A POTÊNCIA DO CORPO FEMININO PELAS RUAS
TEXTO CURTO Cristiane Silva Novais e Ludmila Britto
Cristiane Silva Novais Mestranda em Artes Visuais pelo PPGAV/UFBA, na linha de pesquisa História e Teoria da Arte. Especialista em Marketing Digital: Negócios e Estratégias pela PUC Minas (2022). Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela UESB (2019) e Arquitetura e Urbanismo pela Fainor (2019).
Ludmila Britto é artista visual e doutora em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia – PPGAV/UFBA. É professora de História da Arte da UFBA e participa do GIA – Grupo de Interferência Ambiental.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº18, MAR., ANO 2023
ACESSO À CULTURA
RESUMO
O presente texto discute a dimensão sexual que se instaura como mecanismo de poder, ditando até que ponto um corpo tem liberdade para perambular pelas ruas. Nesse caso, o das mulheres. Por sua vez, essa dinâmica é questionada quando coletivos de mulheres levam para o espaço público ações artísticas que perpassam pelas pautas feministas.
PALAVRAS-CHAVE
Feminismos. Urbanismo. Coletivos de arte.
É possível ouvir falar sobre os corpos que permeiam as ruas, individual ou coletivamente, mas pouco se questiona sobre a liberdade que esses corpos possuem – ou qual liberdade lhes é concedida. A experiência corporal na cidade é plenamente atravessada por referenciais sociais – machistas e misóginos, por excelência.
Para Silvana Rubino, a divisão sexual do mundo é também uma divisão dos espaços. Como consequência, uma relação conflituosa se instaura como mecanismo de poder, ditando qual corpo pode ocupar/fazer uso de cada espaço: o masculino, o público e a rua; o feminino, o privado e a casa. Entretanto as mulheres nunca estão invisíveis na cidade. Muitas vezes, os olhares, as provocações e as agressões pautam seus deslocamentos urbanos. Nesse sentido, Antonio Risério (2015, p. 22) pontua que “elas podiam detestar ou amar determinado local da cidade não por motivos estéticos, por exemplo – mas por recordações existenciais”. O resultado disso é o que todas as mulheres já sentiram, em determinado momento, ao perambular pela cidade: medo.
Por isso, nós mulheres devemos estar em um tipo de estado subjetivo e permanente de guerra. O que significa: “[…] assumir que somos atacadas e que tomamos a decisão – que é força comum – de que já não ficaremos mais pacificadas diante das violências cotidianas” (GAGO, 2020, p. 100) e “[…] um modo de atravessar o medo, e não simplesmente de pensar que ele deixa de existir” (GAGO, 2020, p. 100).
Assim, essa lógica binária é subvertida por mulheres artistas que levam suas pautas e demandas às ruas. Elas, que saem dos limites de socialização em que seus corpos foram tutelados. Contudo, o desafio não está somente por serem mulheres, mas também por levantarem temas que são naturalizados ou negligenciados pela sociedade. Aqui, o “desejo de rua” se expressa e se afirma (RAGO, 2015), em busca de criar esse outro espaço e esse outro tempo, encontrando outros modos de viver.
bell hooks (2010) aponta a importância de as mulheres se organizarem para construir um movimento de massa, descentralizar as discussões de um determinado contexto restrito – e, por vezes, privilegiado – e levar às ruas pensamentos e práticas feministas, sendo no encontro em coletivo dessas ações o momento em que poderiam se sentir seguras para ultrapassar o condicionamento pelo medo.
Em contraposição ao medo e à sensação de vulnerabilidade que atravessam as mulheres em suas vivências no espaço urbano, grupos e coletivos podem instaurar processos de colaboração que pressupõem a amizade, certa dose de solidariedade e empatia na cidade. Sem obliterar a condição política dessas coletividades, entendemos que há simultaneamente conflitos e desentendimentos que permeiam as relações intersubjetivas. A experiência de coletivos de mulheres no espaço urbano (numa perspectiva das Artes Visuais) pode catalisar experiências de tensões, confrontos e questionamentos necessários frente ao status quo. Qual seria, portanto, a potência desses corpos juntos e em consonância?
Alguns coletivos brasileiros vêm atuando em diferentes espaços, promovendo reflexões que atravessam feminismo e seus possíveis desdobramentos. Grupos como Freedas Crew (Belém – PA), Deixa Ela Em Paz (Recife – PE), Velcro Choque (Brasília – DF), Rede Nami (Rio de Janeiro – RJ) e Muchas Minas (Curitiba – PR)1 vêm propondo em diferentes cidades ações artísticas que perpassam pautas feministas.
