1 MIRA SCHENDEL, s/d. apud PÉREZ-ORAMAS, 2010, p. 58.
2 AUERBACH, p. 5.
3 AUERBACH, 1987, p. 400.
4 p. 19.
5 GULLAR, 2003, p. 153.
6 MIRA SCHENDEL, s/d. apud PÉREZ-ORAMAS, 2010, p. 58.
7 AUERBACH, 1987, p. 11.
8 Idem, ibidem.
TEXTO-OBRA DE ANDRÉ WINTER NOBLE e RENATA AZEVEDO REQUIÃO
André Winter – Artista visual; licenciado e mestre em Artes Visuais (Processos de Criação e Poéticas do Cotidiano / PPG — Artes Visuais), sob a orientação da Profa. Dra. Renata Azevedo Requião, UFPel; doutorando em Letras (Estudos de Literatura: Teoria, Crítica e Comparatismo / PPG — Letras / UFRGS), sob a orientação da Profa. Dra. Rita Lenira de Freitas Bittencourt. Bolsa CAPES.
Renata Requião – Professora, orientadora e pesquisadora, PPG — Artes Visuais, UFPel; atua nos cursos de Artes Visuais, Arquitetura e Urbanismo e Antropologia; atuou nos cursos de Letras e Jornalismo. Mestrado, Doutorado, Pós-doutoramento no Campo das Letras / Literatura / Poesia & Artes Visuais Contemporâneas no Brasil. Lê, escreve, faz esboços; gasta longas horas preparando seu jardim. Se publicasse, gostaria de assinar seus trabalhos como Pilar Azevedo.
RESUMO
Este texto é parte de uma série de “pequenas ‘supostas’ missivas”, cujo objetivo é expressar uma determinada experiência, uma certa forma, pessoal, de relacionamento com a Arte. Experiência que, única e íntima, é simulada na escrita informal, permite a livre reflexão, feita do ritmo oral inerente à dicção de cartas escritas aos amigos — aqueles com quem nos sentimos próximos de nós mesmos, e potentes. O encontro é rentável intelectivamente, justamente por isto: pensamos com potência quando entre amigos, em nosso “falanstério fraternal” (Roland Barthes), e quando convivemos em, replicando palavras também de Barthes, “total ausência de poder”. Esta é mais uma carta fictícia, marcadamente escrita desde o descompromisso da conversa mundana (tomada aqui como “conversa sobre o mundo”), baseada na relação fraterna. A partir desse investimento verbal na escrita tipo epistolar, sobressalta-nos aqui a Arte como filtro perceptivo da vida vivida em sua cotidianidade; a Arte como aproximação à vida; a Arte decalcando nuances sobre a vida — mais um layer da vida urbana. A Arte produzindo da vida, em seu caos de expansão irrefreável, algum sentido mais civilizado e compartilhável. Em nossas cartas fingimos duplamente. Fingimos escrever como uma só pessoa e fingimos a real remissão da Carta ao artista, tomado aqui como “artista-autor” (aquele amigo com quem conversamos na intimidade, repetimos). Esta Carta a Mira Schendel é a primeira da série de cartas que temos publicado na qual a escritura da carta é enfrentada como uma espécie de registro tardio para carta que, sabemos, já não poderá ser entregue, pois aquela a quem se destina não vive mais. Na proposta deste número da Revista, deixa o texto manchar, contraparte de nosso maior interesse no campo das Artes Visuais, voltamos à Mira Schendel, cuja obra, por sua especificidade, nos aproximou há alguns anos. Nas palavras de Tadeu Chiarelli, Mira “talvez seja [no Brasil] a artista que mais evidenciou a crise da arte deste século, [… seus desenhos] devolvem-nos de alguma maneira a possibilidade de resgatarmos certa capacidade de perceber o mundo e a arte numa dimensão mais ampla”. Interessa-nos aqui, como nas outras cartas, o fazer poético arduamente buscado e desenvolvido pela artista escolhida, seus engendramentos com a linguagem, o específico de sua obra-discurso, alargando os sentidos do mundo. Esta carta, curta, suspensiva, é carta feita de notas como para não esquecer o que é preciso dizer, para afirmar o que teria sido premente dizer se tivesse havido, no encontro, a chance de perguntar e de ouvir. Nesta carta à Mira lidamos com velhas anotações, redimensionamos pequenos textos. As palavras são poucas, impera o silêncio. Assim, estes “registros para uma carta não escrita”, precedidos de alguns parágrafos iniciais, sobre a própria escrita da carta / não-carta, considera a gênese da linguagem artística na qual a artista constrói sua poética, como fizemos na última Carta (aquela escrita à Marina Abramovic). Se Mira Schendel desenvolve sua poética trabalhando em linguagens absolutamente incorporadas pelo campo das Artes Visuais, reforçando linhagens ancestrais das expressões bidimensionais (pintura, gravura, desenho), sua experiência poética, por entre o visual e o verbal, redimensiona, sutilmente, tais linguagens — e as torna mais complexas. É o que