A DIREÇÃO COMO ESTAR CAMINHANDO EM CÍRCULO, RESULTADO COMO INÍCIO – CONSTANTE
ARTIGO DE ELIAS DE ANDRADE
Elias de Andrade, Londrina/PR, atualmente mora em Porto Alegre/RS. Artista, professor e marceneiro. Integrante do coletivo cãosemplumas. Mestrando em poéticas visuais/UFRGS. Pesquisa sobre desenho, seus desdobramentos e tensões com a linguagem bidimensional, tais como: escrita, pintura, gravura e vídeos.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.5, Nº14, JUL., ANO 2018
PENSAMENTO E AÇÃO DE SUBSISTÊNCIA
RESUMO
O presente ensaio discorre sobre o processo de criação que resulta na imagem pelo desenho e no seu desdobramento em sequências de imagens que se enlaçam no time-lapse (técnica de juntar imagens para se criar animação, movimento). A relação de desdobramento, tanto do desenho em vídeo quanto da ação de movimentar-se para desenhar, são atos instauradores para entender o processo de criação como movimento constante de se atrelar ao que se pretende fazer, aceitando os imprevistos como meio de trocas. Nesse intervalo de surgimentos e origens, ou início a partir do fim, a concentração na ação é um estado presente do corpo no seu meio, com o tempo que incide sobre as coisas de modo silencioso e preciso. A discussão envereda por caminhos acerca do sujeito sobre o meio em que se encontra.
PALAVRAS-CHAVE
Desenho, Ação, Time-lapse, Abordagem de imagem
ABSTRACT
The present essay discusses the process of creation, which results in the image by the drawing and its unfolding in sequences of images that are linked in time-lapse (technique of joining images to create animation, movement). The unfolding relation, both the drawing on video and the action of movement in drawing, are acts that establish the process of creation as a constant movement to stick to what is intended to do, accepting the unforeseen as a means of exchanges. In this interval of emergencies and origins, or beginning from the end, concentration in action is a present state of the body in its midst, with time passing over things in a silent and precise way. The discussion walks along paths about the subject of the environment in which he is.
KEYWORDS
Drawing. Action. Time-lapse. Image approach.
Tentarei abordar a obra de arte/imagem em relação ao meu processo de criação, pautado pela experiência como meio de aproximação com as coisas. Ao olhar para uma imagem, olho para o que dessa imagem? Talvez haja o intuito de tentar observar primeiro o que há em mim dessa imagem, talvez uma mera vontade difícil de colocar em prática. O resultado como início. Ao deslocar o fim para o começo, entendemos que há um movimento contínuo que não cessa em resultados estagnados, mas em uma correnteza de fluidos. Como parte da disciplina, não posso deixar de dizer que o direcionamento de minha produção poética incorpora influências das inquietações que a experiência do pensamento provoca. O processo de criação é constante.
Nomeio aqui alguns autores, que me ajudaram no encadeamento dos pensamentos e do fazer. Michel Foucault (1981), ao analisar a pintura Las Meninas, de Velázquez, trouxe-me questionamentos acerca do olhar, sobre quem são aqueles que estão por perto no momento de criação, sobre o espectador e sobre olhar para uma imagem em tempos diferentes. Outros autores que recorreram ao mesmo quadro, tais como Ferreira Gullar (2003), Daniel Arasse (2014) e Giulio Carlo Argan (2004), mostraram-me o quanto é possível olhar o mesmo trabalho por abordagens e leituras diferentes. Indago também a imagem e sua potência de instaurar-se a partir do diálogo com seu espectador – baseio-me no texto “O que as imagens realmente querem?”, de W.J.T. Mitchell. Nesse entremeio do processo de criação, tento entender o local do autor como tendência à ausência a partir do texto “O que é um Autor?”, de Foucault. O fazer como movimento de espera me traz alicerces para o trabalho contínuo. Paul Valéry (1999) inquieta-me em seu texto sobre poética. Alguns dos temas mencionados acima talvez pareçam um pouco desfocados, porém acredito estarem presentes na produção poética. Trago esses questionamentos para meus trabalhos.
Usarei meus últimos trabalhos, entendendo o processo como trabalho e deslocando o entendimento de resultado para além de um final conclusivo. Com isso entendo a obra de arte como resultado de possibilidades semelhante a uma espiral em direção ao infinito.
