ARTE, EDUCAÇÃO E LIBERDADE: UM OLHAR A PARTIR DE SÉRGIO FERRO E PAULO FREIRE

ARTIGO DE BRUNO SAYÃO

É mestre (2015) e doutorando pelo Programa de Pós-graduação Interunidades em Estética e História da Arte (PPGEHA) da Universidade de São Paulo (USP). Membro do Grupo de Estudos em Arte Conceitual e Conceitualismos no Museu (GEACC). Graduado (2011) em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atua há mais de dez anos como professor de arte na educação básica e na educação não formal.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.6, Nº16, DEZ., ANO 2019
ARTE E EDUCAÇÃO

RESUMO

Este artigo analisa semelhanças entre o processo criativo das artes visuais e o processo de ensino-aprendizagem, enfatizando o caráter libertador e humanizador desses. Para tanto, é utilizada a concepção de artes plásticas como trabalho “livre” formulada pelo arquiteto e pintor Sérgio Ferro, bem como a concepção de educação como prática libertadora formulada pelo educador Paulo Freire. Assim, propõe-se ao leitor um novo olhar sobre as potencialidades dos encontros entre arte e educação.

PALAVRAS-CHAVE

Artes visuais. Educação. Ensino de arte.

ABSTRACT

This article analyzes similarities between the creative process of the visual arts and the teaching-learning process, emphasizing their liberating and humanizing traits. In order to do that, the conception of plastic arts is used as “free” work, as formulated by the architect and painter Sérgio Ferro, as well as the conception of education as a liberating practice, as formulated by the educator Paulo Freire. Thus, it is offered to the reader a new sight over the potentialities of the encounter between art and education.

KEYWORDS

Visual Arts. Education. Art Teaching.

O processo de criação artística e o processo de ensino-aprendizagem apresentam uma semelhança fundamental: são práticas libertadoras. Essa consideração – recorrente no discurso de artistas, educadores e teóricos – indica um falso consenso. Isso porque as diversas vozes acerca desse tema partem de diferentes, e por vezes vagas, concepções de arte e educação.

Este artigo propõe o uso de dois referenciais teóricos específicos para refletir sobre as interseções entre arte e educação: a concepção de arte como trabalho “livre” desenvolvida por Sérgio Ferro e a concepção de educação como prática libertadora desenvolvida por Paulo Freire.

O texto está organizado em três partes: a primeira apresenta o conceito de artes plásticas para Ferro, a segunda apresenta o conceito de educação para Freire e a última baseia-se nesses dois para sintetizar uma reflexão sobre a potencialidade do encontro entre arte e educação quando são concebidas como práticas libertadoras. Assim, objetiva-se apresentar ao leitor um caminho possível para reflexão sobre as conexões entre arte e educação.

Arte como trabalho “livre”

Sérgio Ferro, arquiteto, pintor e professor, encontrou na teoria econômica de Karl Marx as bases para compreender as funções ocupadas pela arquitetura e pelas artes plásticas na sociedade capitalista. Em um primeiro momento das suas formulações, o autor reinterpretou os objetivos da arquitetura a partir do canteiro de obras. Nesse processo, identificou o desenho do projeto arquitetônico como um instrumento de alienação dos trabalhadores da construção civil que, obrigados a seguir as instruções do arquiteto, são privados da possibilidade de exercer a plenitude do seu potencial criativo, que, segundo ele, é intrínseco ao ser humano. Assim, caracterizou o canteiro de obras como um espaço de opressão em que os trabalhadores são rigidamente subordinados a projetos arquitetônicos que desconsideram tanto as condições de trabalho como a possibilidades criativas dos operários. Essas ideias são condensadas em O canteiro e o desenho (1976), provavelmente a publicação de Ferro com maior repercussão no meio brasileiro.

Forçado ao exílio pela perseguição política promovida pela ditadura militar brasileira, mudou-se para a França na década de 1970, onde residiu até a década de 2000. Nesse novo contexto, deu continuidade às suas pesquisas no campo da arquitetura e também ampliou sua área de estudo para as artes plásticas. De modo análogo ao que realizou com a arquitetura, Ferro desenvolveu uma minuciosa releitura da história das artes plásticas com ênfase na interpretação desta como trabalho humano e na sua função dentro do modo de produção capitalista. Embora resultantes de trajetórias semelhantes, as conclusões de Ferro sobre a arquitetura e as artes plásticas são opostas. Ele afirma que a arquitetura “participa integralmente do novo paradigma, serve diretamente ao capital. As artes plásticas – pintura e escultura –, mesmo sem intenção, põem-se claramente contra ele (o paradigma).” (FERRO, 2015, p. 22).