mais nos interessa em Mira Schendel. Ela, “usando elementos textuais, alfabetos, letras, cria verdadeiros ‘quadros-poemas’ mesmo que o que esteja fazendo seja pintura” (como afirma Haroldo de Campos, em entrevista a Sônia Salzstein, publicada no livro No vazio do mundo), e propõe questões sobre o fazer que ampliam os limites das linguagens / expressões nas quais “compõe”: a pintura, a gravura, o desenho com Mira se tornam outra coisa. Aproxima as práticas poéticas visuais, na representação com suporte bidimensional, das práticas envolvidas pela linguagem/expressão da escrita. Faz isso tanto com a mão titubeante da garatuja, quanto com a mão tecnológica da tipografia, tanto se referindo às texturas na experiência de registro frontal nas pedras do paleolítico, quanto às do papel sujo de grafite pela mão e braço da criança em fase de letramento. Em sua poética visual, nessas três linguagens de superfície, a presença da escrita tenciona até mesmo os limites entre suporte, matéria, representação, linguagem, objeto. Por todas essas razões, se esta carta também tem um caráter genérico, pois visa à linguagem bidimensional, expressa por um fazer manual, são, claramente, as questões advindas das discretas e quase indiscerníveis práticas poéticas de Mira que fazem com que tais linguagens sejam tomadas aqui a partir de sua potência como “obra-pensamento”, capaz de transbordar para a vida. Genericamente, o que temos tentado dizer é: a experiência com o trabalho da/na Arte gera um pensamento capaz de oferecer ao homem comum inusitados pontos de vista sobre a vida. Por fim, no impossível desta carta à Mira, emerge a dicção de anotações que assumem tom de monólogo, e o “eu que escreve” pela segunda vez assume matizes de uma voz feminina. O “nós”, da carta produzida a quatro mãos, transformado no “eu” das anotações, se assina mais uma vez Erdna Ataner. A voz feminina dos diários e das trocas de bilhetes entre mulheres, na escrita do ardil secreto, capaz de revelar um mundo feminino e titubeante, atento às pequenas coisas, mundo feito de pequenos sopros, que retece e retém o mundo como exterioridade. Exploramos a impossibilidade de a carta se dar a ler por seu destinatário (Mira falece em 1988), e por isso também a dicção claudica. A voz feminina, manifesta na intimidade desta carta, toma a delicadeza da produção da artista como diretamente dirigida a ela que, então, em troca, sussurra pensamentos, quase em segredo. Erdna, percebendo tardiamente, nas múltiplas e tão discretas obras de Mira Schendel, um discurso dirigido a “si”, apressa-se a fazer anotações, para não esquecer, quem sabe para reter (para retecer). As “obras-pensamentos”, tomadas aqui como obras-discursos (em conversa íntima), são endereçadas a “mim, eu que agora, sempre atrasada, já não posso falar, por isso escrevo”. Nossa estratégia, como nas cartas anteriores, é de que Erdna, na carta publicada faz-se um “eu público”, marcadamente feminino, ocupando o lugar de todo e qualquer “eu público e anônimo”, frente às obras de Mira. Na leitura da carta, cada leitor se depara com o silêncio experimentado pelo interlocutor discreto, não invasivo. Um último aspecto a salientar, quiçá primeira ou última dobra de nosso exercício de escrita: a escrita da carta (como a escrita de diários, de cadernos e de cadernetas de anotações) é, sabemos, forma discursiva cara ao enriquecimento do próprio processo poético. Para muitos artistas-pensadores, “artistas-autores”, é circunstância de troca frequente. Artistas, escritores, intelectuais, pensadores, estimulam, emulando entre si, sua “consciência crítica”, naturalmente exigida pelas trocas por escrito. Considerando ao outro, não estando perto, nos resta sermos exatos, encontrando a melhor forma de dizer, num dizer que é fórmula. Nesta série de cartas, temos buscado dizer da “experiência estésica” única, experiência sem peias pela qual é atravessado o sujeito expectante (o “eu” que, depois, escreve), em alguns encontros artístico-estéticos. Como se imiscuídos em sua própria poética, os artistas oferecessem a nós encontros pessoais, aqui simulados como acontecidos. A ideia geral é de que haja um homem real, um “sujeito da obra”, aquele encontrado através da produção poética por ele construída, no campo da Arte. Como sugere Jorge Luis Borges, “o escritor é sua Obra”. Frente à Mira, reconhecendo-a em sua Obra, mesmo em sua ausência, desejamos escrever esta carta. Não uma carta qualquer (Giorgio Agamben: a carta que se quer).