Ao falar de desenho, entendo que o processo de criação acontece a todo momento e não somente quando estamos com um pedaço de papel e lápis em mãos. Ao estar em determinado local, já estamos propícios ao que esse local tem de determinações para as possibilidades de escolhas a que estamos sujeitos. Há escolhas para somente criar pelo meio de pensar e repensar o que nos chega como estímulos sensoriais, tanto quanto rabiscar um papel ou intermediar ideias e pensamentos por meio da fala. Mesmo quando não tomamos consciência desses afazeres, o que é talvez mais comum, o local onde estamos e todas suas particularidades são depositadas em alguma forma de memória, seja pela presença, seja pela ausência.
Diante de uma imagem, já a teríamos formada em nossos olhos? Talvez como um espelho que está à frente, ela reflete o que já queremos ou pensamos que sabemos/queremos? Com as experiências adquirimos um repertório de imagens; deduziríamos o que iremos enxergar em uma imagem quando tomamos consciência dela? Entendo que esse processo, muitas vezes, acontece de modo inconsciente. Nisso penso o quanto de escolhas temos frente a uma imagem, pois ao olharmos para ela olhamos simultaneamente o que há dela ou possibilidades dela em nós mesmos. As escolhas que temos partem da proposta de quem a criou ou as possibilidades se instauram a partir de uma relação estabelecida no instante do contato visual? Acredito que seja dessa última relação: o que está à frente se entrecruza com o que carregamos da nossa trajetória como sujeito e suas experiências, que são guardadas na memória, no corpo e no espírito. São três agentes que, conjuntamente, ora sim ora não, estimulam entre si modos de olhar e de estar no mundo. A memória como algo guardado e construído, o corpo como marca do tempo e o espírito como algo intuitivo e instintivo, talvez também como algum direcionamento inconsciente.
Ao escolher determinadas coisas para desenhar, já há olhares de direcionamentos, porém escolher os objetos não é o mesmo que olhar para um/o trabalho de arte exposto, pois este é o resultado. Não desconsiderando seu caráter progressivo de continuação, pois não é um resultado final, mas uma continuação a partir do suposto fim. Escolho objetos que estão por perto. Uso o desenho de observação para estabelecer alguma comunicação pela incisão do traço sobre o papel. Para que esse traço venha a ser, necessita-se de uma ação que o leve a tal ponto. Então o ato de desenhar é uma ação no presente, um meio de se colocar como autor pela criação, pela incisão no tempo. Abrem-se brechas no invisível do tempo que se marca com ações do homem. O ato criativo instaura momentos de suspensão do tempo e demarcação do espaço.
Giorgio Agamben (2007), em “O autor como gesto”, reflete a partir do texto de Foucault (2001) “O que é um Autor?”, discorrendo sobre uma abertura no espaço como a marca do sujeito em sua ausência. Ao escolher e desenhar estamos criando fissuras em que o sujeito criador se esconde, e o que se torna material é aquilo que ele faz, não é parte presente dele. Sendo assim, o que o caracteriza como autor é sua ausência. Segundo Foucault, “na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer” (2001, p. 268).
A relação com o processo de criação, acredito acontecer a partir da ação, a qual se dá de modo quase a se tornar corporal com o objeto de estudo. “A história dos homens talvez não seja nada mais que um incessante corpo a corpo com os dispositivos que eles mesmos produziram – antes de qualquer outro, a linguagem” (AGAMBEN, 2007, p. 46). Se a relação com o objeto de estudo é quase corporal e dada pela presença, entendemos que está mais para o processo e ação do que para o resultado final. Todavia, esse pode ser um objetivo, mas não um fim, pois a presença continua agindo. Sendo assim, é um contínuo fazer. Uma frase que resgato de Beckett é “o único caminho de volta era adiante e adiante era sempre de volta” (2012, p. 97). Penso que essa afirmação leve o trabalho em criação para um passo após o outro, como caminhar até um local, parar e começar a caminhar novamente. O tempo, a energia e a ocupação de tal espaço, no entanto, têm limite durável, mesmo que aconteçam todos os dias ou de modo intermitente. Nesse ciclo, entendendo que ele não se fecha, talvez fosse melhor pensar em uma espiral de retornos, voltas e retornos para que o seguir seja adiante.