Para compreender as relações tanto das artes plásticas como da arquitetura com o capitalismo, Ferro remontou à posição social do artista e do arquiteto desde o Renascimento1 – período chave na consolidação da sociedade capitalista – até a atualidade. No caso das artes plásticas, afirma que a formulação do discurso do artista como gênio, dotado de características inigualáveis, permitiu aos artistas do Renascimento alcançar um alto status social que garantiu liberdade no seu trabalho, gestando a noção de arte como trabalho “livre”.

Além da teoria econômica de Marx, Sérgio Ferro utilizou largamente autores da Escola de Frankfurt, especialmente Theodor Adorno, para fundamentar suas hipóteses sobre a função social das artes plásticas em uma sociedade em que impera o trabalho alienado. Segundo Ferro:

como ensina Adorno, enquanto o trabalho for desencontro programado, só o fechamento radical e abafante da arte guarda a esperança de um outro trabalho. Para que possamos aproveitar sua experiência, entretanto, é conveniente estudá-la não como vestígio do artesanato ou como molde, mas como espécie de índice negativo da luta de classes na produção, por deixar de lado a divisão do fazer e do pensar, as séries hierárquicas, o parcelamento fundamental para a dominação. (FERRO, 2006, p. 149).

Dessa forma, Ferro classifica as artes plásticas como um reduto em que o trabalho “livre” pode se manifestar, afirmando que “o trabalho oposto ao subordinado é… trabalho ‘livre’. Salvo engano, as artes plásticas, desde a madrugada do capitalismo, fornecem o exemplo único de um outro trabalho possível, o inverso do subordinado ao capital. Literalmente, é um trabalho insubordinado.” (FERRO, 2015, p. 11).

Esse conceito de trabalho livre foi criado pelo autor para tratar exclusivamente das artes plásticas, atentando-se ao processo de produção e à materialidade das obras de arte, conforme assinala “o conceito de trabalho livre nasce e toma sua primeira figura no campo das artes plásticas. Em nenhum outro setor da produção material (insisto no material) há qualquer coisa semelhante.” (FERRO, 2015, p. 60). O uso do termo artes plásticas, e não artes visuais, é indicativo de uma especificidade das teorias de Ferro. Uma vez que a análise da história da arte tecida por Ferro retoma o período do Renascimento e vem até a atualidade, sua produção enfoca as artes plásticas em um sentido tecnicamente mais tradicional, enfatizando o trabalho material.

Essa retomada da tradição da técnica artística é visível também na produção pictórica de Sérgio Ferro, conforme exemplifica o mural Cenas e Sonhos Latino-Americanos I e II (Imagens 1, 2 e 3). O autor retoma o mestre renascentista Michelangelo Buonarroti como sua referência fundamental,2 característica evidente no tratamento naturalista que Ferro aplica em trechos da sua obra, especialmente nas figuras humanas. Essa tradição soma-se a influências modernas, como retomada das colagens cubistas ao inserir objetos da vida cotidiana no plano pictórico, como as cordas, tubos e ferramentas fixadas no mural em questão. Além disso, também é notável a inserção de textos, elementos tipográficos e áreas de cores chapadas, influências da Pop Art.

As teorias de Ferro sobre o trabalho “livre” são evidentes tanto na temática da obra – a história da América Latina com foco nos trabalhadores –, como na técnica pictórica, ao manter as marcas do trabalho de construção das figuras na obra. Essas figuras alternam trechos de formas nítidas preenchidas por volumes de claro-escuro e áreas de esboços e linhas soltas que testemunham o trabalho “livre” do artista. O observador é capaz de imaginar cada etapa do processo de criação da pintura, uma vez que as marcas do trabalho manual são destacadas. Segundo Gilles Lipovetsky, “Ferro é um pintor brechtiano; ele quer impedir a ilusão do expectador” (LIPOVETSKY, 2012, p. 73). A opção de Ferro por, em diversas passagens, grafar a palavra livre entre aspas ressalta que a liberdade do trabalho artístico é relativa, não absoluta, uma vez que ela se encontra em meio a um contexto social repressor. O artista esclarece essa questão: “ora, liberdade efetiva – Kant, Hegel e Marx a toda hora repetem – implica sua generalização. Senão azeda.” (FERRO, 2015, p. 27). Desse modo, a arte é entendida como trabalho “livre”, como manifestação plena do potencial criador humano, por contraste com o trabalho alienado imposto pelo modo de produção capitalista. Ainda segundo Ferro, em uma sociedade mais justa e igualitária, esse trabalho livre não deveria estar restrito a uma pequena parcela da humanidade identificada como classe artística, mas deveria fazer parte do cotidiano de todos.