PALAVRAS-CHAVE
Mira Schendel, Transparências e escrituras, Realidade e símbolo, Arte e Vida, Relato de Experiência, Arte e Crítica na Contemporaneidade
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.5, Nº13, JUL., ANO 2017
DEIXA O TEXTO MANCHAR
Satolep, 07 de junho de 2017
Mirando Mira, a quem já não posso falar.
Esta é a primeira vez em que escrevo, não uma carta, uma não-carta. Por isso a escrita aqui é quase um lamento. Quiçá um lamento em forma de carta. Não se pode escrever uma carta a quem já não está. A não ser que não importe a quem escreve, afinal, a carta em si nunca alcançar aquele a quem se dirige, neste caso, aquela para quem está escrita, a quem se tem em mira, a quem se busca enquanto se faz o registro. Mira na direção de quem escrevo, em função de quem aqui escrevo, Mira está longe, distante, pois Mira já partiu.
Não posso me dirigir a Mira esperando sua resposta a partir de minhas questões. Mas posso me dirigir a Mira formulando perguntas cujas respostas eu seja capaz de encontrar em seus trabalhos, em sua biografia artística, nos textos daqueles com quem conviveu, daqueles que, criticamente, tentam dizer o que afinal mira tem em mira.
Assim imbuída, recupero aqui, de cadernetas amarelecidas, velhas anotações: solitária e à distância, já conversei muito com Mira. Membro do meu “falanstério fraternal”, aquela espécie de confraria afetiva sugerida por Barthes, capaz de garantir uma vida menos penosa, apontando um sentido de civilidade às ações dos homens (em prazeres outros que não os das confrarias de cachimbos e vinhos). Revelo aqui anotações, rabiscos, ideias, menos que palavras (algumas sequer consegui recuperar), na esperança de que em sua fulguração minhas intuições garantam certa riqueza a este monólogo. A escrita já é um diálogo, nela já estamos com o outro… Certa vez alguém me disse de certos pensamentos que nascem na boca, na própria articulação das palavras, como murmúrios de enamorados, rosto no rosto, buscando o que dizer, como dizer… desconfio que Barthes ande por trás dessas ideias.
Já Mira anda sempre à minha volta, decerto eu às voltas de Mira, pois ando sempre atucanada com a escrita, com registros, com fissuras e significações, papéis de todos os tipos, dos quais não consigo me livrar. Eu, ai de mim, que circunvoluteio e murmurejo mundo afora, às voltas com palavras e sussurros, em traços de sons e sílabas pregressos que, invertendo o tempo, seriam/são restos de nós — como aquela ínfima matéria que deixamos por onde passamos, quiçá signos quas’insignificantes de nossas pegadas sobre o solo pedrento da Terra. Eu sempre fui mais interessada naquilo a que abandonamos, naquilo que cada um abandona, do que interessada no que construímos. Pareço sofrer de uma espécie de cacoete político, contorcionista e sôfrega. Pergunto: não interessará a política pensar também o lugar que abandonamos?
Mira, pensando em ti, falando contigo, começo com meus contrassensos, minhas digressões, rasuras num raciocínio sempre fendido. Mira a mim, que te tenho na mais alta conta, tu me fazes tanta falta, Mira.
Busco entre notas, registros, papéis, índices de Mira. Serei seletiva, tentarei ser exata (busco as formulações matemáticas de quando se consegue atingir a síntese capaz de nomear… o aleph borgeano, a pequena bolita de gude, capaz de todas as refrações de luz, girando no chão de nossa infância, se escondendo por entre os móveis das casas, virando um odradeck kafkiano, em tudo perturbador…). Os papéis de Mira, suas transparências, suas escritas, suas monotipias, sua “discreta eloquência”, suas palavras – qual rosebud, orégano, muiraquitã. A poética de Mira, sua protopoética poética, tal qual uma protolinguagem, (aquela para a qual estamos prontos, pequenos e correndo riscos, na encruzilhada das decisões, à beira de nos tornarmos civilizados). Parece tão simples o mundo da escrita quando olhamos letras, grafismos, linhas, um papel cuja textura é revelada pela sujidade de algum material… Frente aos trabalhos de Mira, somos crianças e homens das cavernas, no acesso ao novo mundo dado pela escrita, mundo, sabemos bem, duplicado em superfícies de fortes poderes, formas de controle e de passagens penosas.
