UM CONTRAPESO OU DIA DE VISITA EM MUSEU DE ARTE UNIVERSITÁRIO
TEXTO CURTO Michele Dacas
Doutora em comunicação social pela UFMG e relações públicas do Museu de Arte da UFPR.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº18, MAR., ANO 2023
ACESSO À CULTURA
RESUMO
As tradicionais visitas guiadas, por vezes consideradas como uma frente de trabalho de segunda mão dos museus, ou até mesmo como obsoletas em seus formatos, mas ainda assim insubstituíveis vias de acesso do público a espaços institucionais da arte, podem ser importantes disparadoras de reflexões entre mediadores (as) e visitantes. Num contexto em que cada vez mais preocupa-se com tecnologias para imprimir interatividade a essas experiências, propõe-se aqui um recorte sobre a potência do diálogo para instigar interpretações de mundo desde uma pequena sala de um museu de arte. Reflexões coletivas sobre a democratização da arte, motivadas numa visita guiada entre estudantes de museologia e trabalhadoras de um museu universitário no instante capturado da emblemática e incerta conjuntura política do mês de outubro de 2022, fazem parte deste relato crítico que anuncia: a fruição artística pode ser um contrapeso, a contrabalançar, compensar ou moderar estruturas socialmente asfixiantes.
Enquadramento angular sobre um dia de visita em museu de arte universitário
Iniciei meu trabalho no Museu de Arte da UFPR (MusA) no mês de julho deste paradigmático ano de 2022 e, desde então, pensar a mediação entre públicos, artistas e arte tem sido uma questão constante a nortear minha prática. Essa questão será trazida ao longo deste relato crítico em primeira pessoa, que tem como foco abordar o início de um trabalho em um museu universitário. Nos parágrafos que seguem, vou trazendo a reflexão sobre o acesso à cultura a partir da experiência ocorrida durante a recepção da visita de uma turma de museologia. Apesar de já terem sido muitas as vivências nesse campo, vou destacar aqui o trabalho de mediação que resultou da curadoria da exposição QUEM conhece o MUSA? o museu e a rua: trajetos e trajetórias do Museu de Arte da UFPR1, meu primeiro trabalho realizado na instituição. Importante contextualizar ainda que eu cheguei na UFPR no auge da programação dos 20 anos do museu e em tempo de organizar e promover essa exposição comemorativa que me possibilitou conhecer a história do lugar em que eu estava iniciando uma nova jornada de trabalho.
Na curadoria, a pesquisa é quase sempre o ponto de partida, e foi nesse processo que comecei a mexer em documentos, catálogos, acervos, vídeos, matérias de jornais sobre o MusA. Momento em que tomei conhecimento que aquele espaço em que estava ingressando havia sido construído por duas mulheres, Maria José Justino e Dulce Osinski, há vinte anos, no campus histórico da UFPR. Nos relatos dessas duas professoras, artistas e gestoras culturais, torna-se evidente que a implementação desse museu de arte com acesso para a histórica Rua XV de Curitiba não foi tarefa fácil. Encontrei em matérias de jornais depoimentos no auge de sua inauguração que relatavam a defasagem de equipes, precariedade nas estruturas, dificuldades na gestão, com trocas de mandatos, e opinião um tanto adversa da comunidade universitária, que julgava naquela época que a universidade teria outras prioridades mais urgentes do que um museu de arte. Ao mesmo tempo em que percorria os arquivos que me transportavam a aquele passado de luta, surgiam diferentes questões em relação ao contexto social e político atual que atravessa tanto a mim, como trabalhadora da cultura, quanto ao museu como equipamento público cultural. Uma delas, inclusive, é a indagação central desta reflexão, que pondera como é possível ampliar a participação nesses espaços do sensível diante da precariedade material atualmente vivenciada pelas instituições culturais no país chamado Brasil?