Essa espécie de monopólio do trabalho material “livre” faz com que as artes plásticas estabeleçam uma relação contraditória com a sociedade capitalista, uma vez que o mercado atribui altos valores às obras de arte justamente pela raridade do trabalho “livre” em uma sociedade em que predomina o trabalho alienado. Ou seja, o capitalismo, promotor da alienação dos trabalhadores, tem interesse na produção dos artistas por esses não serem alienados do seu trabalho. Como resultado dessa contradição, o artista goza de privilégios que o permitem criticar estruturas sociais hegemônicas, conforme atesta o mural Cenas e Sonhos Latino-Americanos I e II .

Educação Libertadora

Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira, também tem a noção de liberdade como eixo orientador da sua obra. Suas teorias e práticas pedagógicas são centradas na noção da educação como um processo de libertação dos indivíduos.

Em 1968, durante o exílio no Chile resultante da perseguição política por parte da ditadura militar brasileira, Paulo Freire publicou sua obra mais conhecida Pedagogia do Oprimido . Nesse livro, Freire concebeu, em oposição à educação bancária – que se limita à transmissão de conteúdos –, um modelo de educação que percebe o educando como protagonista do processo de aprendizado, relacionando os novos conteúdos apreendidos com os saberes que ele já possui. Esse novo modelo de educação está baseado no diálogo entre educadores e educandos para a construção de uma educação emancipadora. Para ele:

o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes. (FREIRE, 1987, p. 44).

Como fundamento para esse diálogo está a palavra, outro elemento central para a formação e a transformação humana na obra de Freire. Para esse autor, a palavra é a célula base para a emancipação coletiva dos indivíduos. É pela palavra que compreendemos e intervimos na realidade. Ele destaca que: “existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar” (FREIRE, 1987, p. 108). Dessa forma, configura-se uma relação dialética entre sujeito e mundo que, intermediados pela palavra, modificam-se mutuamente.

Freire considera que a educação é um instrumento de transformação das relações sociais de poder. Para ele, uma educação popular verdadeira – portanto libertadora – consolida um caminho para que as camadas populares se tornem sujeitos ativos no combate às opressões, assumindo o protagonismo na construção de uma sociedade mais humanizada. É notável que, além das bases marxistas assumidas pelo autor para diferenciar as posições de oprimidos e opressores, também é essencial na obra de Freire um elogio ao amor, à fraternidade, à solidariedade. Se, conforme indicado acima, o diálogo é fundante da prática educativa, esse não existe “se não há um profundo amor ao mundo e aos homens” (FREIRE, 1987, p. 110). Assim, sem perder de vista a necessidade de transformações estruturais no modo de produção, Freire distancia-se dos marxistas de abordagem estritamente economicista para aprofundar-se na necessidade de humanizar as relações interpessoais nas suas mais diversas escalas, sobretudo no ato educativo. Na obra de Freire, são recorrentes palavras como amor, respeito e fé nos homens e mulheres, apresentadas como pré-requisitos para a uma educação libertadora.

Para Freire, a liberdade não é uma condição estática, mas um processo de construção infindável:

Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. Não é ideia que se faça mito. É condição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos. (FREIRE, 1987, p. 18).

O educador destaca o processo de aprendizado como uma forma de ressignificar o mundo, em que os indivíduos vão ampliando a sua compreensão crítica da realidade à medida que a transformam. Dessa forma, a educação não está restrita ao campo teórico, mas é necessariamente um ato criador, de intervenção direta na realidade, em que educandos e educadores exercem plenamente a sua humanidade. Desse processo, resulta a criação da cultura no seu sentido mais amplo:

a partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. (FREIRE, 1981, p. 43).

A vasta bibliografia sobre educação de autoria de Paulo Freire tem como base a sua prática no ensino, que ele manteve ao longo de toda a sua trajetória. Coerentemente com a sua proposição teórica de que o conhecimento se constrói no contato direto com a realidade, transformando-a, Freire ancora suas teorias nas suas experiências como educador. Entre essas, são notórios os círculos de cultura promovidos por ele. Substituindo o modelo de sala de aula convencional, os círculos de cultura são espaços não hierarquizados em que educadores e educandos fazem reflexões críticas sobre temas geradores elencados em função das suas realidades concretas. O círculo – organização espacial em que todos podem participar com igual destaque – funciona como um espaço de debate em que a cultura é construída coletivamente a partir a problematização da realidade.

