguagem a outra diferente. Temos a intraduzibilidade do outro, pois a tradução é sempre truncada. Há sempre algo intraduzível em permutas linguísticas, o que implica uma inevitável perda de significados naquilo que é transmitido, é o momento em que os ruídos aparecem. Qualquer linguagem só pode contar com a vagueza de seus termos e na imprecisão de seus termos. Além disso sabemos que uma palavra isolada não comunica nada, ela precisa sempre se relacionar com outras palavras. Talvez para almejar alcançar o além da linguagem usando a própria linguagem precisemos apostar no excedente de alguma poética.
O linguista brasileiro Joaquim Mattosso Camara Jr. lembra que o antropólogo norte-americano Franz Boas, pai da linguística descritiva em seu país, chama a atenção ao dizer que:
se toda a massa de conceitos, com todas as suas variantes, fosse expressa nas línguas por complexos de sons inteiramente heterogêneos e não relacionados entre si, surgiria a consequência de que ideias intimamente relacionadas não mostrariam a sua relação pela relação correspondente dos seus símbolos fonéticos. (CÂMARA JR., 1970, p. 24).
Ou seja, é a contingência da imperfeição lógica das línguas humanas que são conduzidas à circunstância de que nenhum processo é levado coerentemente às suas últimas consequências. Isto é a impossibilidade de a linguagem abranger uma totalidade, um todo. A razão estaria no princípio de uma economia expressional intrínseca às línguas humanas. Aqui se apresenta a impossibilidade de abranger uma totalidade, a impossibilidade de fazer um mapa que seja do mesmo tamanho do território representado. Uma linguagem perfeita seria como um mapa na escala 1:1 — o representado e a representação coincidiram perfeitamente. Contudo não podemos esquecer que um mapa sempre será uma representação incompleta de um território maior que ele. A linguagem é uma estrutura em que podemos ter uma compreensão inexata ou deficiente.
O fracasso seria a marca e a condição da imperfeição inerente à linguagem. A linguagem perfeita seria uma linguagem completa e que incluiria tudo, tal linguagem não existe, e sempre que buscamos nos aproximar de tal linguagem, fracassamos — nenhuma linguagem é totalmente transparente, toda linguagem é incompleta. Para uma linguagem abarcar tudo, ser capaz de dizer tudo e não ter nenhum ponto cego e indizível, essa linguagem, qualquer que seja, precisaria ter uma estrutura de leis inquebráveis, eternamente válidas e que, com tal ordenamento tão preciso, não poderia permitir nenhum tipo de falta de controle ou algo por acaso. Um controle total em qualquer linguagem é uma impossibilidade. O que seria essa linguagem com seu controle total? Uma procura por uma pureza, com a eliminação e a expurgação de elementos que atrapalhem e não permitam uma linguagem transparente, sem imperfeições e sem falhas. Essa impossibilidade da transparência na linguagem foi entendida por Marcel Duchamp como uma falha no ato criador. Seria uma falha que representaria a inabilidade do artista em expressar inteiramente sua intenção. A esta diferença entre o que queria realizar e o que na verdade realizou, Duchamp (1986, p. 71-74) chama de o “coeficiente artístico” contido na obra de arte.
Leis inquebráveis e eternamente válidas precisam de condições paradisíacas para existirem. No Jardim do Éden todos os dias seriam indistintos, uma semana equivalente à outra, um mês idêntico ao outro, um ano cópia do outro. Essa é a descrição da vida paradisíaca de Adão e Eva — uma rotina diária eterna e monótona, que teria um passar do tempo homogêneo. Mas a humanidade perdeu essa condição paradisíaca, fomos expulsos do Éden. Podemos entender a perfeição como um conceito metafísico. A metafísica acredita numa realidade suprema que, por definição, transcende toda linguagem — nenhuma figura de linguagem pode dar conta daquilo que repousa por trás do mundo visível e físico — é o esforço do humano mortal em apreender uma realidade divina.
A imperfeição surge porque os movimentos da linguagem são incessantes, mas não infinitos. O discurso humano é finito, no entanto, há sempre uma infinidade de sentidos a serem desenvolvidos e interpretados. Essa infinitude de sentidos é aquilo a que se deve manter atenta toda escuta da palavra. O discurso que se apresenta sem fim nem origem determináveis, proveniente de uma humanidade que repete sem compreender o que diz, é, em última análise, apenas uma sequência de repetições de citações. A linguagem está presa na produção cotidiana do mundo e participa dela, tem a mesma natureza que as tabelas, os números, os balanços, os mapas — palavra de ordem, imposição, sintetização, decisão, relatório, código. Toda linguagem pode ser entendida como um mapa imperfeito.
