NA SOMBRA DE SEU PAR: O CASO DE GEORGINA DE ALBUQUERQUE
TEXTO CURTO Camila de Oliveira Savoi
Camila de Oliveira Savoi é mestranda em História da Arte pela Universidade de Montréal (UdeM). Atualmente, pesquisa artistas mulheres do Brasil e atua como coeditora e curadora da revista digital Arte ConTexto desde 2021.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº18, MAR., ANO 2023
ACESSO À CULTURA
RESUMO
A abordagem de Lea Vergine quanto às artistas mulheres apagadas da história da arte colabora para compreender como elas mesmas contribuíram para esse apagamento. É o caso da pintora Georgina de Albuquerque, que, respondendo às exigências da sociedade patriarcal do início do século 20 ao trabalhar para garantir o prestígio da obra do marido, acabou à sua sombra. Porém, nas últimas duas décadas, diversas pesquisas de abordagens feministas recuperaram a importância do trabalho de Georgina de Albuquerque para a arte brasileira. Dessa maneira, não existem mais justificativas para o cânone não colocar a luz do holofote sobre ela e outras artistas mulheres cujas carreiras e os trabalhos têm sido reabilitados.
A análise da conduta de artistas mulheres sob as constatações da crítica de arte e curadora italiana Lea Vergine nos ajuda a compreender os fatores que contribuíram para a exclusão delas da história da arte. Uma dessas constatações é o processo de apagamento de artistas mulheres do cânone artístico por recuarem à sombra de uma figura masculina, sendo que o trabalho delas foi essencial ao sucesso de vários homens. Como exemplo, pode-se citar a artista brasileira Georgina de Albuquerque (1885–1962), que era somente aludida como a esposa do também artista Lucílio de Albuquerque, embora ela tenha construído uma carreira sólida no início do século 20.
Lea Vergine sobre as Artistas Mulheres
Em 1980, Vergine foi curadora da exposição A Outra Metade da Vanguarda 1910-1940: Pintoras e Escultoras do Movimento de Vanguarda Histórico1. O objetivo da italiana a partir dessa exibição era demonstrar que os trabalhos de artistas mulheres excluídas da história de alguns movimentos de vanguarda da arte moderna possuíam tanta qualidade e importância para o cânone quanto os trabalhos produzidos pelos artistas do gênero oposto. No catálogo da exposição, Vergine (1982) enumera alguns fatores que colaboraram para a invisibilidade das artistas ao longo da história. Entre eles, a curadora notou que “[…] algumas [artistas] se marginalizaram em benefício de seus colegas, que elas integraram o gueto excluso da cidade, e que delegaram sua vida […] ‘do real à eternidade sem desfrutar um momento de história’ […]” (VERGINE, 1982, p. 172). Ela ainda utilizou o termo “a metade suicida do gênio criador” (VERGINE, 1982, p. 133) para se referir às diversas artistas que recuaram para a sombra de seus pares, como Sonia Delaunay em relação a Robert Delaunay, por exemplo.
Numa entrevista com a artista Stefania Gaudiosi, Vergine detalhou esse processo: “Muitas destas mulheres trabalharam no lugar dos seus maridos, no lugar dos seus irmãos, no lugar dos seus amantes, e muitas das coisas que vemos assinadas pelos homens foram feitas por elas…” (GAUDIOSI, 2019, p. 304). Dessa forma, percebe-se que muitas mulheres talentosas colaboraram para o reconhecimento e consagração histórica de figuras masculinas próximas a elas. Como resultado, nas ocasiões em que se mencionam seus nomes, frequentemente esses são empregados somente para louvar o talento de um homem, sendo elas mesmas eliminadas do cânone. Georgina de Albuquerque é um exemplo de artista brasileira que passa por essa dinâmica, uma vez que ela é introduzida nas obras de referência como esposa do artista Lucílio de Albuquerque (SILVA, 2018). Em contrapartida, isso não acontece nos verbetes sobre ele.
O Caso de Georgina de Albuquerque
Entre 27 de setembro e 5 de novembro de 2006, na sede da Caixa Cultural do Rio de Janeiro, foi realizada a exposição Lucílio de Albuquerque 1877–1939. Os trabalhos expostos pertencem ao acervo do Museu do Ingá, que herdou as telas provenientes do extinto Museu Lucílio de Albuquerque. Georgina5 fundou esse museu com o nome de seu marido em 1943 e se encarregou da direção do lugar por mais de um decênio. Ela colaborou assim para conservar a obra de Lucílio, mediante a realização do inventário e das fichas catalográficas de cada item. Além disso, a coleção do museu contava com a certidão de batismo, o diploma, entre outros documentos que simplificam o processo de pesquisa sobre a vida do artista.