Para o autor, a prática de ensinar-aprender, quando realizada de forma sincera, ética e crítica, permite que o ser humano vivencie uma “experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade.” (FREIRE, 1996, p. 24). Essa concepção alargada da educação, que ultrapassa os limites das instituições de ensino e penetra as mais diversas dimensões da vida social, aproxima-se naturalmente do campo artístico, permitindo a compreensão do processo criativo e da experiência estética como fenômenos educativos.

Educação e Arte: encontro libertador

Embora não tenham sido localizadas citações diretas entre Sérgio Ferro e Paulo Freire nesta pesquisa, nota-se uma consonância nas concepções de arte – no caso de Ferro – e de educação – no caso de Freire – ao identificarem essas práticas como uma contraposição ao trabalho alienado promovido pelo modo de produção capitalista. Tais caracterizações têm uma origem comum: esses dois autores adotam referenciais marxistas como base para as suas teorias e tiveram o Brasil dos anos 1960 como um contexto decisivo para as suas formulações.

Ambos participaram de uma geração de intelectuais brasileiros que vivenciaram o otimismo e a busca por novos paradigmas democratizantes para o desenvolvimento nacional no início da década de 1960. Experiências que foram frustradas pelo Golpe Militar de 1964, que violou a democracia e reorientou o país para uma modernização conservadora. A base teórica no marxismo fornece uma contextualização na luta de classes para a compreensão da função social das artes plásticas para Ferro e da educação para Freire. Essa base implica no pressuposto de que a sociedade capitalista tende a alienar e subordinar o ser humano, estabelecendo uma relação dialética com a vocação de emancipação do ser humano que pode revelar-se na arte ou na educação. Para Sérgio Ferro, a liberdade presente nas artes plásticas tem um sentido individual e de materialização do potencial humano reprimido pelo capitalismo. Assim, o processo criativo do artista – bem como a obra resultante – indica como seria o trabalho humano em uma sociedade livre. Já para Paulo Freire a liberdade resultante da educação é um processo infindável de transformação dos seres humanos. Trata-se de um fenômeno necessariamente coletivo, uma vez que depende do diálogo para ressignificar o mundo. Portanto, a liberdade teorizada por Ferro só é possível na sociedade capitalista por estar restrita ao campo das artes plásticas, já a liberdade de Freire é um processo de transformação dos indivíduos e da sociedade.

A noção da prática criadora como necessidade humana e momento de manifestação do pleno potencial humano está presente nos dois autores. Tanto na teoria como nas práticas desses intelectuais existe uma busca explícita por realizar a emancipação dos indivíduos para alcançar um novo patamar de relações sociais mais solidárias.

Embora Sérgio Ferro e Paulo Freire partam de pontos distintos – o primeiro da arte e o segundo da educação –, concebem teorias que, no sentido aqui delineado, podem ser compatíveis. Se o processo de ensino-aprendizagem é necessariamente um processo de libertação e de tomada de consciência perante o mundo, as artes plásticas, enquanto prática do trabalho “livre”, são um objeto privilegiado para aplicar essa concepção pedagógica. Assim, tanto o processo de produção como o de apreciação de obras de artes plásticas podem potencializar práticas pedagógicas freirianas, uma vez que apresentam um contraponto ao trabalho alienado, permitindo questionamentos acerca das estruturas sociais.

A aplicação das ideias de Ferro e Freire no processo de ensino-aprendizagem pode fazer das artes um caminho privilegiado para uma educação que promove a emancipação do ser humano. A arte como objeto de estudo teórico oferece aos educandos a oportunidade de compreender o trabalho humano parcialmente livre da opressão. Essa abordagem, seja em uma escola, universidade, museu ou outro espaço, favorece o caráter emancipador da educação popular proposta por Freire. Nesse sentido, ao analisar a História da Arte, especialmente do Renascimento em diante, o educando entra em contato com uma história do trabalho material “livre” e, portanto, a história de uma produção material humana em grande medida sincera e autêntica.

