O ACESSO À CULTURA NO BRASIL OU QUANDO A DECADÊNCIA DOS ESPAÇOS CULTURAIS TOMA O CENTRO DE UMA POÉTICA
TEXTO CURTO Paula Luersen
Paula Luersen é escritora e pesquisadora na área de Artes Visuais. Vive e trabalha em Salvador/BA. Em 2021 e 2020, colaborou com o blog Letras In.Verso e Re.Verso. Foi bolsista CAPES durante toda a formação, cursando a graduação na UFPEL/RS, mestrado na UFSM/RS e doutorado na UFRGS/RS. Em 2019, foi docente no curso de Artes Visuais na UEM/PR. Em 2018 e 2019, coordenou o cineclube Cine Fênix Cultural (Apucarana/PR). De 2012 a 2014, coordenou o Quiosque da Cultura (Gravataí/RS).
RESUMO
Neste texto, é abordada a insistência em ativar espaços culturais com a prática da escrita, ainda que a realidade brasileira seja de precarização. Busco demonstrar o papel dos espaços e das políticas públicas na formação e na trajetória dos produtores de arte no país, em geral e em específico – esse último tem como ponto de partida a minha prática como escritora e o trabalho da produtora de cinema Filmes de Plástico –, apresentando o impacto dessas medidas para o acesso à cultura. Por fim, exponho como a lógica de degradação dos espaços culturais acabou tomando o centro dos meus escritos e a maneira com que a ficção me permite seguir sonhando esses espaços em suas dimensões simbólicas.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº18, MAR., ANO 2023
ACESSO À CULTURA
Para falar de acesso à cultura no Brasil, eu poderia começar apresentando dados de indicadores culturais dos últimos dez anos: quase 90% dos municípios brasileiros não possuem salas de cinema, 75% não tem teatro ou salas de espetáculo, 72% não possuem museus e 63% carecem de centros culturais (IBGE). O Brasil perdeu, de 2015 a 2020, quase 800 bibliotecas públicas (SNBP). Em complemento, apenas 32% dos brasileiros admite gastos com cultura, o que torna os eventos gratuitos a preferência para a maior parte da população (JLeiva e Datafolha).
Eu poderia partir, ainda, da tentativa de construção de um Sistema Nacional de Cultura, que dava passos importantes nas primeiras décadas dos anos 2000, até o momento em que, após 2017, surge uma nova lógica de esfacelamento do setor, orquestrada pelo governo federal. Tal momento é demarcado simbolicamente pelo incêndio que consumiu o Museu Nacional e o seu acervo histórico em 02 de setembro de 2018, institucionalmente pelo fim do Ministério da Cultura em 1º de janeiro de 2019 , politicamente pela ofensiva de ataques e desinformações que a extrema direita direcionou às políticas de financiamento da cultura e ao trabalho dos agentes culturais, e, socialmente, pela pandemia de Covid-19 e seu avanço descontrolado no Brasil, que, além de levar tantas vidas, tornou ainda mais difícil o prosseguimento de várias iniciativas.
O relato acima serviria a uma distopia de contornos tão macabros que, se descrita em um livro de ficção, seria acusada de exagero. É claro que o contexto de arte e cultura no Brasil não se reduz aos espaços considerados nas estatísticas, ele irrompe de muitos lugares e se multiplica em diferentes cenas. Mas, tratando especificamente do enredo mencionado, proponho abordá-lo a partir de outro olhar: o da insistência na ativação dos espaços culturais com a prática da escrita e da ficção.
