ARQUEOLOGIA COMO REVELAÇÃO DA MEMÓRIA

VERBETE DE ALEXANDRE COPÊS

Alexandre da Cunha Copês é bacharel em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS. Atualmente é aluno de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.6, Nº15, JAN., ANO 2019
VERBETES DA ARTE

RESUMO

Partindo do conceito de arqueologia como possibilidade de revelação da memória, este texto busca articular o fundamento da ação arqueológica à obra The Mother Tongue (2002), da artista Zineb Sedira. Com base nos deslocamentos geográfico-culturais e linguísticos apresentados na referida obra, será discutida a reativação da memória como uma permanente busca pelos artefatos que nos compõem como indivíduos.

É na ciência arqueológica que resgatamos o conhecimento do passado, sendo a memória o objeto fundamental desse labor. A arqueologia busca reconstruir a essência da cultura material no encontro com o decorrido. Ainda que em termos gerais seja a ciência da humanidade desaparecida (OLIVEIRA, 2008), é na ação prática de sua feitura que se releva o escondido e, com isso, a memória. É escavando, do latim excavare, que se expõe à superfície o resultado de uma busca, reativando, por meio da procura, as anamneses de indivíduos, lugares e coisas.

A palavra arqueologia, substantivo feminino, deriva do grego arkhé (o que antecede, o vetusto), seguida do sufixo logos (pesquisa). Diante da investigação do passado, da reativação da memória que repousa na arquitetura dos vastos palácios agostinianos, revelam-se os tesouros de inúmeras imagens (AGOSTINHO, 1975). O acesso a essa estrutura, diante do reconhecimento de um sítio, mental ou material, é onde se apresenta o princípio da arqueologia: retomar o ido, reerguer as imagens de nossos palácios, saudar Mnemosine1 nesse escavar.

Na obra The Mother Tongue (2002)2, a artista Zineb Sedira ativa, no excavare de sua origem familiar, as memórias de seus palácios. Por meio da fala, ascende à ancestralidade de sua gênesis na presença do agora, resgatando, através da oralidade, uma possibilidade de recontar sua história pessoal como parte de um mundo colapsado pelo multiculturalismo, pelas migrações e pelas atrocidades coloniais.

Filha de pais argelinos, Sedira cresceu em Paris e mudou-se para Londres, onde sua filha nasceu. Ao percorrer questões como imigração e memória, a artista revela em The Mother Tongue as múltiplas camadas temporais entre três gerações: mãe, filha e neta. A partir de perguntas como quem somos ou de onde viemos, Sedira sai à procura de um tempo perdido. No excavare das memórias familiares e por meio da integração de suas gramáticas também afetivas – rompidas por múltiplos distanciamentos políticos, culturais e linguísticos –, reúne em um mesmo plano as distâncias e fissuras que compõem sua história pessoal e familiar.

Ainda que a representação visual sucinta da barreira da língua seja evidenciada em The Mother Tongue, nota-se que as rupturas geográficas (naturais e culturais) que separam a artista de sua família por meio da fala, por exemplo, são resultado de uma sociedade que enterra suas heranças e, consequentemente, suas memórias. Na impossibilidade de um entendimento linguístico diante do árabe, do francês e do inglês, Sedira confronta três tempos em que seus familiares conversam sem um reconhecimento linguístico uns dos outros. Ao propor tais aproximações, ante as distâncias culturais que os separam, The Mother Tongue encontra, no compartilhar dos afetos – ultrapassando a própria linguagem –, uma forma de reativação do archaios, desse passado, e de suas ruínas, que se reintegram à medida que são conectadas por uma ação arqueológica: o ato de reconstruir a memória.

Com a intenção de dar luz às sombras de seus escombros e de despertar as imagens empoeiradas do passado, como forma de inferir problemáticas do agora, The Mother Tongue revela, como resultado do excavare, a volubilidade do tempo presente. Nas profusas faces entre camadas pessoais e históricas, Sedira acessa, no alteamento de suas ruínas arqueolíticas, as fragilidades da era contemporânea. A arqueologia é uma ação que encontra no passado um entendimento do presente, lançando no futuro uma nova forma de escrever os fatos, pois é diante da reconstrução dos artefatos perdidos que se faz possível a reestruturação de nossos palácios e, assim, de nossas reminiscências.

Notas de Rodapé

1   Mnemosine, uma das titânides e filha de Urano e Gaia, é a deusa que personifica a memória. Na cosmogenia grega manifesta-se como o rio Lete a cruzar a morada dos mortos.

2   The Mother Tongue, vídeo, 5 minutos, coleção Tate Modern, Londres, Inglaterra, 2002.

Referências Bibliográficas

OLIVERIA, Mário Mendonça deA documentação como ferramenta de preservação da memória. Brasília: IPHAN: Programa Monumenta, 2008.

AGOSTINHO, Santo. As confissões. Rio de Janeiro: Ediouro, 1975.

Lista de Imagens

Zineb Sedira, The Mother Tongue, 2002, vídeo digital, instalação, dimensões variáveis. Fonte da imagem: https://www.brooklynmuseum.org/eascfa/feminist_art_base/zineb-sedira