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RESENHA DE DANILO MOREIRA XAVIER

Danilo Moreira Xavier é mestrando em Estudos Culturais na Universidade de São Paulo e bacharel em Artes Visuais com habilitação em história e teoria da arte na Federal do Rio Grande. É pesquisador e historiador da arte, com trabalho sobre formação de artistas em ambientes institucionais. É bolsista CAPES e no Programa de Aperfeiçoamento do Ensino na USP.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.5, Nº14, JUL., ANO 2018
PENSAMENTO E AÇÃO DE SUBSISTÊNCIA

RESUMO

O texto apresenta a mostra “Iminência de Tragédia” realizada na galeria Mario Schenberg, no Espaço Funarte/SP, entre 11 de agosto e 24 de setembro de 2018. Destacamos o diálogo formado entre a curadoria e as seis artistas presentes na exposição, desdobrando suas apostas sobre o cenário artístico atual no Brasil.

“Iminência de Tragédia”, com curadoria de Fabricia Jordão e Talita Trizoli, exposta na galeria Ma rio Schenberg, na Funarte em São Paulo, desde 11 de agosto, é um projeto contemplado pelo Prêmio Funarte Conexão Circulação Artes Visuais. A mostra traz trabalhos das artistas Denise Alves-Rodrigues, Fabiana Faleiros, Marta Penner, Marina Zilbersztejn, Noara Quintana e Potira Maia. A exposição destaca a circulação da produção contemporânea com o diálogo entre olhares distintos sobre a situação atual do país, de modo que as obras oferecem desdobramentos para se pensar nos temas emergentes do contemporâneo. Tais obras partem de várias conjunturas, de artistas de diferentes localidades (sudeste e nordeste), estabelecendo uma arena de trocas e diálogos entre as distintas localizações do país. Dessa maneira, entendemos também que as propostas artísticas apresentadas na mostra sugerem indícios iminentes do cenário artístico atual. Segundo as curadoras, as obras “evidenciam os enfrentamentos por meio de elaboração poética das urgências de seu tempo, permitindo assim verificar que, nas artes visuais, as estruturas representativas e reguladoras são os primeiros locais de demanda de transformação”1.

Os trabalhos apresentam cartografias construídas culturalmente, repensam as relações que estabelecemos com nosso território, investigam arquiteturas imaginárias e científicas, questionam nossas elaborações afetivas que se conformam a partir das naturalizações impostas pelos poderes dominadores e, ainda, repensam as vivências dos sujeitos marginalizados em espaços de sociabilidade, as políticas dos corpos e as políticas sociais. Essas situações estão ligadas por um eixo comum, a partir do interesse artístico que emerge do espaço público e busca acionar a possibilidade de questionarmos discursos normativos, de nos posicionarmos ideologicamente, de avaliarmos nossas políticas sociais e afetivas, de valorizarmos essas demandas públicas, além de revisarmos os instrumentos que manobram o saber, os direitos e a empatia com o povo.

Tal pensamento curatorial é também uma maneira de localizar vozes diferentes, de instaurar novos olhares, atribuindo protagonismos para outras histórias. Além de evidenciar somente a presença feminina, destaca-se, nessa exposição, em primeiro lugar, as proposições das artistas na constituição de suas obras, bem como a ênfase dada às suas falas, trazidas no material de divulgação e no próprio texto curatorial. Elas protagonizam uma voz que emana no espaço público, nas condições do cenário sociopolítico e afetivo e, por consequência, reverbera no meio artístico. As propostas sobre esses campos podem ser observadas no que emerge dessas obras, suas formas e no arranjo do espaço, que demonstram o posicionamento das artistas diante de situações discursivas e normativas da atualidade. Esses discursos muitas vezes são enrijecidos pelas justificativas atribuídas em certezas, corporificando-os. Colocar à prova tais discursos nos permite tentar estabelecer novos paradigmas sobre a forma como aprendemos e compreendemos o mundo, considerando sua diversidade para atribuir novos sentidos às relações que tecemos. Entretanto, por diversas vezes, não questionamos as situações, deixando que passem desapercebidas. Assim, contribuímos ainda mais para suas concretudes no cotidiano.