Cada obra de Mira me ajuda a ver.
Registro nº1:
Hoje, folheava, atrapalhada, livros sobre Mira. Neles, encontrei, entre a série Escritas, de 1965, uma palavra que me é muito cara, ali grafada: Winter. Sei, cara Mira (me dirijo a ti!), não são obras dedicadas a mim. Mas carrego tal estação do ano em minha genealogia, marcada que sou por certo temperamento, vivendo neste sul do Brasil, sul nada tropical. O que nos explica por aqui é certa “estética do frio” (escuto a voz de Vitor Ramil), sob um sol rebaixado que nos faz parecermos habitantes do Uruguai. Frio, umidade, muita água, são características geoclimáticas que nos invisibilizam, se considerarmos a necessidade dos corpos em sua evidência solar, no desnudamento exigido pelas praias equatorianas… Aqui, em nossa umidade e frio, funcionamos ao inverso, somos bichos habitantes de tocas e interiores.
Neste sul úmido, as paredes de nossas casas, na herança portuguesa sempre caiadas, emboloram. Ganham relevo e vida as paredes que, como páginas, inorgânicas, na verticalidade mural são certamente nossa primeira experiência de arte. Em teu mundo tão vegetal, Mira, mundo tão orgânico, feito de folhas como páginas, teu desenho muitas vezes se aproxima ora dos veios que o bolor vai traçando nas paredes, ora do trajeto de uma lesma sobre alguma superfície, ou ainda dos trajetos incertos deixados pelo dedo de um menino que, em casa, sem poder sair, à espreita do sol, brinca de desenhar na umidade das paredes de escaiola. A mão titubeante de uma menina como Mira, com seus primeiros e rombudos lápis de escrever, em cada folha revela estruturas invisíveis.
Vejo, nas Escritas de Mira, as mesmas linhas, tanto estuários quanto marmoreios, sutis traços de partículas em líquidos que, em seu percurso, se retêm. Por alguma razão, não se misturam, como se pode ver naqueles papéis marmoreados, nas contracapas de livros antigos, guardados por anos no fundo de armários, papéis amarelados, estruturados pelo tempo. Paredes, folhas, páginas, palmeiras, ossos de baleia, conchas, cascos de tartaruga, papiros vegetais, pergaminhos de pele animal, papéis: suportes para os primórdios da caligrafia, da poesia, da correspondência. Em seus Pequenos nadas Mira parece nos oferecer a história do papel.
Nenhuma obra, sendo, é dedicada a um só homem. Recentemente entrei em contato com a obra de um grande homem, obra paradoxal, de extrema delicadeza,… Karl Ove Knausgärd é um homem extremo, imagino que Mira também gostaria dele. Dia desses lia sobre ele, das coisas que diz e pensa, de seu percurso e seu envolvimento com a Arte, ele menino em terras vikings (como ser menino em terra de viking é uma pergunta difícil, mesmo para mim que me sinto uma mulher viking, capaz de sobreviver com meu corpo às intempéries e aos perigos)… dizia ele da sensação de, na Arte, com a Arte, estarmos sempre sós. No paradoxo que essa questão assume, ao vincularmos Arte e Civilização, gosto de pensar nisso. Acho importante pensar assim, como Knausgärd está sugerindo: o grande diálogo estético parece mesmo ser mais um monólogo, uma sucessão de introspecções, monólogo interior… Um pensamento-fala que se nasce na boca é murmúrio para si mesmo. Como os primeiros leitores se deparando não só com os primeiros textos escritos mas com o novo de um pensamento articulado pela escrita. Nos templos das bibliotecas, o rumorejar dos balbucios, o rumor da língua barthesiano. Para falar, não basta estarmos com, temos que estar a sós, temos que ter encontrado nossa voz em nosso discurso. Daí advém a Ética (Agamben também insiste nisso).