Esse enfoque particular, que se direciona à minha prática, parece não ter relação exata com o acesso à cultura de modo geral no Brasil, afinal, analisar coletivamente essa situação em um país tão grande exige, de fato, instrumentos mais complexos. Tratarei, contudo, de um só detalhe, simples e incontornável: a ideia de que só se faz escritor aquele que também é leitor; só se faz artista aquele que também faz parte do público da arte; só se faz ator aquele que também se coloca como público espectador. Insistirei nessa relação entre produção e recepção ainda que ela pareça rara e pontual. É difícil mobilizar uma discussão mais ampla num contexto em que se ignora o enfrentamento da abissal desigualdade brasileira – essa sim uma marca inequívoca do que nos constitui historicamente. Quando essa questão é desconsiderada e minimizada pelo poder público, o mais provável é que arte e cultura voltem a soar como um privilégio de poucos, e não como um direito constitucional de todos os cidadãos.
Escrever, para mim, frente à realidade nefasta trazida no início do texto, é uma necessidade. Se eu não tivesse que fazer arte para me colocar no mundo, para ir além de mim mesma, para sair da superfície, para reconstruir sentidos, para negociar com fantasmas, para imaginar outras possibilidades, para acreditar na vida, nada disso seria um problema. Se eu não precisasse da escrita como quem precisa de um copo d’água, se eu pudesse dar a ela somente o lugar de passatempo, de forma de lazer, de ocupação nas horas vagas, de bico em troca de dinheiro, nada disso seria um problema. Essa é uma questão tão grande para mim que passou a ocupar o centro da minha prática.
Eis que decidi iniciar, em meio à pandemia, a escrita de um primeiro romance. Durante o período de isolamento me deparei com o fato inédito de não conseguir mais ler poesia, antes minha companheira. Ela parecia exigir um tipo de relação que eu não estava conseguindo sustentar. Li, porém, diversos romances consideravelmente longos, que souberam me envolver em um tempo que abundava. O desejo de me dedicar a um romance próprio passou a rondar os meus dias. As primeiras linhas nasceram de uma madrugada, no auge da pandemia, em que era impossível dormir, quando resolvi ler uma matéria sobre uma produtora de cinema numa revista. Fiquei sabendo, então, da história de quatro mineiros da cidade de Contagem que produziam filmes. No início do texto (COELHO, 2020, p. 68) estavam descritas algumas cenas de um filme em processo e fui imediatamente tocada. O enredo do filme trazia eventos tão impactantes quanto banais: o 7 a 1 da Copa do Mundo de 2014 e o sonho longínquo de um menino que queria viajar para o espaço. As situações se desdobravam em um cenário de classe média baixa, com a reunião de uma família em cadeiras de praia, frente a uma televisão de tubo, no quintal de uma casa da periferia de Contagem. Na matéria, descobri, ainda, que eu já havia assistido a um dos filmes da produtora: Temporada, um longa – com Grace Passô, não há como não sublinhar – que tinha me deixado uma impressão forte, algo entre o bonito e o singelo.
Mais do que o trecho de filme, a matéria também tratava da maneira como a Filmes de Plástico – nome da produtora – foi formada: Gabriel, Maurílio, André e Thiago eram de famílias diferentes, formadas de trabalhadores, marceneiros, costureiras, metalúrgicos e donas de casa que incentivavam os filhos a estudar. Criados em frente à TV – com exceção de Maurílio, cuja mãe era da Congregação Cristã e não permitia televisão – eles tinham que viajar para cidades próximas para ter acesso ao cinema e aos blockbusters da vez.
O acesso que eles tinham aos espaços de cultura, portanto, corresponde com o que os dados trazem sobre a maioria da população brasileira. A estrutura para a formação de público é, em geral, rarefeita, instável e não alcança o interior senão por um ato de vontade individual. Os filmes hollywoodianos da infância dos meninos constituíram um primeiro interesse que se mostrou crescente e foi se ampliando nas mostras de cinema do entorno:
Minha mãe me levou uma vez à Mostra de Cinema de Tiradentes. […] Lembro que assisti Bicho de Sete Cabeças. Fiquei vidrado. Lá eu descobri duas coisas que eu não sabia que existiam: curta-metragem e cinema brasileiro. Eu tinha uns 13 anos, e depois dessa experiência nunca mais desejei fazer outra coisa da vida que não fosse cinema, relata Gabriel Martins. (COELHO, 2020, p. 70)
Esse tipo de experiência conduziu a uma vontade de produção concretizada, pouco a pouco, a partir de espaços e políticas públicas: a formação como cineastas veio de Escolas Livres de Cinema, de bolsas de estudo e programas do governo, como o Universidade para Todos (ProUni). A pirataria e a circulação facilitada de produtos culturais, bem como os eventos e espaços que permitiram aos quatro contagenses se encontrarem em Belo Horizonte, também tiveram um papel fundamental.