As obras da artista paulistana Denise Alves-Rodrigues expostas na mostra podem confrontar essas condições, com a apresentação de situações que colocam em xeque a conformação de certezas, dando margem a “teorias duvidosas” e a “ciências impuras” que nos organizam socialmente. A primeira obra, “Vocação para a ruína”, funciona como um mecanismo, no qual Alves-Rodrigues une um detector de mentiras com um eletroscópio para “captar a fala do ar”.  A partir da captação de sons e ruídos extraídos do espaço social, esses “murmulhos da terra e sussurros do ar” sugerem a materialização de passagens “naturais”, oriundas dos horizontes do cotidiano, e adquirem, portanto, um aspecto físico e imagético. Não se trata apenas de um destaque ao minucioso e ao desapercebido, nem mesmo de criar uma imagem macro dos elementos utilizados em seus processos. Embora a invisibilidade ganhe forma na obra da artista, não se trata de um cotejo ao imaginário sobre as transmutações da matéria. Ela assemelha-se mais ao modo como se elabora a conjuntura dos nossos percursos com o mundo e seus elementos, rompendo com a naturalização. Indica, parafraseando Vilém Flusser (2002), que o objeto é aquilo que está entre nós e o espaço, aquilo que nos faz esbarrar contra as coisas, constituindo novas formas de conhecimento. Sua obra poderia apontar àquilo que nos impossibilita notar, devido às diversas camadas que nos cobrem diariamente, incluindo as físicas que [in]significam as asperezas da terra ou o ritmo do ar, tornando-os apenas superfícies similares, sem nenhuma diferença entre suas texturas.

A criatividade e a potência percebida em seu segundo trabalho que compõe a mostra, “Deus salve o materialismo histórico”, merecem destaque já que tornam paralelo dois tempos distintos, bem como as significações atribuídas ao que se enxerga e ao que se sente.  Nessa obra, por meio de “cartas austrais”, apresenta desenhos com eventos celestes que atravessaram os diversos momentos da nossa história. Nessas linhas paralelas e representativas, demonstra-se a necessidade da compreensão sobre o que é distinto, singular em suas órbitas, mas que ocorrem simultaneamente em suas orquestrações, pares e conjunturas comuns.

Se com Alves-Rodrigues podemos edificar dispositivos de identificação para percebermos o que nos atravessa cotidianamente, há ainda que se questionar – em primeiro momento – como interpretar o que nos atravessa, de forma a entender as formatações sociais, mas evitar análises míopes e normativas sobre o mundo e suas matérias. Nossas relações culturais ocidentais são instituídas por mecanismos de condução, direção, demografias ou rotas que regulam nosso espaço. Essas linhas imagéticas ou físicas provocam delimitações sobre o comportamento dos sujeitos, bem como sobre as relações políticas, sociais e econômicas. Esses traçados podem modelar discursos, priorizar sujeitos e estabelecer precarizações, dependendo da direção nas quais se inserem.

São algumas dessas linhas que podemos identificar nas obras da artista paulistana Marina Zilbersztejn. Elas apresentam uma elaboração do mundo físico por meio de mapas ou práticas cartográficas. Essas construções cartográficas nas obras de Zilbersztejn destacam-se pela curadoria como uma “tentativa de reconstituir e disciplinar o mundo físico”. Essas imagens foram produzidas com referências em mapas topográficos, mapas táticos de pilotagem e cartas náuticas. A artista apresenta essas conjunturas a partir de obras criadas com processos de serigrafia, relevo seco e monotipia, reunindo-os e imprimindo-os sobre uma mesma superfície de papel em diversas dimensões, formando um arranjo que se expande em partes de duas paredes na galeria. O conjunto de obras de Marina Zilbersztejn aponta práticas e tecnologias de representação do espaço que, segundo a artista, “foram cruciais na emergência do mundo e do esclarecimento moderno” e que “regulam e propõem uma determinada contenção do espaço existente, dos modos de viver dentro dessas linhas desenhadas”.

Dessa maneira, percebemos como as urgências da nossa contemporaneidade precisam ser mediadas por fraturas nos modelos de ver e perceber, rompendo as instaurações que são enraizadas nos juízos comuns. Desses que passam a mediar a estrutura das coisas, das palavras, dos comportamentos, das representações, assim como das diversas camadas que formam a atmosfera social, política e afetiva.

A instalação “Sobre solo emulado” de Noara Quintana (SC/SP), é composta por duas obras: “# pendentes” e “# assento”. Nela, o cimento é utilizado como matéria investigativa pela artista, questão essa destacada pela curadoria no modo como ele assume um comportamento moldante e moldável, lembrando também que seu descarte nas construções pode acionar novas possibilidades e potências. Para Noara, importa a associação do material à forma, num “comportamento quase antropomórfico”. Isso significa, para a artista, a conjuntura entre material, forma e função pensada por um viés comportamental da própria matéria “cimento” como sujeito na sociedade.