Objetos de arte são estruturas de linguagem e não podem ser encontrados fora desta. Nascem a partir do discurso e modificam-se no curso de sua própria história em contato com outros discursos, quando reinterpretados em perspectivas diversas. A pintura não é uma linguagem pura, sua condição é estar sempre corrompida por outras linguagens.
Walter Benjamim nomeia uma língua totalmente transparente de “pura língua”: “A história universal pressupõe a língua, na qual todo texto de uma língua viva ou morta deva ser integralmente traduzido. Ou melhor, a própria história universal é essa língua” (BENJAMIN, 2014, p. 241). Perceber que se fosse possível escrever uma história universal teríamos que pressupor uma língua universal — a “pura língua” — que poria fim à confusão das línguas — confusão que teve origem com a construção da torre de Babel1. A história universal formaria um todo com sua língua universal. Uma linguagem universal que não seria escrita, mas compreendida integralmente por todos os homens, tal como a lenda popular cristã das crianças que, por terem nascido no domingo, têm o dom de entender os pássaros.2
O acesso à esfera da linguagem é sempre mediado e condicionado pela história. O homem, ao falar, não inventa os nomes, nem estes emanam dele como uma voz animal ou gutural, pelo contrário os nomes desceriam ou cairiam através de uma transmissão histórica. É importante perceber que a origem do nome escapa ao homem. Giorgio Agamben (2015) aponta como é interessante entender este aspecto do acesso humano à linguagem, que o acesso aos planos dos nomes só se dá pela transmissão, ou seja, pela história. Uma história em que se pensava ser um “diz-se assim” é na verdade uma história que “assim se dizia”. Agamben explica como os nomes são transmitidos:
A razão não pode encontrar fundo nos nomes, não pode dar conta deles porque eles lhe chegam historicamente por descendência. Essa infinita ‘descida’ dos nomes é a história. Portanto, a linguagem antecipa sempre, quanto a seu lugar original, o homem falante, dando um salto infinito, para além dele, em direção ao passado e, ao mesmo tempo, em direção ao futuro de uma descendência infinita, de modo que o pensamento não pode jamais terminar nele. E essa é a irremediável ‘sombra’ da gramática, a obscuridade que é originalmente inerente à língua e funda — na necessária coincidência de história e gramática — a condição histórica do homem. A história é a cifra da sombra que esconde o acesso do homem ao plano dos nomes. Enquanto o homem não puder encontrar fundo na linguagem existirá transmissão dos nomes e enquanto houver transmissão dos nomes haverá história e destino. (AGAMBEN, 2015, p. 36).
Devemos perceber a impossibilidade de acesso direto ao plano dos nomes, um plano que podemos entender como divino — afinal aquele que nomeia é um demiurgo, ou seja, somente quem cria é que nomeia.3 Podemos entender como um plano paradisíaco, pois Adão nomeou todas as coisas no mundo, um plano onde tudo se repete infinitamente e nada se altera, uma perpétua monotonia. Entretanto a porta de acesso ao plano divino ou paradisíaco estaria selada aos homens. Entender que a própria impossibilidade de acesso direto a esse plano dos nomes consiste, ou mais precisamente, é a história. A história seria aquilo que esconde a porta de acesso ao plano dos nomes.
Podemos entender que o pecado original que expulsa o homem do Paraíso é a queda que se dá dentro da linguagem, a queda da pura língua para uma linguagem que conhece o indizível. A pura língua seria perfeitamente transparente e não poderia existir o problema do indizível. O estatuto dessa língua adâmica é o de uma palavra que não comunica nada além dela mesma e, por conseguinte, a questão da metafísica e da linguística coincidem. A pura língua visa o que permanece indizível em toda língua, portanto ela é inacessível — não podemos retornar ao paraíso. Uma língua universal e uma história universal seriam tarefas infinitas, e como tal jamais realizáveis.
Buscar o impossível.
O artista é o que dá o tiro, mas a trajetória da bala lhe escapa.
Frederico de Morais, Contra a Arte Afluente: o corpo é o motor da “obra”, 1970.