Outro ponto que vejo nessa frase é que o caminho de volta não é o mesmo. O caminho é sempre diferente, não importa se o traçamos indo e voltando, o que nos acontece como experiência é absorvido de modo diferente, o espaço mudou, o tempo já é outro; tanto passado, presente e futuro dissolvem-se nesse “de volta é sempre adiante”. Entendo esses dois pontos de vista como pressupostos para o desenho, dessa maneira para o processo de criação. É difícil definir o ponto de partida que inaugura o começo do desenho, pois o entendo como constante processo de criação, desde caminhar até preencher o papel. Se o começo da criação se dá no risco do papel, em uma incisão sobre um determinado material, estou excluindo todo o emaranhado de enunciados que se formam nos devaneios rotineiros e fora de hora, fora do momento em que disponho de ferramentas e materiais para que o desenho aconteça no suporte. Assim o processo do desenho é de olhar e de movimento sobre o meio que caminhamos.
Ao abordar a escrita contemporânea, Foucault afirma: “[…] um princípio que não marca a escrita como resultado, mas a domina como prática” (2001, p. 268). Arrasto essa afirmação para o processo de desenhar e como ação do corpo sobre o espaço e, consequentemente, algum modo de registrar tal ação. O registro como ausência, como a falta da presença de quem olha, porém como possibilidade do trabalho viajar no tempo para outros olhares. Todavia, nunca será o mesmo.
O presente, o passado e o futuro encontram-se nesses devaneios. A memória como auxiliadora do que se pode obter como resultado concreto, baseado em experiências particulares: a memória como impulso para o futuro. Desta maneira o presente é um cruzamento entre passado e futuro.
Há o desaparecimento do autor que inicia brechas para que sua produção possa surgir, porém o autor é o criador, é parte da origem da obra. O desaparecimento não é por completo, talvez seja como colocar autor e obra num jogo de infinitas possibilidades de aparecer/desaparecer. Foucault, discorre sobre a escrita da seguinte forma:
Pode se dizer, inicialmente, que a escrita de hoje se libertou do tema da expressão: nela se basta a si mesma, e, por consequência, não está obrigada à forma da interioridade: ela se identifica com sua própria exterioridade desdobrada. O que quer dizer que ela é um jogo de signos comandado menos por seu conteúdo significado do que pela própria natureza do significante: e também que essa regularidade da escrita é sempre experimentada no sentido de seus limites; ela está sempre em via de transgredir e de inverter a regularidade que ela aceita e com a qual se movimenta; a escrita se desenrola como um jogo que vai infalivelmente além de sua regras, e passa assim para fora. Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer. (FOUCAULT, 2001, p. 268).
Nessa aproximação entre a escrita e o processo de criação em desenho, entendo, como desenhador e a partir dos meus estudos, que o desenho carrega o gesto como motor de impulso, porém o incentivo ou ideia para o trabalho desvincula o gesto como única ação do desenho. A ação de começar um desenho é para além dos limites do gesto de desenhar, ela encadeia sua origem no próprio decorrer dos dias, nas experiências de acumular pequenos fragmentos temporais e espaciais.
Mais algumas inquietações sobre a questão do autor fizeram-me repensar trabalhos recentes, que se iniciam junto à experiência do pensamento e do sensível proposto pelos textos dos autores supracitados. Os trabalhos são Palete (2017) e Janeiro, Londrina (2018) e Cadeiras e caixas (2018); em que uso o time-lapse como registro-trabalho e desdobramento do desenho. Uso desse meio – time-lapse – como possibilidades de um outro olhar.
Ao usar o time-lapse como registro-trabalho, tento direcionar o olhar para o trabalho de outro modo, aproximando um olhar de outro sujeito que atravessa o ambiente em direção ao trabalho. É uma tentativa de ausência? Esse olhar diagonal que atravessa e pega um pouco de cada canto, direito e esquerdo, norte e sul, é um movimento de influência sobre quem está desenhando, talvez muito pouco de modo instantâneo, mas de um processo demorado e repetitivo. Segundo Foucault, o autor está localizado “[…] na ruptura que instaura um certo grupo de discursos e seu modo singular de ser… A função autor é, portanto, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade” (2001, p. 274).