As conjunturas sociais construídas podem nos trazer novos comportamentos diante dos desequilíbrios representativos numa sociedade forjada por estruturas normativas. Novos sentidos para o conhecimento do mundo vão além dessas estruturas. Os processos pedagógicos que regem nossas vivências podem ser compreendidos na maneira como construímos os enquadramentos diários dos objetos, materiais e suportes existentes em nossas crônicas cotidianas. Dessa maneira, podemos interpelar diversos aspectos dos desejos que estipulamos para essas crônicas diárias.

A exposição também põe luz sobre as noções de sociabilidade, sobre as lógicas de pertencimento e sobre as repressões percebidas nessas lógicas preponderantes. Esses aspectos podem ser identificados na instalação “Eu te amo”, da artista gaúcha Fabiana Faleiros. São observados pela artista a “tragédia do amor romântico e suas conexões com relacionamentos abusivos”, demarcados pela cultura do patriarcado. A obra criada para a mostra tomou a forma de uma grande cortina prateada que ocupava a verticalização do espaço da galeria. Ao chão, estendia-se um tapete rosa-choque com diversas almofadas. Essas almofadas traziam frases criadas pela artista que abordavam aquelas tragédias. Costuradas em paetê, essas frases apareciam e desapareciam. Tingidos pela mesma cor e alinhados numa mesma direção, esses paetês escondiam no seu verso as frases propostas por Fabiana. Ao acariciar as almofadas num movimento contrário, como quem descabela cabelos aprumados, desvelam-se sentenças que sugerem essa sutil tensão entre o afeto e o controle. Para Faleiros, “o patriarcado tem se sofisticado cada vez mais para caber em redes feministas e no circuito cultural”. Com a participação do público, os objetos macios, brilhosos e convidativos ao descanso do corpo, ou proximidade a ele, convertem-se em mensagens que nos acionam reflexões sobre rompimentos afetivos mascarados por suas diversas significações morais, patriarcais, religiosas ou mesmo culturais.  A artista inscreve suas frases em “comentários sobre a falência dos afetos nas relações heteronormativas”.

Marta Penner (DF/PB), artista e professora da UFPB, tem duas obras expostas e confronta nelas, mais diretamente, a condição política no país. As fotografias em “Autorretrato com bandeira” apresentam uma ação registrada onde o corpo é embrulhado na bandeira do Brasil, diante de alguns cenários de Brasília. Para Penner, essa “personagem” é uma incorporação do próprio país. O projeto foi realizado durante o governo do presidente Lula, encerrando-se juntamente com seu mandato.

Marta apresenta também uma obra em áudio, intitulada “Instabilidades Tropicais”. O visitante percorre o espaço da mostra enquanto ouve um “mapa astral de Brasília, tendo a Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional como música de fundo”. O resultado do áudio é uma combinação entre uma encomenda de uma leitura astrológica do mapa astral do Brasil e de sons que noticiam leituras meteorológicas. Para Marta, a obra apresenta “as instabilidades que nos levam de uma governança a outra”.

A exposição também conta com a participação de Potira Maia, artista e educadora baiana residente em João Pessoa, que apresenta uma série de pinturas intituladas “Ensaios para…”. As obras dispõem de situações do cotidiano, no ambiente noturno da cidade, fotografadas e pintadas pela artista que trazem aspectos ordinários de rotinas ou situações de lazer. Entretanto, as formas de Potira não são hiper-realistas, nem mesmo produzidas como cópias das fotografias em impressões sobre a tela. Não se trata, portanto, de uma representação etnográfica desses espaços. O destaque dado pela curadoria nas produções de Potira está ao perceber ali sujeitos e lugares específicos e de dar a eles uma ideia de protagonismo ao inseri-los em “crônicas do cotidiano”. Suas pinturas apresentam formas sem qualquer pretensão naturalista, ainda assim, evidenciam as relações com a imagem fotografada nesses ambientes. Como afirma a curadoria, tais personagens, que se encontram no meio urbano, “tentam encontrar alguma sobriedade, lucidez, equilíbrio, deleite, ou agir com desembaraço em um contexto dito marginal”.