Podemos entender que o desejo de Frenhofer por Catherine Lescault é uma procura pelo milagre da pintura em metamorfosear o quadro em corpo, é uma busca pela perfeição e consequentemente uma busca pelo impossível. Uma procura por uma linguagem totalmente transparente, uma linguagem invisível. Com a mesma perseverança que faz Ulisses viajar durante 10 anos para retornar à Ítaca, o mestre pintor pinta por 10 anos mostrando sua obsessão por alcançar a perfeição e sua recusa a aceitar a imperfeição inerente a toda obra de arte. Assim como Riobaldo que rejeita sua paixão por Diadorim e mesmo assim quer permanecer perto do amigo. Do mesmo modo como Moisés sabe que não chegará à terra prometida, mas continua sua peregrinação no deserto. Igualmente temos personagens capazes de perceber a imperfeição da linguagem, de sua própria linguagem e mesmo assim continuam sua busca. Como nomear tal pessoa? Proponho que possamos chamá-lo de o mau pintor. Mais especificamente o mau pintor é aquele que identifica a imperfeição da pintura e mesmo assim continua sua busca.
Sabendo da impossibilidade de alcançar a terra prometida, sabendo que não iremos encontrar o Santo Graal, nem a fonte da juventude. Tendo consciência de que não encontraremos o Eldorado, não descobriremos a palavra perdida nem poderemos enxergar a face de Deus, levantamos a questão: como prosseguir? Com quem poderemos conversar sobre lutas contra moinhos, caça à baleia branca e a procurar pelo silêncio para além do som? Com quem dialogar sobre esses segredos metafísicos que nunca iremos alcançar?
Lembremos que para Cézanne o artista deveria ter alguma coisa no estômago, algo que o incomodasse por dentro. Existem lendas que justificam o sucesso militar do general-imperador francês Napoleão Bonaparte por ele possuir um demônio próprio, um gnomo vermelho que o instruía em suas conquistas. Na região ao sul da Espanha, na comunidade autônoma da Andaluzia, existe a lenda de que certos toureiros, cantadores e dançarinos de flamenco possuem o duende4, uma figura popular que esclareceria certos poderes de atração inexplicáveis e de habilidade em raras ocasiões demonstrados por esses artistas, capazes de enviar ondas de empatia e emoção para os espectadores.
O poeta espanhol Federico García Lorca5, em sua conferência Juego y teoria del duende (1933), propõe uma interpretação dessa figura, em que o duende é visto como uma alternativa tanto aos anjos quanto às musas. Os anjos voam por cima das cabeças humanas derramando bênçãos de graça e charme, e assim oferecem virtuosismos de maneira que aquele que é agraciado não precisa fazer nenhum esforço. As musas ditam e assopram a inspiração e as normas artísticas, e aqueles que as escutam não sabem de onde elas vêm. Elas fazem o artista se sentir imortal e esquecer de sua própria condição humana, na qual as musas não podem interferir. A musa vem de fora, o anjo vem de cima, em contraste, o duende habita o sangue. Não é uma questão de habilidade e sim de ter algo que sobe por dentro do corpo e queima o sangue. O duende é um poder e não um fazer, é uma luta e não um pensamento. É descendente do daemon de Sócrates, figura que era feita de mármore e sal, e que o arranhou até o dia em que bebeu cicuta. Também descende do melancólico demoniozinho de Descartes, pequeno como uma amêndoa verde, que quando estava farto de círculos e de linhas, saía pelos canais para ouvir cantar os marinheiros bêbados. Todo artista que busca a perfeição estaria lutando contra o duende, que o impele a encarar a imperfeição. O duende chega quando enxerga uma possibilidade de morte. O toureiro precisa de sua ajuda no momento final para matar o touro. Assim o artista não recebe nem é anunciado com algo, ele precisa lutar e chegar ao seu limite. O duende fere, e é uma ferida que nunca cura, que nunca cicatriza, é um poço onde nas bordas os limites das formas se confundem. Além disso, o duende não procura afetar apenas o artista, mas também o espectador, criando condições de uma comunicação direta em que facilitaria o entendimento das metáforas sem necessidade de aparatos críticos e intelectuais. Aconteceria uma distorção do tempo, frequente em sonhos e pesadelos, em que a racionalidade desaparece.