Evidentemente, tal potencial da História da Arte é mais bem aproveitado se abordado a partir de uma leitura crítica, que questiona também as limitações do acesso ao status de artistas, indicando o caráter eurocêntrico, elitista e androcêntrico da narrativa hegemônica da História da Arte. Entretanto, mesmo com essas limitações, parece não existir narrativa que concorra com a História da Arte no que tange a história do trabalho material “livre”.

Além do estudo teórico, atividades práticas de criação artística também são de especial interesse em uma educação emancipadora. Seja em ambientes que se propõem a formar artistas profissionais, seja em outros tipos de espaços de educação, a prática artística permite ao educando, em maior ou menor medida, vivenciar a liberdade criativa que o campo artístico permite aos seus agentes. No contexto escolar, por exemplo, provavelmente educandos terão mais legitimidade para reivindicar liberdade criativa em atividades artísticas do que em atividades de outros tipos. Talvez, isso favoreça que a prática artística constitua uma trincheira de liberdade no contexto escolar, tal como ocorre no mundo do trabalho. Em casos de aguda intervenção política nas escolas, visando proibir determinadas temáticas contra-hegemônicas, a prática artística pode ser estratégica para fomentar debates protegidos pela noção de liberdade criativa, intrínseca à posição que as artes ocupam no mercado capitalista.

Quando questionado por um estudante de arquitetura sobre a sua visão sobre o ensino, Sérgio Ferro teceu a seguinte consideração:

Os matemáticos têm a maior dificuldade de somar elefantes com bananas, eles dizem que não pode. Qualquer pintor consegue equilibrar o tom vermelho carmim com mulher, com passarinho ou com mais um rasgo na tela. A cabeça do artista é totalmente “heterotópica”. A gente consegue resumir, reunir universos totalmente díspares, separados em gavetinhas em nossas universidades, em nosso saber. (FERRO, 2002, p. 26).

Conforme a fala de Ferro indica, a proteção consentida pelo campo artístico não significa o isolamento dessas atividades no contexto de formação dos indivíduos. Pelo contrário, as artes podem ser um eixo organizador de uma formação que integra as diversas dimensões da vida, conforme proposto por Paulo Freire. Portanto, o possível resultado da aplicação da noção de artes plásticas como trabalho “livre” e de educação como prática libertadora em ambientes de ensino é o aproveitamento da arte como base e vivência para a criação de um ambiente de aprendizagem orientado pela noção de liberdade, promovendo a humanização e a autonomia intelectual do educando. A arte torna-se não um conhecimento em si, mas um caminho estratégico para compreender o potencial criativo humano, gerando um desejável estranhamento dos mecanismos de alienação e controle desnecessários.

Notas de Rodapé

1   Sobre as considerações de Sérgio Ferro sobre a posição social do artista no Renascimento, ver Ferro (2015; 2016).

2   Sobre a influência de Michelangelo na pintura de Sérgio Ferro, ver Ferro (2012).

Referências Bibliográficas

FERRO, Sérgio. Michelangelo: arquiteto e escultor da capela dos Médici. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016.

______. Artes plásticas e trabalho livre: de Dürer a Velázquez. São Paulo: Editora 34, 2015.

______. Por que variações em torno de Michelangelo? In: ______. Sérgio Ferro . Curitiba: Simões de Assis Galeria de Arte, 2012. p. 114-117. Texto original de 1989.

______. O canteiro e o desenho. In: ______. Sérgio Ferro: arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 105-200. Texto publicado originalmente em 1976, em duas partes, nos números 2 e 3 da revista Almanaque, com os títulos “A forma da arquitetura e o desenho da mercadoria” e “O desenho”; e em livro em 1979.

______. Conversa com Sérgio Ferro: mais uma peça na construção de um debate. P ós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP , v. 12, p. 10-32, 20 dez. 2002. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/posfau/article/view/47672/51411>. Acesso em 27 out. 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 36ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

______. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

______. Educação como prática da liberdade. 12ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

LIPOVETSKY, Gilles. Sérgio Ferro ou o verso e o reverso da pintura. In: FERRO, Sérgio. Sérgio Ferro . Curitiba: Simões de Assis Galeria de Arte, 2012. p. 72-75. Texto original de 1991.

Lista de Imagens

1   Sérgio Ferro, Cenas e Sonhos Latino-americanos I e II, 1990, técnica mista, 1,95 x 26,5 m cada. Mural na estação Vila Prudente do metrô de São Paulo. Foto: Bruno Sayão.

2   Detalhe do mural. Foto: Bruno Sayão.

3    Detalhe do mural. Foto: Bruno Sayão.