A história narrada na revista falava às minhas vivências, ainda que em um outro canto do Brasil – tenho certeza de que várias pessoas que se colocam, hoje, como produtores de arte e cultura, também se identificariam. O acesso à cultura está ligado à garantia de educação e é muitas vezes por meio dos espaços educacionais que se encontra uma maneira de viabilizar a produção artística. O campo acadêmico das universidades públicas concentra cineastas, escritores, músicos, dançarinos, artistas que usam da estrutura e dos programas de bolsas para pesquisarem linguagens, formarem um circuito de trocas, produzirem arte e bens culturais. Editais e políticas públicas também geram projetos, programas e espaços que não entrariam no mapa do país por outras vias. Isso funciona como referência, especialmente para aqueles que vêm das classes mais pobres ou pertencem a famílias que não dão vez ou valor aos hábitos culturais. Cabe lembrar que é esse tipo de investimento – bolsas de estudo e pesquisa, editais de financiamento público, seleções abertas – que gera exibições, cursos, exposições, eventos e produtos culturais que são distribuídos gratuitamente; isto é, as produções que atendem aos 68% de brasileiros que não admitem gastos com cultura.
Minha vivência nesse campo é bastante heterogênea: já envolveu a coordenação de um espaço de arte, enquanto concursada, em uma cidade média do Rio Grande do Sul; a curadoria e a mediação de um cineclube em uma cidade pequena do Paraná; a carreira acadêmica dentro das artes visuais em uma capital; a experiência com projetos independentes na Bahia. Mil tentativas, muitos erros e acertos. Nunca pude assumir o ofício de escritora, porém, sem que a alcunha viesse acompanhada de um hífen. A situação está bem colocada na matéria sobre a Filmes de Plástico:
Nenhum dos diretores de Contagem vive apenas com o que ganha nos filmes, nas funções de diretor, produtor ou roteirista – e às vezes ator. “É uma vida instável. Ano passado foi bem difícil. Tive que pegar muito trabalho fora. Fiz vídeos, clipes e até filmagem de festa de aniversário”, disse Gabriel, que é casado e espera um filho. “Não consigo viver apenas como diretor”, afirmou Affonso. “Viro profissional de cinema. Faço curadoria, além de trabalhos como montador. Meus filmes são baratos. Meu primeiro longa custou 80 mil reais. O que é grave é não ter sequer esperança. (COELHO, 2020, p. 73)
Por muito tempo eu não me considerava escritora. Isso porque eu era pesquisadora-escritora, professora-escritora, funcionária pública-escritora, uma artista-etc., enfim. O circuito de arte e cultura no país é historicamente frágil e conduz, muitas vezes, à noção, por parte dos artistas e do público, de que a pouca repercussão do que é produzido está ligada à prática ou ao conteúdo das produções em si. Nos meus anos de experiência nesse campo, porém, vi propostas e trabalhos com qualidade ímpar simplesmente não circularem ou não mobilizarem atenção. O efeito da busca insistente sem os resultados esperados acaba por minar a confiança no que se produz. E, como a matéria esclarece, a falta de esperança no amanhã, vide o ontem e principalmente o hoje, é bastante aterradora.