Ao desenhar tento aproximar relações do que está por perto, de colocar sobre o mundo algo que ultrapassa o sujeito criador, pois o que é criado é fruto de vivências individuais em meio ao coletivo. Sendo assim, somos interações em uma sociedade. O que Foucault propõe é indagar sobre a função autor, apontando que este tende a desaparecer no momento em que cria, para que sua obra seja obra de si, pois tomará interpretações diferentes em lugares variados. Ao indagar sobre a função autor, estou perguntando como olho para essa imagem que ele produziu? Estou questionando também se o que ele produziu está livre de associação com o autor?
O desenho depois de concluído, entendendo concluído não como resultado final, mas como um momento de parar, em que o trabalho pode continuar com suas inquietações e outras novas possibilidades. Didi-Huberman discorre, no último capítulo de Diante do tempo, sobre a aura em Benjamin, sobre a imagem dialética ser ambígua e crítica, de modo a possibilitar interpretações.
A primeira consequência é valorizar um parâmetro de ambiguidade essencial na estrutura de toda imagem dialética: “A ambiguidade”, escreve Benjamin, “é a imagem visível da dialética” – um modo de reivindicar certas escolhas estéticas (só existe imagem autêntica se for ambígua) e, ao mesmo tempo, dissociar a operação dialética de toda síntese clara e distinta, de toda teleologia reconciliadora.
A segunda consequência é valorizar um parâmetro crítico, que revela na imagem dialética uma capacidade aguda de intervenção teórica; em que a arte, segundo Benjamin, conduz seus efeitos até o cerne dos problemas do conhecimento. Produzir uma imagem dialética é apelar ao Outrora, é aceitar o choque de uma memória recusando-se a se submeter ou “retornar” ao passado: é, por exemplo, acolher os significantes da teosofia, da cabala ou da teologia negativa, acordando essas referências de seu sono dogmático, um modo de desconstruí-las, criticá-las (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 275).
Entendo que a imagem dialética se assemelha ao trabalho que se desenrola de modo intermitente entre concluído e novo início.
Ao perguntar como abordo uma imagem, questiono o que ela carrega como autora? Se a imagem é livre, por uma parte ou momento, de sua associação com a autoria, ela responde por si só o que lhe é indagado no instante de troca entre observador e imagem?
A reflexão acima leva-me a compreender e pensar a imagem como autora, como instauradora de possibilidades no envolvimento dos que estão próximos – o contexto. Mitchell (2015) indaga “o que as imagens realmente querem?”. Ao fazer essa pergunta ele posiciona a imagem como protagonista e sujeito de si que deseja algo. Inverte a relação de poder que ela exerce, não perguntando o que ela pode, mas querendo adentrar o que ela quer, qual a sua vontade. Mesmo falando no plural para abranger todas as imagens dotadas de significados e de vontades, o autor enquadra a imagem como sujeito com suas vontades de querer alguma coisa. O diálogo é um meio, como uma possível ponte, entre a imagem e quem a observa.
Essa pergunta pode continuar a ser feita sempre que nos deparamos com uma imagem: o que a imagem realmente quer? Ao relacionar a função do autor com o que as imagens querem, esboço um pensamento de junção a partir do artista que usa do desenho como base para seus trabalhos. A abordagem do desenho como ferramenta para o uso de determinada função. Talvez eu esteja enganado sobre isso, pois começo a pensar o desenho como forma de criação que se lança no espaço para além do bidimensional. Uso os desenhos de marcenaria de meu pai, os quais vejo como potência para perguntarem o que as imagens querem e como uma das primeiras referências como desenho e como ação de desenhar, pois o via desenhando rapidamente ao demonstrar um móvel. O desenho como ferramenta é um desenho que sairá do papel para tornar-se um objeto. Mesmo antes de ser objeto, a imagem já acumula potências para se lançar ao observador, pois o outro que olha, seja quem desenhou, mas mais o olhar do outro, é de questionamento e imaginação do que aquela imagem poderá se tornar. Nesse caso, entendo a imagem como sujeito de possibilidades, tanto como imagem para outras imagens quanto como para se materializar em tridimensional.
A função autor, nesse caso, o marceneiro desenhador, é de intermediar a vontade do sujeito que deseja um móvel com as especificidades possíveis de construção de tal móvel. Meus últimos desenhos, acredito serem permeados por essas discussões e referências sobre o que estou fazendo nesse tempo e espaço, sobre para quem argumento e quais companhias há em uma cidade estrangeira. Ao estar em um local novo, olha-se para trás.