Em 2018, o grupo Deixa Ela Em Paz espalhou pela cidade de João Pessoa (PB) cartazes lambe-lambes com os dizeres: “Este lugar não é esquisito. Esquisito é andar amedrontada” (Figura 1). Assim, o coletivo leva às ruas proposições que estimulam a refletir e questionar o machismo institucionalizado no cotidiano – nesse caso, em especial, o medo que afronta e limita as mulheres a andarem livremente pelas cidades. Ainda, esse trabalho faz parte do Circuito de Enfrentamento Urbano – CEU para Mulheres, um laboratório de intervenções urbanas feminista dedicado à relação das mulheres com o espaço público.
No Carnaval de 2018, o coletivo distribuiu adesivos com os dizeres: “Quando uma mulher cuida da outra, nenhuma está sozinha” (Figura 2). Dado o contexto de ser uma festa em que muitas mulheres são alvo de assédio ou violência, o grupo reforçou uma ideia simples, mas necessária: o apoio de uma mulher a outra, especialmente em situações de vulnerabilidade.
É necessário criar formas cooperativas de existência, com o intuito de discutir o que precisa ser feito e quais estratégias adotar para criar um outro mundo possível. Nesse processo, os coletivos contemporâneos formados por mulheres promovem ações urbanas que “[…] expandem a noção de público e de cidadania e desafiam a lógica binária patriarcal, investindo conta a cidade fálica […]” (RAGO, 2015, p. 55). Assim, a partir do momento que as mulheres se organizam e levam discussões que subvertem os mecanismos de poder que fortalecem o medo, o desvio e a disrupção da norma acontecem.
A POTÊNCIA DO CORPO FEMININO PELAS RUAS
TEXTO CURTO Cristiane Silva Novais e Ludmila Britto
Cristiane Silva Novais Mestranda em Artes Visuais pelo PPGAV/UFBA, na linha de pesquisa História e Teoria da Arte. Especialista em Marketing Digital: Negócios e Estratégias pela PUC Minas (2022). Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela UESB (2019) e Arquitetura e Urbanismo pela Fainor (2019).
Ludmila Britto é artista visual e doutora em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia – PPGAV/UFBA. É professora de História da Arte da UFBA e participa do GIA – Grupo de Interferência Ambiental.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº18, MAR., ANO 2023
ACESSO À CULTURA
RESUMO
O presente texto discute a dimensão sexual que se instaura como mecanismo de poder, ditando até que ponto um corpo tem liberdade para perambular pelas ruas. Nesse caso, o das mulheres. Por sua vez, essa dinâmica é questionada quando coletivos de mulheres levam para o espaço público ações artísticas que perpassam pelas pautas feministas.
PALAVRAS-CHAVE
Feminismos. Urbanismo. Coletivos de arte.
É possível ouvir falar sobre os corpos que permeiam as ruas, individual ou coletivamente, mas pouco se questiona sobre a liberdade que esses corpos possuem – ou qual liberdade lhes é concedida. A experiência corporal na cidade é plenamente atravessada por referenciais sociais – machistas e misóginos, por excelência.
Para Silvana Rubino, a divisão sexual do mundo é também uma divisão dos espaços. Como consequência, uma relação conflituosa se instaura como mecanismo de poder, ditando qual corpo pode ocupar/fazer uso de cada espaço: o masculino, o público e a rua; o feminino, o privado e a casa. Entretanto as mulheres nunca estão invisíveis na cidade. Muitas vezes, os olhares, as provocações e as agressões pautam seus deslocamentos urbanos. Nesse sentido, Antonio Risério (2015, p. 22) pontua que “elas podiam detestar ou amar determinado local da cidade não por motivos estéticos, por exemplo – mas por recordações existenciais”. O resultado disso é o que todas as mulheres já sentiram, em determinado momento, ao perambular pela cidade: medo.
Por isso, nós mulheres devemos estar em um tipo de estado subjetivo e permanente de guerra. O que significa: “[…] assumir que somos atacadas e que tomamos a decisão – que é força comum – de que já não ficaremos mais pacificadas diante das violências cotidianas” (GAGO, 2020, p. 100) e “[…] um modo de atravessar o medo, e não simplesmente de pensar que ele deixa de existir” (GAGO, 2020, p. 100).
Assim, essa lógica binária é subvertida por mulheres artistas que levam suas pautas e demandas às ruas. Elas, que saem dos limites de socialização em que seus corpos foram tutelados. Contudo, o desafio não está somente por serem mulheres, mas também por levantarem temas que são naturalizados ou negligenciados pela sociedade. Aqui, o “desejo de rua” se expressa e se afirma (RAGO, 2015), em busca de criar esse outro espaço e esse outro tempo, encontrando outros modos de viver.
bell hooks (2010) aponta a importância de as mulheres se organizarem para construir um movimento de massa, descentralizar as discussões de um determinado contexto restrito – e, por vezes, privilegiado – e levar às ruas pensamentos e práticas feministas, sendo no encontro em coletivo dessas ações o momento em que poderiam se sentir seguras para ultrapassar o condicionamento pelo medo.