Para lançar luz sobre essa questão, amparo minhas reflexões na análise cultural marxista proposta por Raymond Williams (2011), que implica na perspectiva materialista, segundo a qual tudo na sociedade é produto da ação humana, portanto passível de transformação. Esse autor contribui para compreender as realidades do processo cultural diante das profundas contradições nas relações entre base e superestrutura (Estado, classe, mercado, propriedade privada etc.), que, longe de serem estáticas, manifestam a possibilidade constante de variação, num processo de estado dinâmico. A base para o autor se refere às forças produtivas, mas não nos termos estreitos da produção capitalista de mercadorias, e sim no sentido mais abrangente que as examina como forças sociais vitais pelas quais o ser humano, tanto na condição específica do seu trabalho quanto na condição social mais ampla, produz a si mesmo e a sua história e, portanto, também inclui a cultura. Uma atividade cultural específica está implicada em relações sociais e econômicas reais. A cultura que na maioria das vezes é tomada de modo subjetivista, assim como outros setores da sociedade, também contribui para a produção e reprodução da vida real, enquanto é regida pelas condições materiais de trabalho e domínio dos meios de produção.
Nesse sentido, para problematizar o acesso à cultura a partir de um equipamento cultural público, mais precisamente, em um museu universitário, destacamos que são constituídos por pessoas e assim atravessados pelas relações produtivas de trabalho, e mais que isso, influenciam e são influenciados pelo momento histórico no qual estão inseridos. Museus não são apenas espaços de guarda, mas também agentes da historia, assim como outras instituições culturais públicas que após anos de desmontes e ataques deliberados pelos últimos governos no Brasil resistiram e se reinventaram. Sabemos que nos últimos tempos o ministério da cultura desapareceu, instâncias do patrimônio e da memória foram tomadas de assalto, museus queimaram, acervos inundaram, orçamentos asfixiaram, cadeias produtivas inteiras de arte e cultura foram desmanteladas. Mas, e apesar de tudo isso, o campo da cultura em todas as suas diversas matizes produziu dos mais contundentes contrapesos a esse projeto de expropriação da classe trabalhadora financiado pela adesão subalterna do Brasil ao capital e ao imperialismo e a consequente ascensão do fascismo no mundo contemporâneo.
A contradição aqui posta é concreta. Enquanto por um lado tivemos a aceleração da desigualdade e expansão dos aparelhos hegemônicos de repressão, na outra ponta surgiram novas formas de organização da luta que inclusive emergiu do campo da cultura. Um exemplo disso, e durante o período de uma das fases mais duras do governo Bolsonaro, foi a aprovação da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, fruto da mobilização de trabalhadores culturais e de organizações da sociedade civil e de lideranças políticas, na tentativa de minimizar os impactos ao setor cultural, tão aviltado em sua dignidade nos últimos anos e atingido em cheio pela pandemia da covid-19 que se alastrou pelo mundo e, em condições particularmente criminosas, no Brasil.
Dando sequência a essa jornada coletiva, trabalhadores e organizações culturais seguiram somando na luta por ampliar e implementar a lei Aldir Blanc 2 e a lei Paulo Gustavo com o objetivo de disponibilizar recursos para serem operacionalizados pelos governos municipais e estaduais, como fomento aos artistas, espaços e projetos culturais, conforme cada realidade. Essa inventividade na elaboração das duas leis colocadas a serviço da emergência social foi construída com centenas de agentes culturais e resultou em uma potente cartografia do setor cultural brasileiro em suas diversidades e complexidades. Ainda que não tenha implicado em uma ruptura com o domínio da burguesia e das milícias fascistas que tomaram de assalto os fundos públicos e a arena política, essa distribuição dos recursos para o setor cultural implicou numa importante vitória para a classe trabalhadora, principalmente porque foi dada em um cenário totalmente adverso, bem dizer, catastrófico e apocalíptico. Tanto foi que essa é uma conquista ainda em disputa e que sofre constantes tentativas de ser usurpada. Ainda assim, a mobilização no campo da arte e da cultura demonstrou como este pode ser um segmento com alto poder de mover as bases da sociedade brasileira, e que se não é capaz ainda de romper com as estruturas hegemônicas, pode efetivamente tensioná-las e influir no curso da história.