Potira apresenta suas figuras por meio de uma forma-quase-deformada e nos põe a refletir sobre essas formas ao entrever suas narrativas com outros pequenos quadros que se avizinham às telas maiores. Agrega, assim, complexidade ao arranjo expográfico. O conjunto de telas expostas é formado por pequenos organismos que surgem em cada pintura maior e a partir delas. Dessa maneira, parte das pinturas maiores se desdobra de sua unidade, estendendo aquela imagem embrionária pelo espaço, a partir de telas menores. Se olharmos rápido, pode parecer apenas uma replicação daquela mesma imagem. Mas tal desdobramento pode sugerir outras questões. As narrativas trazidas no trabalho de Potira, se considerarmos que eclodem de um processo de captação fotográfica que migra para a tela, vão sendo fragmentadas e, assim, ressaltam detalhes e especificidades próprios que nos permitem direcionar uma maior atenção àquelas personagens e seus lugares. A representação desse tecido social – segregado e compartido – traz consigo explicitação da separação, bem como a tentativa da conformidade. Mesmo assim, um equilíbrio substancia-se na destreza das linhas da artista. Potira evidencia, na forma como se colocam os sujeitos e seus espaços, uma vontade de reconfiguração de suas sociabilidades a partir de suas próprias vivências. Talvez se perceba, nessas fragmentações, cortes impostos e incisões da ordem do social, bem como invisibilidades que por vezes configuram indivíduos em suas ambiências, que marcam seus passos dados entre as pistas de dança e se instalam nas sombras noturnas da cidade.

Gostaria de encerrar esse texto com uma inquietação que me surgiu desde o momento inicial dessa mostra. Talvez não consiga me expressar em tão pouco espaço, talvez até fuja do escopo curatorial. Contudo, deve ser destacado que, em “Iminência de Tragédia”, pode-se perceber o debate que aponta algumas depreciações ou precarizações institucionais com as quais nos confrontamos nos últimos tempos no país. São tragédias, sucessões delas. Como este texto dialogou com a proposta da curadoria e com a fala das próprias artistas, o conjunto de trabalhos abordado circunscreveu o cenário no qual nos inserimos. A conjuntura da exposição, no atual cenário brasileiro, produzida a partir do financiamento público de um projeto aprovado em edital da Funarte, ressalta a importância de pensarmos sobre as diversas camadas que sustentam e confrontam o meio artístico, bem como suas demandas de produção e execução dos projetos.

As temáticas contemporâneas urgentes, ou os locais que demandam por transformação, movimentam-se entre as propostas artísticas, lembrando-nos dos espaços que ocupamos, dos sujeitos com os quais nos confrontamos e dos ambientes que atravessamos comedidos por disputas sociopolíticas e afetivas, organizados a partir de pertencimentos instaurados em protagonismos e cartografias imagéticas. O espaço público, então, torna-se uma possibilidade para esse ambiente de sociabilidade com as múltiplas conversas apresentadas via arte e instituição.

O debate apresentado pelo conjunto da exposição deve ser encarado não somente nas proposições das obras e no escopo curatorial, mas nas iminências e nos indícios ali presentes. Essa movimentação entre pesquisas e produções interpelam nosso cenário bradando temáticas urgentes nos âmbitos sociais, políticos, econômicos e afetivos.

São as variedades polifônicas apresentadas a partir de projetos díspares que podem trazer noções outras das histórias plurais afirmadas no contemporâneo, assim, é possível produzirmos mais fontes de investigação sobre a diferença e sobre a necessidade de expô-la. Novos protagonismos, novas apostas curatoriais, novas e diversas artistas dialogando paralelamente às necessidades sensíveis da sociedade em que habitam. É por isso que a diversificação nos programas de apoio público, bem como a necessidade por mais espaços públicos, deve ser sempre lembrada. Afinal, trata-se de uma instância de ativação possível para o pesquisador ou artista, sendo eles autônomos, universitários ou de outras áreas das artes visuais e afins.

Notas de Rodapé

1  Os textos das curadoras foram consultados no folder da exposição. Também apresentam as palavras das próprias artistas, que aqui são sinalizadas ao longo do texto. In: FUNARTE. “Iminência de Tragédia”, folder de exposição. São Paulo, 2018.

Referências Bibliográficas

FLUSSER, Vilém. A filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

FUNARTE. “Iminência de Tragédia”, folder de exposição. São Paulo: Funarte, 2018.

Lista de Imagens

Capa   Denise Alves-Rodrigues, Vocação para a ruína (detalhe). “Iminência de Tragédia”, Funarte/SP, 2018. Foto: Adriana Moreno.

Denise Alves-Rodrigues, Vocação para a ruína. “Iminência de Tragédia”, Funarte/SP, 2018.  Foto: Adriana Moreno.

3  Marina Zilbersztejn, Notas ao leitor (detalhe). “Iminência de Tragédia”, Funarte/SP, 2018. Foto: Adriana Moreno.

4  Noara Quintana, Solo emulado. “Iminência de Tragédia”, Funarte/SP, 2018. Foto: Adriana Moreno.

5  Fabiana Faleiros, Eu te amo (detalhe). “Iminência de Tragédia”, Funarte/SP, 2018. Foto: Adriana Moreno.