…
Mira, converso com cada trabalho teu endereçado a mim. Neste inverno sulino, como no primeiro inverno em que encontrei teu trabalho com a palavra mágica (winter), considero-o de fato feito, escrito a mim. Outros que procurem nas tuas Escritas seus nomes próprios! Folheando livros, encontrei também algumas declarações tuas sobre intenções poéticas, exercícios com alguns vocábulos que, gosto de entender assim, propõem uma espécie de “deformação informativa” com que nos dás a ver, com os quais nos indicas ser tão árduo, e tão pouco natural, ler. Questão que me assombra.
Vejo no trabalho de André Winn, jovem artista brasileiro, tanta influência tua, nas conversas intermináveis que tua obra oferece. Especificamente numa delicada série, Escrissuturas, feita de pequenos desenhos à linha, nos quais com a máquina costura desenhos sobre papel arroz. Sobre essa superfície / suporte de extrema delicadeza, se vê as sutilezas do brutal diálogo entre o homem e a máquina (criador e criatura), para além das tensões óbvias. Estaria esse artista-autor a nos dizer que, para sairmos do inferno entre os homens, é premente lidarmos com a “tópica da delicadeza”, como sugere (mais uma vez) Barthes?
Registro nº2:
De tuas monotipias, Mira, dizias (li isso em algum lugar; me pareceu fidedigno) serem elas: resultado de uma tentativa até agora frustrada de surpreender o discurso no momento da sua origem; o que mais preocupa é captar a passagem da vivência imediata, com toda a sua força empírica, para o símbolo, com sua memorabilidade e relativa eternidade.1 É aqui, afinal, de escritura que falamos. Nesse sentido, essa tentativa talvez fosse nosso traçado de lesma, nosso trajeto de traça, a fagifazer coisas, fazendo as coisas que mascamos, com que nos alimentamos, nós, traças de tudo, foliofágicos. Nossa impossibilidade de dizer por conta de nossa vontade de dizer, vontade e fracasso: a própria escritura.
Isso escrito e relido, pergunto-me: não seria o fracasso uma das motivações da Arte? O impossível, o para sempre alienado, o intangível.
…
Na contramão disso, fazemos monotipias quando buscamos dizer sempre da mesma maneira? Monocordemente, repito-me para ser ouvida… Será que Benjamin falava disso, quando pensou na força dos discursos na era da reprodutibilidade técnica, em meio à belicosidade do século passado? Miro em mil questões, Mira, maravilho-me com vazios.
Registro nº3:
Estou lendo uma vez mais um livro de artigos de Jeanne Marie Gagnebin. Já em seu título, Lembrar escrever esquecer, ela parece tanto ser tua amiga, imagino vocês conversando sobre interesses comuns, eu assistindo a conversa (vocês chegaram a se conhecer?, não desisto de um mundo em que as pessoas de bem possam conviver em comunhão, ocupadas com o prazer de ampliar nossa consciência sobre a terra; coisa de gregos, decerto… o tal do olimpo?, sorrio daqui…).
Miro (não estou sendo leviana!) especificamente o artigo “Escrituras com o corpo”, no qual ela se move pela cicatriz de Ulisses, aquela marca no corpo pela qual nosso proteico avatar do Homem ocidental, o Odisseu, pôde ser reconhecido. Mira, meu interesse aqui: o homem reconhecido por sua cicatriz, a marca do que fendeu em seu corpo, marcando, indelével e definitivamente, a superfície de sua pele. Essa passagem, no canto XIX da Odisseia, sobre a cicatriz de Ulisses, sabemos, é muito marcante; a cena, desenvolvida em numerosos versos, se dá numa “expansão de amplo parêntese sintático”2, no qual a narrativa “vai se livrando da subordinação sintática”. Foi abordada por vários leitores críticos, entre eles Auerbach, cuja leitura se intitula “A cicatriz de Ulisses”, um pequeno texto na abertura de seu livro Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Essa leitura interessa-me sobremaneira. Foi reativada nesses dias de sol frio, enquanto relia Gagnebin; parece ajudar a esclarecer (deveria dizer iluminar?) o que vejo nos trabalhos, Mira.