No mesmo compasso desse cordão nacional da cultura, práticas residuais dessa luta foram forjadas e persistiram em coletivos, grupos, zonas e circuitos independentes, mas também na institucionalidade de equipamentos públicos de cultura. As “práticas residuais” (WILIAMS, 2011) são aqueles muitos significados valores ora desprezados, ora não reconhecidos pela cultura dominante. Mas, quando perceptíveis, essas práticas podem ser por ela incorporadas, para não escapar do seu controle. No entanto, mesmo em um sistema altamente hegemonizado, muitas práticas culturais sobrevivem como residuais, sendo formas de se opor ou de transformar um sistema de dominação e propor outros modos de existir. Mas num contexto de tomada do Estado por um governo autoritário, pressupõe-se que grande parte do campo da cultura e sua diversidade de práticas também se tornaram residuais, inclusive as instâncias institucionais. Sabemos que não interessa a governos totalitários a incorporação de práticas culturais emergentes, e sim, a sua aniquilação. Porque esses governos produzem sua própria cultura com alinhamento total de formas e conteúdos à sua ideologia opressora.
Se nos conformamos, nesse sentido, como práticas residuais de um Estado que um dia aspirou incorporar grande parte da cultura produzida nos múltiplos territórios desse país continental a um sistema nacional de cultura, nos últimos anos, nem mesmo as ações institucionalizadas encontraram correspondência no governo Bolsonaro e suas representações na sociedade. Podemos ousar dizer, dessa forma, que grande parte do campo cultural, que engloba desde as organizações independentes às institucionais e até mesmo algumas frações do mercado das artes, em melhores ou piores condições, só encontraram meios de resistir mobilizando suas forças produtivas em oposição ao desmonte cultural.
Volto, nesse sentido, para a minha experiência de trabalho em um pequeno museu de arte universitário, e relato o dia em que recebemos uma turma de museologia da Unespar. Era o pessoal do primeiro ano do curso, aquele período em que as ilusões e os sonhos com o caminho escolhido são vastos, e isso, bem como sabemos, é bom. Mas acontece que era outubro de 2022, e eu com poucos meses trabalhando no MusA da UFPR, mas com muitos anos de atuação no campo cultural dentro de instituições públicas, mediei aquela visita da exposição artística e histórica sobre o museu que eu havia ajudado a curar. Minha preocupação ali era despertar neles a reflexão sobre o quanto é fundamental pensarmos a relação das diversas frentes de trabalho nos museus. Meu compromisso, naquele momento, era não deixar que os olhares atentos da aurora estudantil deixassem escapar a realidade concreta, as condições materiais que envolvem práticas de gestão, curadoria, preservação, expografia, comunicação e ações formativas nos museus. Todas vitais para funcionamento dessas instituições, principalmente quando assumem um de caráter universitário, que tem como missão e dever ser um laboratório de experimentação e aprendizado.
Conversamos com eles, eu e minha colega de trabalho, sobre a vulnerabilidade da recente história das políticas culturais no Brasil, a sua instituição inacabada como um sistema nacional de cultura. E o quanto é mais recente ainda a política cultural no âmbito das universidades públicas e como isso afeta os equipamentos de arte e cultura que se desenrolam a partir delas. Destacamos também a importância da cultura surgir como mais um pilar nas universidades públicas, de modo transversal aos demais, entre o ensino, a pesquisa e a extensão. Falamos sobre o contingenciamento de recursos, que um museu de arte universitário é duplamente prejudicado, pois os ataques vêm da pasta da educação e da pasta da cultura, e vem também de uma parte da população que desdenha de ambos.