Outro olhar como sujeito observador
A pintura Las meninas (1656), de Velázquez, é atravessada por um olhar que leva até o fundo da tela sem deixar de percorrer o que está ao lado, fazendo ziguezagues de idas e voltas dentro do espaço da tela. Todavia, saber quem olha é um mistério, seja o espectador dentro da tela, seja o pintor como reflexo, seja os reis como financiadores da pintura. Essa obra, junto com alguns textos sobre tal quadro, fizeram-me pensar em quem está olhando para os meus desenhos.
Influenciado pelas leituras da pintura Las meninas e por inquietações de pensar o desenho em seus desdobramentos, começo a registrar o processo de desenhar, de forma sequencial, com o uso de uma câmera fotográfica. Desse modo, surgem alguns questionamentos acerca de outros olhares sobre o andamento do trabalho, sobre quem desenha, sobre o tempo e sobre os movimentos. Fotografo de tempo em tempo o processo, coloco a câmera de modo oblíquo em direção ao desenho que está em processo de construção. Ao querer usar uma determinada lente para a câmera, optei por deixá-la em diagonal, registrando o trabalho e o que mais fosse possível de incluir em seu campo de registro. A palavra oblíquo é cara para mim, ela tem sua origem em “cerimônia oblíqua”, que foram aulas de desenho em que o professor-propositor Claudio Luiz Garcia1 dispunha uma sala com objetos, projeções, aromas, luz, sombras, tecidos translúcidos, e os estudantes e praticantes de desenho necessitavam transitar pela sala de modo a também serem atravessados. Mais que um corte vertical ou horizontal, era um corte diagonal, tanto na sala quanto na proposta de ser, na pessoa. O corte diagonal abrange tanto norte e sul quanto leste e oeste. Ele consegue expandir-se pelo quase todo de um local, pois a linha diagonal tange o vertical e o horizontal. Essas experiências que trago como origens são entrelaçadas no presente. São olhares de um estrangeiro sobre o passado que não para de incidir no presente, talvez semelhante à luz que o time-lapse registra como forma do tempo sobre os dias, porque ontem houve essa trajetória da luz, hoje também e amanhã provavelmente haverá. O que vem de antes continua seu curso ou uma quase repetição. O adiante é a partir dos passos já trilhados e também é como ultrapassar fronteiras.
A câmera nessa posição de atravessar o ambiente não é somente um registro, mas é um olhar de companhia sobre o processo. Ela convida o espectador a entrar na cena para além do desenho sobre papel, pois incorpora elementos do próprio espaço em que o artista está inserido. O registro como uma presença. Segundo Foucault, “[…] o olhar do pintor, dirigido para fora do quadro, ao vazio que lhe faz face, aceita tantos modelos quantos espectadores lhe apareçam; nesse lugar preciso, mas indiferente, o que olha e o que é olhado permutam-se incessantemente” (1981, p. 21). O que a câmera como presença proporciona é a troca de pequenas suspensões no tempo, na relação entre passado, presente e futuro.
A imagem criada no papel relaciona-se com o contexto de aproximação que é estabelecido entre sujeito que desenha e objetos próximos para a observação, o contexto em que se aproximam, sujeito, coisas e imagem. São estabelecidos, no decorrer dos dias, diálogos que se fazem pela ação de estar presente, como uma leitura do que a imagem quer dizer e do que o autor cria como ausência, como marca dissociada de seu criador em retornar ao passado, mas entender a memória como existente. Pois assim, o trabalho pergunta por si só o que pretende, como possível imagem dialética. O processo de desenhar e de registar dá-se pela ação diária de trocas entre imagem e o sujeito que desenha.
A ação de apagamento/encobrimento pelo preenchimento é usada como desenho para ocupar o espaço do papel e aceitar os imprevistos de modo a não esquecer o que foi feito, mas de contornar o que não se quer. Isso existe submerso. Busca-se, nesse registro, a relação do sujeito de incidir sobre as coisas pelo movimento de seguir adiante, que implica também a relação das coisas sobre o sujeito. O registro com o time-lapse torna-se independente como um trabalho, como sequência de imagens de um processo que se finaliza, sendo assim são dois trabalhos, o desenho no papel e o desenho time-lapse.