Pois a sensação que tenho, principalmente nos movimentos feitos pela mão em pinça fina que caligrafa (mas não, talvez, nos movimentos da mão tipográfica), é de que Mira lida com o silêncio. Daquele silêncio de onde pôde brotar a mais essencial escrita, como se uma fenda aberta pelo traçado primordial, afinal — a maravilha e o milagre da inscrição. Mirabilias de Mira: do nada, as coisas admiráveis. Riscos que brotam ao acaso do despertar de um cochilo, palavras que saltam espantosas na memória e que precisam ser externadas, como se precisássemos delas nos livrar, palavras a serem livradas (a serem lavradas?) — algo como “a livração das palavras”. Por fim, — nada. Somente alguns traços fugidios, fugitivos, impossíveis de serem compreendidos, nomeado, repetidos. Muitas vezes imperceptíveis, em meio a ruídos, rastros e restos no cotidiano.
Pois que para Auerbach, ou o que mantenho de seu texto, complexo, é a “afirmação do presente”, de a narrativa na Odisseia se dar desde uma perspectiva sempre no presente, espacial e temporalmente. Em Homero, diz Auerbach, tudo fica às claras e o leitor acompanha plenamente a narração: Homero “só conhece o primeiro plano, só um presente uniformemente iluminado, uniformemente objetivo”. Diz ele, em meio a tantos versos, versos que descosturam a sintaxe do imediatamente narrado, daquilo que é informado, “a estória da cicatriz [grifo meu] torna-se um presente independente e pleno”. Sei que esta conversa é longa, mas diz respeito a Mira.
Minha impressão, olhando os trabalhos, é de que para dizermos de Mira, do que ela ilumina, do que ela representa, temos que lidar com sua obra considerando tais apontamentos de Auerbach. Porque ele inicia esse seu livro Mimesis com tal tema da cicatriz, estimulado por um dos textos fundadores de nossa mentalidade. Isso significa, fundação de nossa percepção de mundo, enfim de nossa tradição intelectual. Interessado que está numa espécie de sistematização da questão fundamental para toda e qualquer arte: “a interpretação da realidade através da representação”3.
Por que, afinal, na representação, a cicatriz?
Mira está de olho na simbolização. Anotei de outra entrevista: “o que me preocupa é captar a passagem da vivência imediata, com toda a sua força empírica, para o símbolo, como sua memorabilidade e relativa eternidade”. No real, no momento presente, na saída do real para a entrada no simbólico, ainda sob o regime empírico do real. Essa é a passagem à linguagem, à civilização. O corpo do homem civilizado é cheio de cicatrizes. É para essa passagem que Mira direciona seu interesse.
…
Mira, em gestos essenciais, opera como outros artistas cirúrgicos. Amilcar de Castro, Waltercio Caldas. Artistas de silêncios, de “discreta eloquência”, de gestos contidos. Nos cadernos aos quais consulta com regularidade, Waltercio anota: os papéis são como um lugar, neles encontra “espaços visíveis para soluções transparentes”4. Parece-me interessantíssimo. Arquitetos de soluções transparentes, os vazios de suas obras enchem nossos olhos, pura potência! Quando miro Amilcar de Castro, vejo o enfrentamento da superfície e do próprio corpo, resistente, das grossas chapas de ferro, “à força de cortes e dobras, ultrapassando a condição de matéria muda. Busca uma linguagem irredutível, que não quer perder sua origem”5, diz Gullar sobre os gestos deste artista fundador de linguagem. O que, desconsiderados os extremos dos materiais e expressões de cada um, parece cair tão bem a Mira.
Buscariam os três a “linguagem irredutível”, sem “perder sua origem”… o que seria isso? Uma linguagem que traz com ela sua própria gênese? Do caos e do silêncio, a palavra? Na superfície de Mira, o lugar de convergência entre nomes e coisas? Em Mira (em Amilcar de Castro, em Waltercio Caldas…), a busca por uma “linguagem irredutível” estaria ligada à ideia de “revelação”, dimensão “obliterada no contexto da teoria burguesa da linguagem”. Mesmo “sendo a esperança de qualquer signo linguístico, em última instância, dizer as coisas a que se refere de modo pleno” (acato a leitura do pesquisador Oneide Perius, ao texto de Walter Benjamin “Sobre a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem Humana”). Mira, Amilcar, Waltercio lidam então com “linguagens adâmicas”?
O caráter aparentemente experimental, intuitivo, primevo, que muitas vezes faz as obras em Mira parecerem estudos é, talvez, o que mais desperta minha atenção em sua produção, sobretudo nas monotipias. Para mim, é isso o que permite conferir à Obra de Mira a força de escritura (com o secreto da “linguagem adâmica”!). Mira considera a letra, a tentativa-de-letra, como potência gráfica quando garatuja ou decalca escritas, em vias de, quem sabe, vetorizar algum idioma próprio: como se o sucessivo decalcar de signos, de alfabetos (onipresentes em sua Obra) ou o ensaio da grafia, no movimento do próprio punho, pudessem, nessa “subjetivação da escrita”, combater o fascismo da língua (expressão política, tão cara a Roland Barthes).