A verdade é que, no meio artístico, todos estão conscientes dessa problemática, mas a naturalização dessa situação continua sendo revoltante, ainda mais com a certeza de que, para grande parte dos artistas, seguir produzindo significa, também, arcar com bicos, prestar serviço, trabalhar informalmente ou encontrar uma segunda profissão que sustente a primeira. Iniciativas que buscam saídas abundam, mas então entraríamos na lógica do caso a caso. Sempre achei bonita a ideia de inventar jeitos, pensar maneiras ainda não previstas de fazer com que as coisas aconteçam. Mas queria que a invenção surgisse por desejo. E ultimamente tem sido uma tarefa pesada manter-se minimamente desejante.
Voltando aos espaços, estou sempre às voltas com bibliotecas públicas para seguir escrevendo. Foi nesses lugares que escrevi minha dissertação, minha tese e vários dos meus textos. Como vivia me mudando em função de buscar emprego no campo acadêmico, a relação com tais espaços remonta a diferentes localidades. Encontrá-los e percebê-los implica alguma dedicação, já que sua presença nas cidades está cada vez mais apagada. E foi justamente em torno de uma biblioteca pública que se estruturou o enredo do meu primeiro romance. Não falo de um lugar ideal, algo que a ficção permitiria, mas de uma biblioteca num canto do Brasil. Uma biblioteca que tem goteiras, dificuldades de infraestrutura, problemas de funcionamento, carência de funcionários. Falar dela é falar também dos cineteatros, museus, espaços de cultura, e também das escolas e universidades públicas do país. Foi em lugares assim que trabalhei, em lugares assim que me formei, e é nesse tipo de espaço que sigo e seguirei escrevendo – com sorte, frequentemente. São instituições precarizadas, mas também são os espaços em que me senti acolhida na minha vontade de educação e arte em diferentes partes do país.
Esses espaços permitiram que eu inventasse o convívio com pessoas totalmente diferentes de mim e possibilitaram inúmeros encontros com um quê de aleatório – situações contrárias à lógica atual das bolhas. Ao mesmo tempo que esses lugares sofrem por falta de investimento e reconhecimento; ao mesmo tempo que reproduzem muitas das dissonâncias e preconceitos estabelecidos na sociedade; ao mesmo tempo que, já antes da pandemia, tiveram seu público impactado pela internet e pelas vias digitais; eles continuam a servir a uma forma de contágio – a mesma que senti ao ler, numa madrugada, a matéria sobre quatro brasileiros que resolveram fazer filmes para contar suas histórias.
É preciso respeitar a atmosfera dos lugares de cultura que ainda restam nesse país. Eles guardam, entre estantes, o abrir de um primeiro livro. Sustentam, em cadeiras enfileiradas, o entusiasmo conjunto de assistir a um bom filme. Geram, em frente ao palco, cumplicidade entre dois espectadores que, de parecido, só têm a preferência por um mesmo tipo de música.
Por isso os espaços culturais em decadência passaram a ocupar o centro da minha poética, também malfadada e cheia de cupins. Tratar desses lugares ficcionalmente é falar de um Brasil que enfrenta intenso descaso e me recuso a parar de sonhá-los, por mais degradados que estejam.
Um incêndio seria o fim óbvio. Mas eu nunca gostei de distopias.
O ACESSO À CULTURA NO BRASIL OU QUANDO A DECADÊNCIA DOS ESPAÇOS CULTURAIS TOMA O CENTRO DE UMA POÉTICA
TEXTO CURTO Paula Luersen
Paula Luersen é escritora e pesquisadora na área de Artes Visuais. Vive e trabalha em Salvador/BA. Em 2021 e 2020, colaborou com o blog Letras In.Verso e Re.Verso. Foi bolsista CAPES durante toda a formação, cursando a graduação na UFPEL/RS, mestrado na UFSM/RS e doutorado na UFRGS/RS. Em 2019, foi docente no curso de Artes Visuais na UEM/PR. Em 2018 e 2019, coordenou o cineclube Cine Fênix Cultural (Apucarana/PR). De 2012 a 2014, coordenou o Quiosque da Cultura (Gravataí/RS).