Quase ao fim da visita, caminhando pela sala, analisamos a obra “nulo e raso”, de Carina Weidle (Figura 1), uma placa de parafina sobre um balão de látex, que fazia parte da exposição, e a comparamos com a contradição própria de nosso tempo. Observamos juntos que o balão em contrapeso da placa de parafina, assim como nós, trabalhadores culturais, e os espaços do sensível que acolhem e difundem a cultura, não cedemos ao peso que carregamos. Pontuamos que mesmo no pior dos cenários, ainda que pareça que a cultura vai esmorecer, ela perdura, persiste, transforma, como o balão de látex em contato com a placa de parafina. A cultura, mesmo em condições precárias, segue produzindo aquilo que é capaz de humanizar, mover ou retumbar os pilares que sustentam até mesmo um governo totalitário. A cultura mesmo em condições restritas, em pequena escala, amplia os acessos. Mas enquanto a conversa aprofundava na sala expositiva do MusA, no noticiário o anúncio de mais cortes no orçamento das universidades públicas. Naquele mesmo dia, naquela sala, com o ressoar de mais cortes, nós estávamos, estudantes de museologia. trabalhadoras da cultura e arte, compartilhando conhecimento e expandindo as nossas possibilidades de futuro. Um contrapeso!
UM CONTRAPESO OU DIA DE VISITA EM MUSEU DE ARTE UNIVERSITÁRIO
TEXTO CURTO Michele Dacas
Doutora em comunicação social pela UFMG e relações públicas do Museu de Arte da UFPR.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº18, MAR., ANO 2023
ACESSO À CULTURA
RESUMO
As tradicionais visitas guiadas, por vezes consideradas como uma frente de trabalho de segunda mão dos museus, ou até mesmo como obsoletas em seus formatos, mas ainda assim insubstituíveis vias de acesso do público a espaços institucionais da arte, podem ser importantes disparadoras de reflexões entre mediadores (as) e visitantes. Num contexto em que cada vez mais preocupa-se com tecnologias para imprimir interatividade a essas experiências, propõe-se aqui um recorte sobre a potência do diálogo para instigar interpretações de mundo desde uma pequena sala de um museu de arte. Reflexões coletivas sobre a democratização da arte, motivadas numa visita guiada entre estudantes de museologia e trabalhadoras de um museu universitário no instante capturado da emblemática e incerta conjuntura política do mês de outubro de 2022, fazem parte deste relato crítico que anuncia: a fruição artística pode ser um contrapeso, a contrabalançar, compensar ou moderar estruturas socialmente asfixiantes.
Enquadramento angular sobre um dia de visita em museu de arte universitário
Iniciei meu trabalho no Museu de Arte da UFPR (MusA) no mês de julho deste paradigmático ano de 2022 e, desde então, pensar a mediação entre públicos, artistas e arte tem sido uma questão constante a nortear minha prática. Essa questão será trazida ao longo deste relato crítico em primeira pessoa, que tem como foco abordar o início de um trabalho em um museu universitário. Nos parágrafos que seguem, vou trazendo a reflexão sobre o acesso à cultura a partir da experiência ocorrida durante a recepção da visita de uma turma de museologia. Apesar de já terem sido muitas as vivências nesse campo, vou destacar aqui o trabalho de mediação que resultou da curadoria da exposição QUEM conhece o MUSA? o museu e a rua: trajetos e trajetórias do Museu de Arte da UFPR1, meu primeiro trabalho realizado na instituição. Importante contextualizar ainda que eu cheguei na UFPR no auge da programação dos 20 anos do museu e em tempo de organizar e promover essa exposição comemorativa que me possibilitou conhecer a história do lugar em que eu estava iniciando uma nova jornada de trabalho.