No entanto, como explica Silva (2018), Georgina não se preocupou em anexar suas obras ou suas documentações às de seu marido na coleção do Museu Lucílio de Albuquerque. De um lado, observamos que o zelo dedicado ao patrimônio de Lucílio não foi colocado em prática no que se refere à sua própria herança de artista. De outro lado, o comportamento de Georgina corresponde às expectativas no que concerne às mulheres de sua época, uma vez que, segundo a historiadora Larissa Cerezer (2008), uma das funções do sexo feminino no início do século 20 era colaborar positivamente para a imagem social da figura masculina à qual estaria atrelada, sem brilhar demais a ponto de ofuscar o homem ao seu lado. Assim, a ideologia patriarcal que mantinha a mulher submissa ao homem foi essencial para silenciar a história quanto à prática artística de mulheres como Georgina.
São raros os trabalhos de Georgina que se encontram em coleções públicas. No levantamento realizado pela historiadora da arte Thais Canfild Silva (2021), somente 27 de suas obras se encontram em acervos públicos. A maior parte de sua produção artística está em coleções particulares, inacessível ao público ou desaparecida. Se compararmos ao número de obras de Lucílio, somente o Museu do Ingá possui 127 objetos assinados pelo artista ou atribuídos a ele (CAIXA CULTURAL, 2006), cem a mais do que todos os trabalhos de Georgina que se encontram em instituições similares.
Contudo, o objetivo desse texto não é culpabilizar Georgina de Albuquerque pela gestão de sua carreira e fortuna artística, tampouco vitimizar uma artista que mostrou grande determinação em construir uma carreira num meio essencialmente masculino. Como a própria Vergine explica no que se refere às artistas, “talvez elas tenham sido ‘metade vítimas, metade cúmplices, como todas nós” (VERGINE, 1982, p. 226).
Finalmente, a abordagem de Lea Vergine reconhece um dos motivos possíveis pelo qual uma artista brasileira importante para a sua época não integra o discurso artístico hegemônico. Depois de constatar essas exclusões resultantes da parcialidade do cânone, sendo esse um reflexo da ideologia patriarcal vigente, a próxima etapa é tirar as artistas mulheres dessas sombras, ou seja, retificar o discurso histórico para garantir o reconhecimento dos seus trabalhos, independentemente do papel que desempenharam ao lado de seus pares.
NA SOMBRA DE SEU PAR: O CASO DE GEORGINA DE ALBUQUERQUE
TEXTO CURTO Camila de Oliveira Savoi
Camila de Oliveira Savoi é mestranda em História da Arte pela Universidade de Montréal (UdeM). Atualmente, pesquisa artistas mulheres do Brasil e atua como coeditora e curadora da revista digital Arte ConTexto desde 2021.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº18, MAR., ANO 2023
ACESSO À CULTURA
RESUMO
A abordagem de Lea Vergine quanto às artistas mulheres apagadas da história da arte colabora para compreender como elas mesmas contribuíram para esse apagamento. É o caso da pintora Georgina de Albuquerque, que, respondendo às exigências da sociedade patriarcal do início do século 20 ao trabalhar para garantir o prestígio da obra do marido, acabou à sua sombra. Porém, nas últimas duas décadas, diversas pesquisas de abordagens feministas recuperaram a importância do trabalho de Georgina de Albuquerque para a arte brasileira. Dessa maneira, não existem mais justificativas para o cânone não colocar a luz do holofote sobre ela e outras artistas mulheres cujas carreiras e os trabalhos têm sido reabilitados.
A análise da conduta de artistas mulheres sob as constatações da crítica de arte e curadora italiana Lea Vergine nos ajuda a compreender os fatores que contribuíram para a exclusão delas da história da arte. Uma dessas constatações é o processo de apagamento de artistas mulheres do cânone artístico por recuarem à sombra de uma figura masculina, sendo que o trabalho delas foi essencial ao sucesso de vários homens. Como exemplo, pode-se citar a artista brasileira Georgina de Albuquerque (1885–1962), que era somente aludida como a esposa do também artista Lucílio de Albuquerque, embora ela tenha construído uma carreira sólida no início do século 20.