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº18, MAR., ANO 2023
ACESSO À CULTURA
RESUMO
Neste texto, é abordada a insistência em ativar espaços culturais com a prática da escrita, ainda que a realidade brasileira seja de precarização. Busco demonstrar o papel dos espaços e das políticas públicas na formação e na trajetória dos produtores de arte no país, em geral e em específico – esse último tem como ponto de partida a minha prática como escritora e o trabalho da produtora de cinema Filmes de Plástico –, apresentando o impacto dessas medidas para o acesso à cultura. Por fim, exponho como a lógica de degradação dos espaços culturais acabou tomando o centro dos meus escritos e a maneira com que a ficção me permite seguir sonhando esses espaços em suas dimensões simbólicas.
Para falar de acesso à cultura no Brasil, eu poderia começar apresentando dados de indicadores culturais dos últimos dez anos: quase 90% dos municípios brasileiros não possuem salas de cinema, 75% não tem teatro ou salas de espetáculo, 72% não possuem museus e 63% carecem de centros culturais (IBGE). O Brasil perdeu, de 2015 a 2020, quase 800 bibliotecas públicas (SNBP). Em complemento, apenas 32% dos brasileiros admite gastos com cultura, o que torna os eventos gratuitos a preferência para a maior parte da população (JLeiva e Datafolha).
Eu poderia partir, ainda, da tentativa de construção de um Sistema Nacional de Cultura, que dava passos importantes nas primeiras décadas dos anos 2000, até o momento em que, após 2017, surge uma nova lógica de esfacelamento do setor, orquestrada pelo governo federal. Tal momento é demarcado simbolicamente pelo incêndio que consumiu o Museu Nacional e o seu acervo histórico em 02 de setembro de 2018, institucionalmente pelo fim do Ministério da Cultura em 1º de janeiro de 2019 , politicamente pela ofensiva de ataques e desinformações que a extrema direita direcionou às políticas de financiamento da cultura e ao trabalho dos agentes culturais, e, socialmente, pela pandemia de Covid-19 e seu avanço descontrolado no Brasil, que, além de levar tantas vidas, tornou ainda mais difícil o prosseguimento de várias iniciativas.
O relato acima serviria a uma distopia de contornos tão macabros que, se descrita em um livro de ficção, seria acusada de exagero. É claro que o contexto de arte e cultura no Brasil não se reduz aos espaços considerados nas estatísticas, ele irrompe de muitos lugares e se multiplica em diferentes cenas. Mas, tratando especificamente do enredo mencionado, proponho abordá-lo a partir de outro olhar: o da insistência na ativação dos espaços culturais com a prática da escrita e da ficção.
Esse enfoque particular, que se direciona à minha prática, parece não ter relação exata com o acesso à cultura de modo geral no Brasil, afinal, analisar coletivamente essa situação em um país tão grande exige, de fato, instrumentos mais complexos. Tratarei, contudo, de um só detalhe, simples e incontornável: a ideia de que só se faz escritor aquele que também é leitor; só se faz artista aquele que também faz parte do público da arte; só se faz ator aquele que também se coloca como público espectador. Insistirei nessa relação entre produção e recepção ainda que ela pareça rara e pontual. É difícil mobilizar uma discussão mais ampla num contexto em que se ignora o enfrentamento da abissal desigualdade brasileira – essa sim uma marca inequívoca do que nos constitui historicamente. Quando essa questão é desconsiderada e minimizada pelo poder público, o mais provável é que arte e cultura voltem a soar como um privilégio de poucos, e não como um direito constitucional de todos os cidadãos.
Escrever, para mim, frente à realidade nefasta trazida no início do texto, é uma necessidade. Se eu não tivesse que fazer arte para me colocar no mundo, para ir além de mim mesma, para sair da superfície, para reconstruir sentidos, para negociar com fantasmas, para imaginar outras possibilidades, para acreditar na vida, nada disso seria um problema. Se eu não precisasse da escrita como quem precisa de um copo d’água, se eu pudesse dar a ela somente o lugar de passatempo, de forma de lazer, de ocupação nas horas vagas, de bico em troca de dinheiro, nada disso seria um problema. Essa é uma questão tão grande para mim que passou a ocupar o centro da minha prática.