Na curadoria, a pesquisa é quase sempre o ponto de partida, e foi nesse processo que comecei a mexer em documentos, catálogos, acervos, vídeos, matérias de jornais sobre o MusA. Momento em que tomei conhecimento que aquele espaço em que estava ingressando havia sido construído por duas mulheres, Maria José Justino e Dulce Osinski, há vinte anos, no campus histórico da UFPR. Nos relatos dessas duas professoras, artistas e gestoras culturais, torna-se evidente que a implementação desse museu de arte com acesso para a histórica Rua XV de Curitiba não foi tarefa fácil. Encontrei em matérias de jornais depoimentos no auge de sua inauguração que relatavam a defasagem de equipes, precariedade nas estruturas, dificuldades na gestão, com trocas de mandatos, e opinião um tanto adversa da comunidade universitária, que julgava naquela época que a universidade teria outras prioridades mais urgentes do que um museu de arte. Ao mesmo tempo em que percorria os arquivos que me transportavam a aquele passado de luta, surgiam diferentes questões em relação ao contexto social e político atual que atravessa tanto a mim, como trabalhadora da cultura, quanto ao museu como equipamento público cultural. Uma delas, inclusive, é a indagação central desta reflexão, que pondera como é possível ampliar a participação nesses espaços do sensível diante da precariedade material atualmente vivenciada pelas instituições culturais no país chamado Brasil?
Para lançar luz sobre essa questão, amparo minhas reflexões na análise cultural marxista proposta por Raymond Williams (2011), que implica na perspectiva materialista, segundo a qual tudo na sociedade é produto da ação humana, portanto passível de transformação. Esse autor contribui para compreender as realidades do processo cultural diante das profundas contradições nas relações entre base e superestrutura (Estado, classe, mercado, propriedade privada etc.), que, longe de serem estáticas, manifestam a possibilidade constante de variação, num processo de estado dinâmico. A base para o autor se refere às forças produtivas, mas não nos termos estreitos da produção capitalista de mercadorias, e sim no sentido mais abrangente que as examina como forças sociais vitais pelas quais o ser humano, tanto na condição específica do seu trabalho quanto na condição social mais ampla, produz a si mesmo e a sua história e, portanto, também inclui a cultura. Uma atividade cultural específica está implicada em relações sociais e econômicas reais. A cultura que na maioria das vezes é tomada de modo subjetivista, assim como outros setores da sociedade, também contribui para a produção e reprodução da vida real, enquanto é regida pelas condições materiais de trabalho e domínio dos meios de produção.
Nesse sentido, para problematizar o acesso à cultura a partir de um equipamento cultural público, mais precisamente, em um museu universitário, destacamos que são constituídos por pessoas e assim atravessados pelas relações produtivas de trabalho, e mais que isso, influenciam e são influenciados pelo momento histórico no qual estão inseridos. Museus não são apenas espaços de guarda, mas também agentes da historia, assim como outras instituições culturais públicas que após anos de desmontes e ataques deliberados pelos últimos governos no Brasil resistiram e se reinventaram. Sabemos que nos últimos tempos o ministério da cultura desapareceu, instâncias do patrimônio e da memória foram tomadas de assalto, museus queimaram, acervos inundaram, orçamentos asfixiaram, cadeias produtivas inteiras de arte e cultura foram desmanteladas. Mas, e apesar de tudo isso, o campo da cultura em todas as suas diversas matizes produziu dos mais contundentes contrapesos a esse projeto de expropriação da classe trabalhadora financiado pela adesão subalterna do Brasil ao capital e ao imperialismo e a consequente ascensão do fascismo no mundo contemporâneo.
A contradição aqui posta é concreta. Enquanto por um lado tivemos a aceleração da desigualdade e expansão dos aparelhos hegemônicos de repressão, na outra ponta surgiram novas formas de organização da luta que inclusive emergiu do campo da cultura. Um exemplo disso, e durante o período de uma das fases mais duras do governo Bolsonaro, foi a aprovação da Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, fruto da mobilização de trabalhadores culturais e de organizações da sociedade civil e de lideranças políticas, na tentativa de minimizar os impactos ao setor cultural, tão aviltado em sua dignidade nos últimos anos e atingido em cheio pela pandemia da covid-19 que se alastrou pelo mundo e, em condições particularmente criminosas, no Brasil.
