ARAPUCA
VERBETE DE MARINA DUBIA
Marina Dubia – palavras-chave: artista; escritora; corpo; física; espaço; contradição. Cursa mestrado em Práticas Conceituais e Contextuais na Royal Danish Academy of Fine Arts, em Copenhague.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.6, Nº15, MAR., ANO 2019
VERBETES DA ARTE
– em conversa com Jardim Secreto ou Passagem do Trópico (2013-2017)
A movimentação de crianças em seus grupos escolares tinha toda minha atenção e o bambaleio correspondente dos monitores. Educadores. Orientadores de público. Qualquer coisa entre o vigia particular e o professor de escola pública, de acordo com a imagem que a instituição pretende projetar. Naturalmente eu evitava cruzar com a turba espalhafatosa. E me mantinha, apesar, antenada ao desenrolar da visita. Eu já fora um deles.
Escorreguei floresta adentro, numa sala de sombra e sussurros. E gritos excitados. Floresta, mato, labirinto, medo, os bichos. Não consegui me desvencilhar dos pequenos. “Parece que a gente vai se bater nuns negócio [sic]. Parece que você vai se perder. Parece que você vai se bater em algum tronco… em alguma árvore. Parece que são árvores”1. À noite, vento, excitação, poder, desbravamento, aventura. Eles disseram tudo. Para que interpretação? O que foi aquilo ali se mexendo? A gente podia fingir que não sabia. Algum educador soltava uma pérola: “Aqui tá parecendo um filme de terror, hein. Essas vozes falando no seu ouvido assim… Até assusta, hein?”.
De algum canto rente ao teto gotejavam citações sociológicas. Não dei bola. Meus ouvidos se enchiam de cascalho. As vozes vivas interessavam mais que as gravadas. A sala farfalhava. Eu estava contaminada. Os pensamentos de antes deixados à porta. Tiras de algodão descortinavam-se do teto ao chão, formando uma grade sistemática que capturava todos os sentidos. Um adensamento inescapável, concentração para o agora e o entorno imediato. Cada movimento reverbera por toda a sala, dentre intervalos de espaço e rasgos de luz.
É preciso um maquinário afetivo com algum grau de sofisticação para que eu me encontre desfrutando da companhia de crianças. Talvez elas não fossem capazes de entender aquele recinto como uma armadilha simples e engenhosa. Quem ali assoma é convocado a uma experiência de comunhão que equaliza, ou estabiliza temporariamente, as sensações que perpassam os corpos presentes. A fita roça meu rosto, lambe meu ombro e minha mochila, a fita encontra meu joelho e sobe pelo tronco, balança nas lacunas e se apega à sua orelha, um pouco mais para a esquerda, e se embaraça nos seus pés, tiras tremeluzentes que há pouco foram apartadas pelas braçadas de um homem que abre caminho, que logo mais são seguradas em feixes por pequenos punhos que acariciam os cipós. A trama comunica coordenadas de atravessamentos, de pele em pele, som em raspão; a partilha se efetua involuntariamente.
Sorte delas. Crianças não se dão conta de estarem a brincar no entroncamento da arapuca. Aqui não posso ignorar você, o outro. Pelo véu de ripas você me ameaça ou me atiça, sentimentos mais primários fermentam no estado de atenção imposto. No lusco-fusco a intuição fala mais forte. Sujeitos às mesmas obstruções. Igualdade em caráter temporário. Podemos concordar com alguma coisa.
Mas não consigo simplesmente estar no canavial e procurar a casa da caipora. Entro em estado contemplativo. Se não vejo graça em sair correndo no meio da sala e esbarrar nas árvores? Se você, estranho, não pensa duas vezes antes de rumar para a porta de saída, se alguém toma notas atenciosas das citações sociológicas, se um outro cruza a obra todos os dias a caminho de alguma sala de reuniões secreta, estamos, de todo modo, aqui hoje reunidos, tendo uma experiência comum? Uma voz esganiça: “Parece que nunca tem fim esse caminho!”.
Pelo contrário, a sala é fechada, a armadilha está montada, e é só nas frestas que a gente trafega. É provável que as crianças estivessem mais preparadas do que eu para responder àquelas questões. Pena que não vivemos na mesma linguagem. Que a linguagem não possa verificar o que meus olhos veem através dos seus. Que sirva para denominar faltas mais do que construir pontes e janelas.
Arapuca: do tupi-guarani, ara (pássaro); puca (esburacado). Esse troço esburacado de pegar pássaros. Eles escorregam adentro, no semiobscurecido, entre fendas e lampejos, e pumba, estão onde nunca imaginaram estar. Sentem medo? Ou conforto? O que prende protege do que tem lá fora, o que limita acolhe o que tem dentro. Faz isso o artista, ser oficioso, que com seus artifícios extrai o que outras estruturas não dão conta de desincorporar. Apesar, estamos aqui. Por que os estímulos físicos? Esses não fingem.
Também dou uns pulos e giros, me abaixo bruscamente, e mudo de direção. Não para brincar, não: para testar o potencial da instalação como cenografia de dança contemporânea, abandonando barreiras entre dançarino e espectador. Um espaço tátil onde os gestos são transmitidos de pontos remotos, até chegarem na pele e nos tímpanos de cada um. Ainda preciso falar com a Laura sobre essa ideia.
As vozes que carrego são seletivas quanto às seduções: pedaços de tecido não podem ser árvores, pedras de cascalho continuam sendo pedras de cascalho, e mesmo o autofalante não é mais do que um aparato tecnológico falível que precisa ser ligado e desligado a cada dia, em respeito ao horário de funcionamento do Espaço Cultural Porto Seguro. A animação precisa negociar com a inércia. Mesmo que sejam esses seus elementos constitutivos, a obra de arte não pode deixar de ser obra de arte, mas pode virar cenário de espetáculo. Meu léxico afetivo, minha semântica emocional existem dentro de uma narrativa peculiar que descrevo adicionando “contemporânea” à “arte”. Por acaso essa lógica ainda permite que pássaro seja analogia, corpo metamorfoseie em sensações, comum exista fora das estatísticas e, de algum, modo pássaros e esburacados juntos podem ser uma estrutura artesanal de gravetos intercalados, arranjados em forma de pirâmide, para a caça de animais de pequeno porte.
Na ausência da coisa para ser seu próprio sentido, deixemos que o pássaro escape pelos buracos. “Parece que nunca tem fim esse caminho. É. Parece que algum bicho vai aparecer de repente e vai te pegar… Vai te comer inteiro”. E São Paulo lá fora.
Notas de Rodapé
1 Disponível em: https://soundcloud.com/user-883047466/07-jardim-secreto-ou-passagem?in=user-883047466/sets/tempo-presente-espaco-cultural-porto-seguro
Lista de Imagens
1 Laura Belém, Jardim Secreto ou Passagem do Trópico, 2013-2017; fitas de algodão, cascalho, equipamento de som, luz elétrica. Aprox. 42 m². Espaço Cultural Porto Seguro, São Paulo. Fotos: Felipe Amaral e Fabio Galvani Furtado. (Disponível em: https://laurabelem.com.br/Jardim-Secreto-ou-Passagem-do-Tropico-Secret-Garden-or-Passage-of-the. Acesso em: out. 2018.).