Lea Vergine sobre as Artistas Mulheres
Em 1980, Vergine foi curadora da exposição A Outra Metade da Vanguarda 1910-1940: Pintoras e Escultoras do Movimento de Vanguarda Histórico1. O objetivo da italiana a partir dessa exibição era demonstrar que os trabalhos de artistas mulheres excluídas da história de alguns movimentos de vanguarda da arte moderna possuíam tanta qualidade e importância para o cânone quanto os trabalhos produzidos pelos artistas do gênero oposto. No catálogo da exposição, Vergine (1982) enumera alguns fatores que colaboraram para a invisibilidade das artistas ao longo da história. Entre eles, a curadora notou que “[…] algumas [artistas] se marginalizaram em benefício de seus colegas, que elas integraram o gueto excluso da cidade, e que delegaram sua vida […] ‘do real à eternidade sem desfrutar um momento de história’ […]” (VERGINE, 1982, p. 172). Ela ainda utilizou o termo “a metade suicida do gênio criador” (VERGINE, 1982, p. 133) para se referir às diversas artistas que recuaram para a sombra de seus pares, como Sonia Delaunay em relação a Robert Delaunay, por exemplo.
Numa entrevista com a artista Stefania Gaudiosi, Vergine detalhou esse processo: “Muitas destas mulheres trabalharam no lugar dos seus maridos, no lugar dos seus irmãos, no lugar dos seus amantes, e muitas das coisas que vemos assinadas pelos homens foram feitas por elas…” (GAUDIOSI, 2019, p. 304). Dessa forma, percebe-se que muitas mulheres talentosas colaboraram para o reconhecimento e consagração histórica de figuras masculinas próximas a elas. Como resultado, nas ocasiões em que se mencionam seus nomes, frequentemente esses são empregados somente para louvar o talento de um homem, sendo elas mesmas eliminadas do cânone. Georgina de Albuquerque é um exemplo de artista brasileira que passa por essa dinâmica, uma vez que ela é introduzida nas obras de referência como esposa do artista Lucílio de Albuquerque (SILVA, 2018). Em contrapartida, isso não acontece nos verbetes sobre ele.
O Caso de Georgina de Albuquerque
Entre 27 de setembro e 5 de novembro de 2006, na sede da Caixa Cultural do Rio de Janeiro, foi realizada a exposição Lucílio de Albuquerque 1877–1939. Os trabalhos expostos pertencem ao acervo do Museu do Ingá, que herdou as telas provenientes do extinto Museu Lucílio de Albuquerque. Georgina5 fundou esse museu com o nome de seu marido em 1943 e se encarregou da direção do lugar por mais de um decênio. Ela colaborou assim para conservar a obra de Lucílio, mediante a realização do inventário e das fichas catalográficas de cada item. Além disso, a coleção do museu contava com a certidão de batismo, o diploma, entre outros documentos que simplificam o processo de pesquisa sobre a vida do artista.
No entanto, como explica Silva (2018), Georgina não se preocupou em anexar suas obras ou suas documentações às de seu marido na coleção do Museu Lucílio de Albuquerque. De um lado, observamos que o zelo dedicado ao patrimônio de Lucílio não foi colocado em prática no que se refere à sua própria herança de artista. De outro lado, o comportamento de Georgina corresponde às expectativas no que concerne às mulheres de sua época, uma vez que, segundo a historiadora Larissa Cerezer (2008), uma das funções do sexo feminino no início do século 20 era colaborar positivamente para a imagem social da figura masculina à qual estaria atrelada, sem brilhar demais a ponto de ofuscar o homem ao seu lado. Assim, a ideologia patriarcal que mantinha a mulher submissa ao homem foi essencial para silenciar a história quanto à prática artística de mulheres como Georgina.
São raros os trabalhos de Georgina que se encontram em coleções públicas. No levantamento realizado pela historiadora da arte Thais Canfild Silva (2021), somente 27 de suas obras se encontram em acervos públicos. A maior parte de sua produção artística está em coleções particulares, inacessível ao público ou desaparecida. Se compararmos ao número de obras de Lucílio, somente o Museu do Ingá possui 127 objetos assinados pelo artista ou atribuídos a ele (CAIXA CULTURAL, 2006), cem a mais do que todos os trabalhos de Georgina que se encontram em instituições similares.