Dando sequência a essa jornada coletiva, trabalhadores e organizações culturais seguiram somando na luta por ampliar e implementar a lei Aldir Blanc 2 e a lei Paulo Gustavo com o objetivo de disponibilizar recursos para serem operacionalizados pelos governos municipais e estaduais, como fomento aos artistas, espaços e projetos culturais, conforme cada realidade. Essa inventividade na elaboração das duas leis colocadas a serviço da emergência social foi construída com centenas de agentes culturais e resultou em uma potente cartografia do setor cultural brasileiro em suas diversidades e complexidades. Ainda que não tenha implicado em uma ruptura com o domínio da burguesia e das milícias fascistas que tomaram de assalto os fundos públicos e a arena política, essa distribuição dos recursos para o setor cultural implicou numa importante vitória para a classe trabalhadora, principalmente porque foi dada em um cenário totalmente adverso, bem dizer, catastrófico e apocalíptico. Tanto foi que essa é uma conquista ainda em disputa e que sofre constantes tentativas de ser usurpada. Ainda assim, a mobilização no campo da arte e da cultura demonstrou como este pode ser um segmento com alto poder de mover as bases da sociedade brasileira, e que se não é capaz ainda de romper com as estruturas hegemônicas, pode efetivamente tensioná-las e influir no curso da história.
No mesmo compasso desse cordão nacional da cultura, práticas residuais dessa luta foram forjadas e persistiram em coletivos, grupos, zonas e circuitos independentes, mas também na institucionalidade de equipamentos públicos de cultura. As “práticas residuais” (WILIAMS, 2011) são aqueles muitos significados valores ora desprezados, ora não reconhecidos pela cultura dominante. Mas, quando perceptíveis, essas práticas podem ser por ela incorporadas, para não escapar do seu controle. No entanto, mesmo em um sistema altamente hegemonizado, muitas práticas culturais sobrevivem como residuais, sendo formas de se opor ou de transformar um sistema de dominação e propor outros modos de existir. Mas num contexto de tomada do Estado por um governo autoritário, pressupõe-se que grande parte do campo da cultura e sua diversidade de práticas também se tornaram residuais, inclusive as instâncias institucionais. Sabemos que não interessa a governos totalitários a incorporação de práticas culturais emergentes, e sim, a sua aniquilação. Porque esses governos produzem sua própria cultura com alinhamento total de formas e conteúdos à sua ideologia opressora.
Se nos conformamos, nesse sentido, como práticas residuais de um Estado que um dia aspirou incorporar grande parte da cultura produzida nos múltiplos territórios desse país continental a um sistema nacional de cultura, nos últimos anos, nem mesmo as ações institucionalizadas encontraram correspondência no governo Bolsonaro e suas representações na sociedade. Podemos ousar dizer, dessa forma, que grande parte do campo cultural, que engloba desde as organizações independentes às institucionais e até mesmo algumas frações do mercado das artes, em melhores ou piores condições, só encontraram meios de resistir mobilizando suas forças produtivas em oposição ao desmonte cultural.
Volto, nesse sentido, para a minha experiência de trabalho em um pequeno museu de arte universitário, e relato o dia em que recebemos uma turma de museologia da Unespar. Era o pessoal do primeiro ano do curso, aquele período em que as ilusões e os sonhos com o caminho escolhido são vastos, e isso, bem como sabemos, é bom. Mas acontece que era outubro de 2022, e eu com poucos meses trabalhando no MusA da UFPR, mas com muitos anos de atuação no campo cultural dentro de instituições públicas, mediei aquela visita da exposição artística e histórica sobre o museu que eu havia ajudado a curar. Minha preocupação ali era despertar neles a reflexão sobre o quanto é fundamental pensarmos a relação das diversas frentes de trabalho nos museus. Meu compromisso, naquele momento, era não deixar que os olhares atentos da aurora estudantil deixassem escapar a realidade concreta, as condições materiais que envolvem práticas de gestão, curadoria, preservação, expografia, comunicação e ações formativas nos museus. Todas vitais para funcionamento dessas instituições, principalmente quando assumem um de caráter universitário, que tem como missão e dever ser um laboratório de experimentação e aprendizado.