Eis que decidi iniciar, em meio à pandemia, a escrita de um primeiro romance. Durante o período de isolamento me deparei com o fato inédito de não conseguir mais ler poesia, antes minha companheira. Ela parecia exigir um tipo de relação que eu não estava conseguindo sustentar. Li, porém, diversos romances consideravelmente longos, que souberam me envolver em um tempo que abundava. O desejo de me dedicar a um romance próprio passou a rondar os meus dias. As primeiras linhas nasceram de uma madrugada, no auge da pandemia, em que era impossível dormir, quando resolvi ler uma matéria sobre uma produtora de cinema numa revista. Fiquei sabendo, então, da história de quatro mineiros da cidade de Contagem que produziam filmes. No início do texto (COELHO, 2020, p. 68) estavam descritas algumas cenas de um filme em processo e fui imediatamente tocada. O enredo do filme trazia eventos tão impactantes quanto banais: o 7 a 1 da Copa do Mundo de 2014 e o sonho longínquo de um menino que queria viajar para o espaço. As situações se desdobravam em um cenário de classe média baixa, com a reunião de uma família em cadeiras de praia, frente a uma televisão de tubo, no quintal de uma casa da periferia de Contagem. Na matéria, descobri, ainda, que eu já havia assistido a um dos filmes da produtora: Temporada, um longa – com Grace Passô, não há como não sublinhar – que tinha me deixado uma impressão forte, algo entre o bonito e o singelo.
Mais do que o trecho de filme, a matéria também tratava da maneira como a Filmes de Plástico – nome da produtora – foi formada: Gabriel, Maurílio, André e Thiago eram de famílias diferentes, formadas de trabalhadores, marceneiros, costureiras, metalúrgicos e donas de casa que incentivavam os filhos a estudar. Criados em frente à TV – com exceção de Maurílio, cuja mãe era da Congregação Cristã e não permitia televisão – eles tinham que viajar para cidades próximas para ter acesso ao cinema e aos blockbusters da vez.
O acesso que eles tinham aos espaços de cultura, portanto, corresponde com o que os dados trazem sobre a maioria da população brasileira. A estrutura para a formação de público é, em geral, rarefeita, instável e não alcança o interior senão por um ato de vontade individual. Os filmes hollywoodianos da infância dos meninos constituíram um primeiro interesse que se mostrou crescente e foi se ampliando nas mostras de cinema do entorno:
Minha mãe me levou uma vez à Mostra de Cinema de Tiradentes. […] Lembro que assisti Bicho de Sete Cabeças. Fiquei vidrado. Lá eu descobri duas coisas que eu não sabia que existiam: curta-metragem e cinema brasileiro. Eu tinha uns 13 anos, e depois dessa experiência nunca mais desejei fazer outra coisa da vida que não fosse cinema, relata Gabriel Martins. (COELHO, 2020, p. 70)
Esse tipo de experiência conduziu a uma vontade de produção concretizada, pouco a pouco, a partir de espaços e políticas públicas: a formação como cineastas veio de Escolas Livres de Cinema, de bolsas de estudo e programas do governo, como o Universidade para Todos (ProUni). A pirataria e a circulação facilitada de produtos culturais, bem como os eventos e espaços que permitiram aos quatro contagenses se encontrarem em Belo Horizonte, também tiveram um papel fundamental.