Em contraposição ao medo e à sensação de vulnerabilidade que atravessam as mulheres em suas vivências no espaço urbano, grupos e coletivos podem instaurar processos de colaboração que pressupõem a amizade, certa dose de solidariedade e empatia na cidade. Sem obliterar a condição política dessas coletividades, entendemos que há simultaneamente conflitos e desentendimentos que permeiam as relações intersubjetivas. A experiência de coletivos de mulheres no espaço urbano (numa perspectiva das Artes Visuais) pode catalisar experiências de tensões, confrontos e questionamentos necessários frente ao status quo. Qual seria, portanto, a potência desses corpos juntos e em consonância?
Alguns coletivos brasileiros vêm atuando em diferentes espaços, promovendo reflexões que atravessam feminismo e seus possíveis desdobramentos. Grupos como Freedas Crew (Belém – PA), Deixa Ela Em Paz (Recife – PE), Velcro Choque (Brasília – DF), Rede Nami (Rio de Janeiro – RJ) e Muchas Minas (Curitiba – PR)1 vêm propondo em diferentes cidades ações artísticas que perpassam pautas feministas.
Em 2018, o grupo Deixa Ela Em Paz espalhou pela cidade de João Pessoa (PB) cartazes lambe-lambes com os dizeres: “Este lugar não é esquisito. Esquisito é andar amedrontada” (Figura 1). Assim, o coletivo leva às ruas proposições que estimulam a refletir e questionar o machismo institucionalizado no cotidiano – nesse caso, em especial, o medo que afronta e limita as mulheres a andarem livremente pelas cidades. Ainda, esse trabalho faz parte do Circuito de Enfrentamento Urbano – CEU para Mulheres, um laboratório de intervenções urbanas feminista dedicado à relação das mulheres com o espaço público.
No Carnaval de 2018, o coletivo distribuiu adesivos com os dizeres: “Quando uma mulher cuida da outra, nenhuma está sozinha” (Figura 2). Dado o contexto de ser uma festa em que muitas mulheres são alvo de assédio ou violência, o grupo reforçou uma ideia simples, mas necessária: o apoio de uma mulher a outra, especialmente em situações de vulnerabilidade.
É necessário criar formas cooperativas de existência, com o intuito de discutir o que precisa ser feito e quais estratégias adotar para criar um outro mundo possível. Nesse processo, os coletivos contemporâneos formados por mulheres promovem ações urbanas que “[…] expandem a noção de público e de cidadania e desafiam a lógica binária patriarcal, investindo conta a cidade fálica […]” (RAGO, 2015, p. 55). Assim, a partir do momento que as mulheres se organizam e levam discussões que subvertem os mecanismos de poder que fortalecem o medo, o desvio e a disrupção da norma acontecem.
Notas de Rodapé
1 No contexto latino-americano, poderíamos citar, ainda, LASTESIS (Chile), La Lengua en la Calle (Argentina), La Redada (Colômbia), Prras! (Mexico), entre outros agrupamentos que atuam nas fronteiras da arte, feminismo e ativismo.
Referências Bibliográficas
GAGO, Verônica. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Editora Elefante, 2020.
HOOKS, B. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2018.
RAGO, M. Inventar outros espaços, criar subjetividades libertárias. São Paulo: Editora Escola da Cidade, 2015.
RISÉRIO, A. Mulher, casa e cidade. São Paulo: Editora 34, 2015, p. 22.
Lista de Imagens
1 Cartaz lambe-lambe pelas ruas de João Pessoa (PB). Fonte: Instagram @deixaelaempaz (fevereiro de 2018).
2 Adesivo pelas ruas de Olinda, Recife, e Rio de Janeiro. Fonte: Instagram @deixaelaempaz (fevereiro de 2018).
Notas de Rodapé
1 No contexto latino-americano, poderíamos citar, ainda, LASTESIS (Chile), La Lengua en la Calle (Argentina), La Redada (Colômbia), Prras! (Mexico), entre outros agrupamentos que atuam nas fronteiras da arte, feminismo e ativismo.
Referências Bibliográficas
GAGO, Verônica. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Editora Elefante, 2020.
HOOKS, B. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2018.
RAGO, M. Inventar outros espaços, criar subjetividades libertárias. São Paulo: Editora Escola da Cidade, 2015.
RISÉRIO, A. Mulher, casa e cidade. São Paulo: Editora 34, 2015, p. 22.
Lista de Imagens
1 Cartaz lambe-lambe pelas ruas de João Pessoa (PB). Fonte: Instagram @deixaelaempaz (fevereiro de 2018).
2 Adesivo pelas ruas de Olinda, Recife, e Rio de Janeiro. Fonte: Instagram @deixaelaempaz (fevereiro de 2018).