Em sua poesia, Lorca se afasta da tradicional lógica metafórica e se aproxima de uma figura que tenta escapar às análises racionais, numa tentativa de produzir um mundo de imagens misteriosas sem precisar explicar suas causas e efeitos. É a esse aspecto que Lorca denomina de duende e que possui pelo menos 4 principais facetas: a irracionalidade; é um ser telúrico (da terra); tem uma intensa aproximação com a morte e apresenta um traço demoníaco. É um ser paradoxal, é um espírito demoníaco terrestre que ajuda o artista a reconhecer os limites da sua própria inteligência, racionalidade e mortalidade. Um ser que levaria o artista ao encontro da morte e, dessa maneira, comunicaria algo. É um momento de rubor, o sangue aparece para mostrar que algo está vivo; é a erupção e o estouro, entretanto necessita de momentos de silêncio e de tremor. Estar com o duende se assemelharia ao que Goethe dizia sobre o compositor italiano Niccolò Paganini, que possuía um “misterioso poder que todos sentem, mas nenhum filósofo consegue explicar” (LORCA, 1969, p. 110, tradução do autor).6
Para Lorca, o duende deixaria o artista e o espectador cientes de sua própria vulnerabilidade. É uma tomada de consciência do seu desamparo, pois o duende expulsa a musa e o anjo, de tal maneira que cria uma dor que não teria explicação. Para o poeta, a postura humana vulnerável por excelência está na figura de São Sebastião. O historiador e crítico de arte Leo Steinberg (2008) nos lembra que, na Antiguidade, as estocadas de flechas passaram a simbolizar a pestilência e que a Itália renascentista olhava para Sebastião como seu primeiro santo da peste, seu intercessor, aquele que previne e que protege.
Mas fica a dúvida, onde encontrar o duende? Lorca sugere que podemos encontrá-lo dentro de algum arco vazio onde o vento sopra sobre as cabeças dos mortos. Um vento com cheiro do véu que cobre a cabeça da Medusa, entretanto “para buscar o duende não há mapa”7 (LORCA, 1969, p. 112, tradução do autor).
Enfim, toda pintura, em última instância, é uma tentativa de resolver um problema, que precisa ser enfrentado e solucionado. Alguns artistas tentam utilizar a pintura para dizer algo que não conseguem em outras linguagens, acreditando que com a troca de linguagem seja permitido dizer algo que é indizível. Agora sabemos que a decisão de lidar com o indizível embarca com a agonia da irresolução e daquilo que não pode ser solucionado.
Notas de Rodapé
1 A história da construção da torre de Babel é uma narrativa encontrada nos versículos 1 ao 9 do capítulo 11 do livro de Genesis da Bíblia.
2 Aqui, Walter Benjamin se refere a antiga lenda popular cristã sobre os poderes sobrenaturais das crianças nascidas aos domingos, as Sonntagskinder, que possuiriam o poder de compreender a língua dos pássaros.
3 Para os filósofos franceses Deleuze e Guatarri, é apenas no ponto mais elevado da despersonalização exercida pelo amor que alguém pode ser nomeado. Assim o nome próprio é a apreensão instantânea de uma multiplicidade. De tal forma que nome próprio seria o conjunto de infinitos compreendidos como tal num campo de intenções. Não existiria enunciado individual, nunca houve, todo enunciado seria produto de um agenciamento maquínico, isto é, uma designação de agentes coletivos que atravessam de lado a lado qualquer indivíduo. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 51).
4 Duendes são personagens da mitologia europeia, particularmente na Península Ibérica, semelhantes a fadas e goblins. A etimologia de seu nome vem da expressão “dueño de casa” (dono da casa), pelo seu caráter intrometido de encantar e se aproveitar da morada dos outros.
5 Federico García Lorca (1898-1936) foi o poeta e dramaturgo espanhol com maior influência e popularidade na literatura espanhola no séc. XX. Foi assassinado em 1936, no alvorecer da Guerra Civil de Espanha, num barranco ermo do município de Víznar, um pequeno povoado nos arredores de Granada. Seu corpo nunca foi encontrado.
6 “Sonidos negros dijo el hombre popular de España y concidió com Goethe, que hace la definicíon del duende al hablar de Paganini, dicendo: “Poder misterioso que todos sienten y que ningúm filósofo explica.”
7 “para buscar al duende no hay mapa”.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2015.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 2014.
CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1970.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995.
DUCHAMP, Marcel. O ato criador. (1967). In: BATTCOCK, Gregory (org.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 71-75.
LORCA, Frederico García. Obras completas. Madri: Aguilar, 1969.
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
STEINBERG, Leo. Outros critérios. São Paulo: Ed. Cosac Naify, 2008.
Lista de Imagens
1 Francisco Goya, Capricho nº 49: Duendecitos, 1799, gravura, 30,6 x 20,1 cm. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Goya_-_Duendecitos_(Hobgoblins).jpg
2 Mel Bochner, Language is not transparent, 1970 (versão de 2014), giz sobre tinta de parede, 182 x 121 cm. Fonte da imagem: http://www.melbochner.net/exhibitions/language-1966–2006-2011-art-institute-of-chicago/