A história narrada na revista falava às minhas vivências, ainda que em um outro canto do Brasil – tenho certeza de que várias pessoas que se colocam, hoje, como produtores de arte e cultura, também se identificariam. O acesso à cultura está ligado à garantia de educação e é muitas vezes por meio dos espaços educacionais que se encontra uma maneira de viabilizar a produção artística. O campo acadêmico das universidades públicas concentra cineastas, escritores, músicos, dançarinos, artistas que usam da estrutura e dos programas de bolsas para pesquisarem linguagens, formarem um circuito de trocas, produzirem arte e bens culturais. Editais e políticas públicas também geram projetos, programas e espaços que não entrariam no mapa do país por outras vias. Isso funciona como referência, especialmente para aqueles que vêm das classes mais pobres ou pertencem a famílias que não dão vez ou valor aos hábitos culturais. Cabe lembrar que é esse tipo de investimento – bolsas de estudo e pesquisa, editais de financiamento público, seleções abertas – que gera exibições, cursos, exposições, eventos e produtos culturais que são distribuídos gratuitamente; isto é, as produções que atendem aos 68% de brasileiros que não admitem gastos com cultura.
Minha vivência nesse campo é bastante heterogênea: já envolveu a coordenação de um espaço de arte, enquanto concursada, em uma cidade média do Rio Grande do Sul; a curadoria e a mediação de um cineclube em uma cidade pequena do Paraná; a carreira acadêmica dentro das artes visuais em uma capital; a experiência com projetos independentes na Bahia. Mil tentativas, muitos erros e acertos. Nunca pude assumir o ofício de escritora, porém, sem que a alcunha viesse acompanhada de um hífen. A situação está bem colocada na matéria sobre a Filmes de Plástico:
Nenhum dos diretores de Contagem vive apenas com o que ganha nos filmes, nas funções de diretor, produtor ou roteirista – e às vezes ator. “É uma vida instável. Ano passado foi bem difícil. Tive que pegar muito trabalho fora. Fiz vídeos, clipes e até filmagem de festa de aniversário”, disse Gabriel, que é casado e espera um filho. “Não consigo viver apenas como diretor”, afirmou Affonso. “Viro profissional de cinema. Faço curadoria, além de trabalhos como montador. Meus filmes são baratos. Meu primeiro longa custou 80 mil reais. O que é grave é não ter sequer esperança. (COELHO, 2020, p. 73)
Por muito tempo eu não me considerava escritora. Isso porque eu era pesquisadora-escritora, professora-escritora, funcionária pública-escritora, uma artista-etc., enfim. O circuito de arte e cultura no país é historicamente frágil e conduz, muitas vezes, à noção, por parte dos artistas e do público, de que a pouca repercussão do que é produzido está ligada à prática ou ao conteúdo das produções em si. Nos meus anos de experiência nesse campo, porém, vi propostas e trabalhos com qualidade ímpar simplesmente não circularem ou não mobilizarem atenção. O efeito da busca insistente sem os resultados esperados acaba por minar a confiança no que se produz. E, como a matéria esclarece, a falta de esperança no amanhã, vide o ontem e principalmente o hoje, é bastante aterradora.
A verdade é que, no meio artístico, todos estão conscientes dessa problemática, mas a naturalização dessa situação continua sendo revoltante, ainda mais com a certeza de que, para grande parte dos artistas, seguir produzindo significa, também, arcar com bicos, prestar serviço, trabalhar informalmente ou encontrar uma segunda profissão que sustente a primeira. Iniciativas que buscam saídas abundam, mas então entraríamos na lógica do caso a caso. Sempre achei bonita a ideia de inventar jeitos, pensar maneiras ainda não previstas de fazer com que as coisas aconteçam. Mas queria que a invenção surgisse por desejo. E ultimamente tem sido uma tarefa pesada manter-se minimamente desejante.
Voltando aos espaços, estou sempre às voltas com bibliotecas públicas para seguir escrevendo. Foi nesses lugares que escrevi minha dissertação, minha tese e vários dos meus textos. Como vivia me mudando em função de buscar emprego no campo acadêmico, a relação com tais espaços remonta a diferentes localidades. Encontrá-los e percebê-los implica alguma dedicação, já que sua presença nas cidades está cada vez mais apagada. E foi justamente em torno de uma biblioteca pública que se estruturou o enredo do meu primeiro romance. Não falo de um lugar ideal, algo que a ficção permitiria, mas de uma biblioteca num canto do Brasil. Uma biblioteca que tem goteiras, dificuldades de infraestrutura, problemas de funcionamento, carência de funcionários. Falar dela é falar também dos cineteatros, museus, espaços de cultura, e também das escolas e universidades públicas do país. Foi em lugares assim que trabalhei, em lugares assim que me formei, e é nesse tipo de espaço que sigo e seguirei escrevendo – com sorte, frequentemente. São instituições precarizadas, mas também são os espaços em que me senti acolhida na minha vontade de educação e arte em diferentes partes do país.