Mira não capta a pura natureza, Mira outras paisagens. Busca atualizar, reapresentando, as passagens, sinuosas, de um estado mental a outro. Necessariamente em fragmentos: o bicho pré-histórico, o desenho-de-bicho, o signo-bicho, o bicho já não mais visível atravessado pela cultura. A representação do bicho pela letra, no retalho de vocábulos, não trata de representação, mas redesenha a letra — talvez uma antiletra, menos que desenho. Um possível sonoro, outro possível significado. Naquilo que resta no papel arroz, nos papéis japoneses, é assim, pois, que certa “teoria dos traços” poderá emergir desses trabalhos postos em Mira.
A Obra de Mira incide francamente sobre uma grande questão política (observação que vejo tanto anotada em minhas cadernetas). Representar é sempre uma ação política. Com o que lidamos e de onde olhamos o mundo que desejamos representar é um problema de decisão — a perspectiva. Esses artistas que deixam tudo claro, aqueles que com suas obras “nada ocultam”, nos forçam a lidarmos com a realidade (volto a Aurebach aqui). Repito Mira, destaco a passagem em que diz: […] é esta minha obra a tentativa de imortalizar o fugaz e dar sentido ao efêmero. Para poder fazê-lo, é óbvio que devo fixar o próprio instante, no qual a vivência se derrama para o símbolo, no caso, para a letra.6
A pergunta que me resta (e restará) é: seria a letra de Mira, suas linhas, seus traços, como a cicatriz de Ulisses? E, ainda, ambas, letra e cicatriz, estariam na contramão dos sentidos comuns, aqueles aos quais somos levados a compreender, quando somos forçados a ler, necessariamente crendo em prévias ideias de Verdade? Segundo a ‘teoria burguesa da linguagem”?… Ao texto de Homero, Auerbach aproxima e afasta o texto bíblico das Sagradas Escrituras. A pretensão de verdade nos relatos bíblicos é tirânica: o relato das Sagradas Escrituras “não se contenta com a pretensão de ser uma realidade historicamente verdadeira: pretende ser o único mundo verdadeiro”.7 Eco da anotação anterior: “representar é sempre uma ação política”.
A vantagem é que Homero, reconhece-se, é um grande mentiroso: para tocar a realidade, este tecido roto, cheio de remendos como cicatrizes, é preciso não buscar nela sentidos ocultos. “No mundo ‘real’, existente por si mesmo, no qual somos introduzidos por encanto [pela grande arte], não há outro conteúdo a não ser ele próprio”.8 A realidade que nos é oferecida por Mira é bastante forte, não demanda “ensinamentos e nenhum sentido oculto”. Há em Mira o reconhecimento de que as coisas do humano são problemáticas e fissuradas. Volto ao trabalho de André Winn, Escrissuturas, à série de pequenos desenhos feitos com linha e máquina de costura sobre papel arroz. Sobre tal suporte de extrema delicadeza, no papel arroz caro a Mira, vemos um possível da tensão entre o homem e a máquina. A saída do inferno é outra passagem, penosa. Quem sabe em busca da cura das cicatrizes, Escrissuturas. Insistir nas fendas e nas falhas.
A aquosa história do papel tem linhas como as das aves migratórias, cobre o globo terrestre. Desde os tempos mais remotos, o retângulo ainda áspero e fibroso buscado nas folhas do papiro egípcio, ao alisado das técnicas de marmoreio, nas folhas do suminagashi do Japão, do ebru, na Turquia, a folha-página, este lugar bidimensional, foi a superfície a dar suporte a escrituras sagradas, a poesia, aos segredos das correspondências. Mira olha sutilmente.
…
Mira, infinita, em sua “discreta eloquência”, sussurra, observa e cuida, como uma doula frente a um nascedouro de signos. É Euricléia, a escrava ama-de-leite, reconhecendo num mendigo Odisseu por sua cicatriz. É Josefina a cantora, com canto pequeno, persistente.
(registro público de anotações íntimas encerrado nesta data)
junho agosto 2017, Satolep,
Erdna Ataner
1 MIRA SCHENDEL, s/d. apud PÉREZ-ORAMAS, 2010, p. 58.
2 AUERBACH, p. 5.
3 AUERBACH, 1987, p. 400.
4 p. 19.