Os trabalhos apresentados por meio do desenho e do time-lapse são Palete (2017), Janeiro, Londrina (2018) e Cadeiras e caixas (2018).
A continuação da ação – fazer
Paul Valéry (1999) define poética como o próprio fazer. O fazer é o princípio que me leva adiante, como uma ação diária, assim como regar a planta todo dia, como movimento de alimentação e crença. Acredito na existência de transformação invisível que opera sobre as coisas de modo encadeado com a ação em tempos distintos. Sendo assim, o movimento é a ação de rolar adiante, de dar um passo à frente, seja para trás, ou para os lados, mas seguir adiante, como pisar e repisar o mesmo solo. Uma imagem que me vem é o atalho como caminho, aquele que corta em diagonal um terreno baldio: quando muito utilizado pelo caminhar desgasta-se em uma linha de terra em meio ao verde do terreno. Eis o traço vermelho, de terra vermelha que muito suja os pés, sobre a cidade que aceita as artimanhas de seus transeuntes. Deslocar o desenho para fora do papel é uma vontade que começa no ato de observar o que se tem por perto, quais possibilidades meus olhos conseguem enxergar e alcançar a partir das experiências que me são proporcionadas e buscadas por esse movimento de fazer. O que utilizo como registro – o time-lapse – é uma tentativa de deslocamento do desenho e dos olhares; é também algum tipo de aproximação, assim como buscar objetos e trazer para perto. A observação é para além do olhar, é também a partir do corpo.
O desenho em maior escala exigiu do corpo a ação desse corpo inteiro, para além do punho e do braço; proporcionou-me também perceber o tempo em sua possível dilatação, em determinada necessidade de olhar para o trabalho depois de um certo afastamento. Desse modo, olhar para o desenho após alguns respiros. Nessa ação de trocas intervaladas, parece haver alguma ligação, concentração junto ao que nos propomos a fazer, que nos desliga de certos julgamentos. Cria-se assim uma visão esfumaçada dos acontecimentos, cruzando o que fazemos com possibilidades do ainda a fazer. É necessário o afastamento para que haja entendimento da realidade construída na existência. Segundo Valéry, “sabe-se que frequentemente acontece de a solução desejada chegar após um tempo de desinteresse no problema, como a recompensa da liberdade dada a nosso espírito” (1999, p. 188). Olhar o trabalho noutro dia, mesmo que de forma rápida. Observar rapidamente é estabelecer conexões de rotina, de regar a planta todo dia. Assim como no filme O sacrifício (1986), de Tarkovski, em que um senhor acredita que, após regar uma árvore seca durante um período, ela vá florescer. Associo essa ação com o ensinamento de minha avó de regar as plantas todos os dias, no começo e no fim da tarde. Há certos conhecimentos pelo fazer que incorporo ao desenho como ato de origens guardadas na memória. Entendo a memória como parte do corpo, como ensinamentos manuais e práticos. Dessa maneira, como possibilidade de ação.
A ação gera movimento, mas também existem esperas que não deixam de ser ações. Valéry finaliza seu texto afirmando que o inesperado é algo que transforma, que gera frutos, que o que acontece acerca de algo é fruto desse algo: “[…] tudo é desordem e qualquer reação contra a desordem é da mesma espécie que ela” (1999, p. 192). Ser da mesma espécie não é ser igual, há diferenças nas possibilidades de escolhas. Acredito que esperar de modo ativo, quero dizer em movimento, parece contraditório: espera e movimento, mas a espera é uma coisa como o balançar das folhas de uma árvore ou mesmo suas variações durante o ciclo de um ano. Ela está no mesmo lugar, mas transformações estão sendo operadas, momentâneas como o balanço das folhas e a longo prazo nos períodos sazonais. Todavia, é necessária a ação do sujeito para observá-las.
A dimensão das coisas que temos é a partir de nós mesmos; segundo Valéry, “esforço-me para nunca esquecer que cada um é a medida das coisas” (1999, p. 192). As experiências são intrínsecas ao indivíduo, porém ele não está sozinho, há todo um meio e contexto para que sejam construídas nossas percepções e direções. O artista não está sozinho, seja pelo passado e o futuro que lhe atravessam, seja pelas matérias e coisas que estão próximas e são carregadas de energias potenciais. “Existe não sei que pressentimento das reações externas que serão provocadas pela obra em formação: o homem dificilmente está sozinho” (VALÉRY, 1999, p. 182-183).