Conversamos com eles, eu e minha colega de trabalho, sobre a vulnerabilidade da recente história das políticas culturais no Brasil, a sua instituição inacabada como um sistema nacional de cultura. E o quanto é mais recente ainda a política cultural no âmbito das universidades públicas e como isso afeta os equipamentos de arte e cultura que se desenrolam a partir delas. Destacamos também a importância da cultura surgir como mais um pilar nas universidades públicas, de modo transversal aos demais, entre o ensino, a pesquisa e a extensão. Falamos sobre o contingenciamento de recursos, que um museu de arte universitário é duplamente prejudicado, pois os ataques vêm da pasta da educação e da pasta da cultura, e vem também de uma parte da população que desdenha de ambos.
Quase ao fim da visita, caminhando pela sala, analisamos a obra “nulo e raso”, de Carina Weidle (Figura 1), uma placa de parafina sobre um balão de látex, que fazia parte da exposição, e a comparamos com a contradição própria de nosso tempo. Observamos juntos que o balão em contrapeso da placa de parafina, assim como nós, trabalhadores culturais, e os espaços do sensível que acolhem e difundem a cultura, não cedemos ao peso que carregamos. Pontuamos que mesmo no pior dos cenários, ainda que pareça que a cultura vai esmorecer, ela perdura, persiste, transforma, como o balão de látex em contato com a placa de parafina. A cultura, mesmo em condições precárias, segue produzindo aquilo que é capaz de humanizar, mover ou retumbar os pilares que sustentam até mesmo um governo totalitário. A cultura mesmo em condições restritas, em pequena escala, amplia os acessos. Mas enquanto a conversa aprofundava na sala expositiva do MusA, no noticiário o anúncio de mais cortes no orçamento das universidades públicas. Naquele mesmo dia, naquela sala, com o ressoar de mais cortes, nós estávamos, estudantes de museologia. trabalhadoras da cultura e arte, compartilhando conhecimento e expandindo as nossas possibilidades de futuro. Um contrapeso!
Notas de rodapé
1 http://www.musa.ufpr.br/links/exposicoes/2022/quem_conhece_musa.html. Acesso em: 24 dez. 2022.
Referências Bibliográficas
FONTES, Virgínia. Capital-imperialismo, atualização do Lenin. [S.l.]: Decifra-me Enquanto te Devoro, 2021. 1 vídeo (2h 02min 03seg). Disponível em: https://youtu.be/Sko0GR4x888. Acesso em: 24 dez. 2022.
MUSA MATINÊ. Elaborações críticas sobre o MusA: pesquisa, curadoria e mediação em artes no museu universitário. [Curitiba]: MusA Matinê, n.01, programa audiovisual desenvolvido pelo Museu de Arte da UFPR, Disponível em: https://youtu.be/IYHC2Ym4HhY. Acesso em: 06 out. 2022.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
Lista de Imagens
Capa Carina Weidle, nulo e raso, 1992, placa de parafina sobre balão de látex, 46 x 100 x 70 cm.
Notas de Rodapé
1 http://www.musa.ufpr.br/links/exposicoes/2022/quem_conhece_musa.html. Acesso em: 24 dez. 2022.
Referências Bibliográficas
FONTES, Virgínia. Capital-imperialismo, atualização do Lenin. [S.l.]: Decifra-me Enquanto te Devoro, 2021. 1 vídeo (2h 02min 03seg). Disponível em: https://youtu.be/Sko0GR4x888. Acesso em: 24 dez. 2022.
MUSA MATINÊ. Elaborações críticas sobre o MusA: pesquisa, curadoria e mediação em artes no museu universitário. [Curitiba]: MusA Matinê, n.01, programa audiovisual desenvolvido pelo Museu de Arte da UFPR, Disponível em: https://youtu.be/IYHC2Ym4HhY. Acesso em: 06 out. 2022.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
Lista de Imagens
Capa Carina Weidle, nulo e raso, 1992, placa de parafina sobre balão de látex, 46 x 100 x 70 cm.