5 GULLAR, 2003, p. 153.
6 MIRA SCHENDEL, s/d. apud PÉREZ-ORAMAS, 2010, p. 58.
7 AUERBACH, 1987, p. 11.
8 Idem, ibidem.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O fim do pensamento. Revista Terceira Margem Tradução: Marcos Siscar. Rio de Janeiro: UFRJ; Sette Letras, 2004.
AUERBACH, Eric. A cicatriz de Ulisses. In: ______. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1987.
BARTHES, Roland. Como viver junto. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
CALDAS, Waltercio. O atelier transparente. Entrevista. (Org.) Marilia Andrés Ribeiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2006.
DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.
GULLAR, Ferreira. Relâmpagos: dizer o ver. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
LAGÔA, Beatriz Rocha. Mira Schendel: um ensaio sobre as monotipias. Disponível em: http://www.alfredo-braga.pro.br/ensaios/mira.html. Acesso em: 12 julho 2012.
MARQUES, Maria Eduarda. Mira Schendel: a estética da expressividade mínima. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
NOBLE, André Winter; REQUIÃO, Renata Azevedo (orient.). Com Mira em Schendel: Reflexões a partir da Gestualidade. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Federal de Pelotas, 2013.
PÉRES-BARREIRO, Gabriel. Waltercio Caldas: o ar mais próximo. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2012.
PÉREZ-ORAMAS, Luis (org.). León Ferrari and Mira Schendel: o alfabeto enfurecido. New York/Porto Alegre: The Museum of Modern Art/Cosac & Naify, 2009.
PERIUS Oneide. “A filosofia da linguagem em Walter Benjamin”. IN: ANAIS SEMANA ACADÊMICA DE FILOSOFIA, PPG Filosofia, PUCRS, VII ed, 2011. disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/semanadefilosofia/edicao7/Oneide_Perius.pdf
SCHENDEL, Mira. No vazio do mundo. São Paulo: Marca D’Água, 1996.
WEBSITES
http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2009/12/mira-schendel-1919-1988.html
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa2450/mira-schendel
http://www.iberecamargo.org.br/site/uploads/multimediaExposicao/061220114542_O_Alfabeto_Enfurecido.pdf
Lista de Imagens
1 Mira Schendel, Sem título, da série Objetos Gráficos, c. 1969, grafite, tipo transferível e óleo sobre papel, entre placas de acrílico transparente, 99,8 x 99,8 x 1 cm, Coleção Patricia Phelps de Cisneros. Fonte: www.iberecamargo.org.br/site/uploads/multimediaExposicao/061220114542_O_Alfabeto_Enfurecido.pdf
2 Mira Schendel. Sem título, da série Objetos Gráficos, 1972, tipos transferíveis sobre papel-arroz fino, entre placas de acrílico transparente, 95 x 95 x 1 cm, Coleção Clara Sancovsky. Fonte: www.iberecamargo.org.br/site/uploads/multimediaExposicao/061220114542_O_Alfabeto_Enfurecido.pdf
3 Mira Schendel, Sem título, da série Datiloscritos, 1975, datilografia e caneta com ponta de feltro sobre papel, 51 x 37 cm, Coleção Estrellita e Daniel Brodsky. Fonte: www.iberecamargo.org.br/site/uploads/multimediaExposicao/061220114542_O_Alfabeto_Enfurecido.pdf
4 Mira Schendel, Sem título, da série Monotipias, década de 1960, óleo sobre papel de arroz, 47 x 23 cm. Fonte: simarte.com.br/pt-BR/Exposicoes/Obras?exposicaoId=58
5 Mira Schendel, Sem título, década de 1960, têmpera sobre lona, 50,5 x 50,5 cm. Fonte: www.iberecamargo.org.br/site/uploads/multimediaExposicao/061220114542_O_Alfabeto_Enfurecido.pdf
6 André Winn, Escrissutura, 2014, linha de costura sobre papel vegetal, 14,8 x 21 cm. Fonte: Imagem da autora.
7 Waltercio Caldas, A Jarra, 1991, metal polido e algodão, 100 x 40 x 30 cm Fonte: www.walterciocaldas.com.br/imagens/quadros/120.JPG
8 Amilcar de Castro, Sem título, c. 1980, aço corten, 36 x 50 x 38 cm. Fonte: www.bolsadearte.com/public/uploads/obras/2012/04/1508-_rro6442.jpg