A ação é um meio que leva ao cansaço e este possibilita-me um determinado estado corporal e psíquico que acredito instigar variantes no processo de criação. O espírito é o fazer, “[…] a obra do espírito só existe como ato” (VALÉRY, 1999, p. 185). Milton Hatoum, no romance Dois irmãos, narra as vontades como possíveis em atos:
‘Louca para ser livre.’ Palavras mortas. Ninguém se liberta só com palavras. Ela ficou aqui na casa, sonhando com uma liberdade sempre adiada. Um dia, eu lhe disse: Ao diabo com os sonhos: ou a gente age, ou a morte de repente nos cutuca, e não há sonho na morte. Todos os sonhos estão aqui, eu dizia, e ela me olhava, cheia de palavras guardadas, ansiosa por falar (HATOUM, 2006, p. 50).
Entendo que o deslocamento do artista está relacionado ao seu processo de criação, em relação ao seu objeto de estudo. A “negociação” em lançar-se ao desconhecido para, a partir disso, criar relações de encontros. Esperar o inesperado como lançar-se em movimento, como estar no processo de caminhar adiante. Talvez o desenho e seus desdobramentos sejam como ação de deslocar-se no espaço e como suspensão do tempo. A ação se dá pelo movimento do artista de dispor os objetos e materiais no espaço e também de deslocar-se ao buscar relações com objetos que antes foram desenhados. Transitar por passos sobre o chão e também por meio do pensamento. O tempo abarca a ação de modo a transformá-la; entendo a suspensão do tempo como encadear algum determinado momento a partir do olhar do artista, e do registro da câmera como um outro olhar que abrange de modo diferente do olhar do artista.
Tanto o sujeito artista quanto a coisa observada estão se deslocando. Dessa maneira, tanto sujeito quanto coisa desenhada resistem e ultrapassam a ação de um tempo que mais molda do que possibilita brechas.
O registro da passagem do tempo tenta estabelecer a conexão diagonal/oblíqua de um olhar que se movimenta tanto pelo transitar da câmera e do artista quanto pela passagem do tempo. Transitar pela diagonal já é um meio caminho para se chegar ao círculo ou a uma espiral adiante.
Notas de Rodapé
1 Professor Dr. Claudio Luiz Garcia da Universidade Estadual de Londrina.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, p.41-46.
ARASSE, Daniel. Não se vê nada. Lisboa: Gráfica Maiadouro, 2014, p. 89-108.
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 491- 494.
BECKETT, Samuel. Companhia e outros textos. São Paulo: Globo, 2012.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
GARCIA, Claudio Luiz. Cerimônias Oblíquas. In: ANPAP, 22, 2013, Belém, p. 2367-2378. Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&source=web&rct=j&url=http://www.anpap.org.br/anais/2013/ANAIS/simposios/03/Claudio%2520Luiz%2520Garcia.pdf&ved=2ahUKEwjTzYK526bcAhUOvVkKHeIqBg0QFjADegQIBBAB&usg=AOvVaw0ZqDOz7_NmSQZuL_abdzmp
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1981, p.19-31.
FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. São Paulo: Forense Universitária, 2001, p. 264-293.
GULLAR, Ferreira. Relâmpagos. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 30-31.
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MITCHELL, Willian John Thomas. O que as imagens realmente querem?. In: ALLOA, Emmanuel. Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, p. 165-189.
VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Editora Iluminuras LTDA, 1999, p. 161-168; p. 179-192.
Filme
TARKÓVSKI, Andrei. Offret (O sacrifício). 148min. Suécia/França/Inglaterra, 1986.
Lista de Imagens e Vídeos
Imagens
1 Elias de Andrade, Cadeiras e caixas, 2018, grafite sobre papel, 98 x 132 cm.
2 Elias de Andrade, Janeiro, Londrina, 2018, grafite e nanquim sobre papel, 128 x 200cm.
3 Elias de Andrade, Palete, grafite, óleo em bastão e nanquim sobre papel, 2017, 166 x 118 cm.
Videos
1 Elias de Andrade, Cadeiras e caixas, 2018, 1m19seg, 2018.
2 Elias de Andrade, Janeiro, Londrina, 2018, 2m15seg.
3 Elias de Andrade, Palete, 2017, 35seg.