Esses espaços permitiram que eu inventasse o convívio com pessoas totalmente diferentes de mim e possibilitaram inúmeros encontros com um quê de aleatório – situações contrárias à lógica atual das bolhas. Ao mesmo tempo que esses lugares sofrem por falta de investimento e reconhecimento; ao mesmo tempo que reproduzem muitas das dissonâncias e preconceitos estabelecidos na sociedade; ao mesmo tempo que, já antes da pandemia, tiveram seu público impactado pela internet e pelas vias digitais; eles continuam a servir a uma forma de contágio – a mesma que senti ao ler, numa madrugada, a matéria sobre quatro brasileiros que resolveram fazer filmes para contar suas histórias.
É preciso respeitar a atmosfera dos lugares de cultura que ainda restam nesse país. Eles guardam, entre estantes, o abrir de um primeiro livro. Sustentam, em cadeiras enfileiradas, o entusiasmo conjunto de assistir a um bom filme. Geram, em frente ao palco, cumplicidade entre dois espectadores que, de parecido, só têm a preferência por um mesmo tipo de música.
Por isso os espaços culturais em decadência passaram a ocupar o centro da minha poética, também malfadada e cheia de cupins. Tratar desses lugares ficcionalmente é falar de um Brasil que enfrenta intenso descaso e me recuso a parar de sonhá-los, por mais degradados que estejam.
Um incêndio seria o fim óbvio. Mas eu nunca gostei de distopias.
Referências Bibliográficas
CARRANÇA, Thais. Brasil perdeu quase 800 bibliotecas públicas em 5 anos. Portal G1, 16 de julho de 2022, seção Educação, Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2022/07/16/brasil-perdeu-quase-800-bibliotecas-publicas-em-5-anos.ghtml. Acesso em: 21 de outubro de 2022.
COELHO, Tiago. Filmes de Comentário. Revista Piauí, edição 163, p. 68-73, abril de 2020.
DURVAL, Nathalia. Se tiver que pagar por cultura brasileiro dá preferência ao cinema. Folha de São Paulo, 24 de julho de 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/07/se-tiver-de-pagar-por-cultura-brasileiro-da-preferencia-ao-cinema.shtml. Acesso em: 21 de outubro de 2022.
IBGE, Sistema de Informações e Indicadores Culturais. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/cultura-recreacao-e-esporte/9388-indicadores-culturais.html?=&t=resultados. Acesso em: 21 de outubro de 2022.
Referências Bibliográficas
CARRANÇA, Thais. Brasil perdeu quase 800 bibliotecas públicas em 5 anos. Portal G1, 16 de julho de 2022, seção Educação, Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2022/07/16/brasil-perdeu-quase-800-bibliotecas-publicas-em-5-anos.ghtml. Acesso em: 21 de outubro de 2022.
COELHO, Tiago. Filmes de Comentário. Revista Piauí, edição 163, p. 68-73, abril de 2020.
DURVAL, Nathalia. Se tiver que pagar por cultura brasileiro dá preferência ao cinema. Folha de São Paulo, 24 de julho de 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/07/se-tiver-de-pagar-por-cultura-brasileiro-da-preferencia-ao-cinema.shtml. Acesso em: 21 de outubro de 2022.
IBGE, Sistema de Informações e Indicadores Culturais. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/cultura-recreacao-e-esporte/9388-indicadores-culturais.html?=&t=resultados. Acesso em: 21 de outubro de 2022.