Contudo, o objetivo desse texto não é culpabilizar Georgina de Albuquerque pela gestão de sua carreira e fortuna artística, tampouco vitimizar uma artista que mostrou grande determinação em construir uma carreira num meio essencialmente masculino. Como a própria Vergine explica no que se refere às artistas, “talvez elas tenham sido ‘metade vítimas, metade cúmplices, como todas nós” (VERGINE, 1982, p. 226).
Finalmente, a abordagem de Lea Vergine reconhece um dos motivos possíveis pelo qual uma artista brasileira importante para a sua época não integra o discurso artístico hegemônico. Depois de constatar essas exclusões resultantes da parcialidade do cânone, sendo esse um reflexo da ideologia patriarcal vigente, a próxima etapa é tirar as artistas mulheres dessas sombras, ou seja, retificar o discurso histórico para garantir o reconhecimento dos seus trabalhos, independentemente do papel que desempenharam ao lado de seus pares.
Notas de Rodapé
1- Tradução livre.
2- Tradução livre.
3- Tradução livre.
4- Tradução livre.
5- Devido ao nome de família idêntico dos artistas Georgina e Lucílio de Albuquerque, que serão abordados nesse texto, optou-se por tratá-los pelo primeiro nome.
6- Tradução livre.
Referências Bibliográficas
CAIXA CULTURAL. Lucílio de Albuquerque 1877–1939. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2006.
CEREZER, L. No recato da intimidade: reflexões sobre a mulher e a família burguesa no brotar do século XX. PerCursos, Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 31-39. 2008.
GAUDIOSI, S. Necessario è solo il superfluo: intervista a Lea Vergine. Milão: Postmedia Books, 2019.
VERGINE, L. L’autre moitié de l’avant-garde 1910–1940: femmes peintres et femmes sculpteurs dans les mouvements d’avant-garde historiques. Paris: Éditions Des Femmes, 1982.
SILVA, T. C. Revisitando Georgina de Albuquerque: caminhos para uma revisão historiográfica de sua trajetória. In OLIVEIRA, L. S. e M. L. Távora (Eds.). Estado de Alerta!: livro 2. Niterói: PGCA-UFF, 2018. p. 173-185.
SILVA T. C. A trajetória de Georgina de Albuquerque no ensino das artes plásticas no Rio de Janeiro. 2021. 218 p. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.
Lista de Imagens
Capa Artista desconhecido, Salas do Museu Lucílio de Albuquerque, 1950, fotografia preto e branco, dimensões desconhecidas, O Malho (ano XLVIII, n. 124, maio de 1950).
Notas de Rodapé
1- Tradução livre.
2- Tradução livre.
3- Tradução livre.
4- Tradução livre.
5- Devido ao nome de família idêntico dos artistas Georgina e Lucílio de Albuquerque, que serão abordados nesse texto, optou-se por tratá-los pelo primeiro nome.
6- Tradução livre.
Referências Bibliográficas
CAIXA CULTURAL. Lucílio de Albuquerque 1877–1939. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2006.
CEREZER, L. No recato da intimidade: reflexões sobre a mulher e a família burguesa no brotar do século XX. PerCursos, Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 31-39. 2008.
GAUDIOSI, S. Necessario è solo il superfluo: intervista a Lea Vergine. Milão: Postmedia Books, 2019.
VERGINE, L. L’autre moitié de l’avant-garde 1910–1940: femmes peintres et femmes sculpteurs dans les mouvements d’avant-garde historiques. Paris: Éditions Des Femmes, 1982.
SILVA, T. C. Revisitando Georgina de Albuquerque: caminhos para uma revisão historiográfica de sua trajetória. In OLIVEIRA, L. S. e M. L. Távora (Eds.). Estado de Alerta!: livro 2. Niterói: PGCA-UFF, 2018. p. 173-185.
SILVA T. C. A trajetória de Georgina de Albuquerque no ensino das artes plásticas no Rio de Janeiro. 2021. 218 p. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.
Lista de Imagens
Capa Artista desconhecido, Salas do Museu Lucílio de Albuquerque, 1950, fotografia preto e branco, dimensões desconhecidas, O Malho (ano XLVIII, n. 124, maio de 1950).