CIDADE UM LIVRO ABERTO: O PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO COMO POTENCIALIZADOR DO ENSINO DE ARTE

ARTIGO DE Samantha Ávila Pinto Branga

Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG), mestre em História pela FURG, ambas as formações com ênfase nas linhas: educação patrimonial e arquitetura no ensino de arte, e o uso da fotografia como potencializadora do ensino de arte. Tem experiência no ensino de arte e de sociologia.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.6, Nº16, DEZ., ANO 2019
ARTE E EDUCAÇÃO

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo relatar os resultados alcançados em pesquisa acadêmica realizada para conclusão do curso de licenciatura em Artes Visuais, tendo como proposição investigar o papel da educação patrimonial como um possível potencializador da disciplina de arte, além de propor, por meio de práticas artísticas, provocações aos educandos alcançados com relação ao seu pertencimento frente ao que é considerado patrimônio público em seu entorno.

PALAVRAS-CHAVE

Ensino de Arte. Patrimônio Arquitetônico. Educação Patrimonial

ABSTRACT

The purpose of this article is to explain the results achieved in academic research carried out for the conclusion of the degree in Visual Arts, with the goals of investigating the role of heritage education as a potential promoter of the art discipline, besides proposing, through artistic practices, provocations for the students reached in relation to their belonging to what is considered public patrimony in their environment.

KEYWORDS

Art Teaching. Architectural Patrimony. Patrimonial Education.

A CAMINHADA 

A presente pesquisa é fruto do período em que esta autora cursava a licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande, enquanto bolsista no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID no subprojeto O Ensino das Artes Visuais na sociedade da informação e do conhecimento.

A proposta passou por fases e escolas diferentes. Este artigo se ocupa de (re)significar uma parte deste grande projeto que foi realizado com estudantes do ensino médio no Instituto Juvenal Miller, localizado no centro histórico da cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. As aulas eram dirigidas por cinco bolsistas, que contavam com a supervisão de uma professora do colégio e com a coordenação do PIBID Artes, pela Profa. Dra. Vivian Paulistch. O foco da pesquisa constituía imbricar o ensino da arte ao sentimento de pertença com relação ao patrimônio arquitetônico da cidade do Rio Grande, com base nos fundamentos da educação patrimonial.

A fim de proporcionar aos educandos um conhecimento mais aprofundado com relação às edificações culturais, cada bolsista realizou uma pesquisa significativa sobre uma ou mais presenças arquitetônicas da cidade. A esta autora coube realizar a pesquisa histórica e arquitetônica da Igreja Nossa Senhora do Carmo1, pesquisa vasta que foi apresentada de forma adaptada aos estudantes.

Assim, esta pesquisa caracteriza-se como um apontador da importância das práticas elaboradas no PIBID no ensino de Artes e as metodologias interdisciplinares que colaboraram para um ensino de arte transformador e reflexivo.

OS CAMINHANTES E OS SEUS PERCURSOS

O plano de trabalho envolveu vários períodos de aula dentro da disciplina de Artes, que estava sob regência da Profa. Débora Barnes, uma vez por semana em cada turma2, com dois períodos de aula de cinquenta minutos cada, entre os meses de abril e dezembro de 2012.

A faixa etária dos educandos que fizeram parte das aulas-oficinas era entre 14 e 16 anos incompletos. Para aplicar a metodologia patrimonial das oficinas, foi preciso considerar a idade dos educandos como uma informação relevante a fim de propor práticas artísticas que corroborassem e que fossem ao encontro dos interesses dos alunos.

Tendo em vista o exposto, uma das práticas elegidas para as aulas-oficinas foi a prática fotográfica aliada à pós-produção em ferramentas on-line de edição de imagem, considerando o título do subprojeto3 fundamentado também nos passos que levaram a sociedade a (auto) denominar-se “civilização da imagem”, como explica Kossoy (2002, p. 134)

A chamada “civilização da imagem” começa a se delinear de fato no momento em que a litografia, ao reproduzir em série as obras produzidas pelos artistas do princípio do Oitocentos inaugura o fenômeno do consumo da imagem enquanto produto estético de interesse artístico e documental.

Com este “bombardeio” de imagens, o papel da fotografia na educação se torna desafiador à medida que implica fazer uso de uma ferramenta que está extremamente presente no cotidiano dos discentes, que são receptores e produtores, fotografando com celulares em qualquer lugar e a qualquer hora. No momento em que este trabalho foi desenvolvido, o uso de smartphones já estava consolidado, no entanto, a utilização de aplicativos de edição de imagens e vídeo, e de redes sociais, como o Instagram , ainda não estava tão presente como está agora no cotidiano de crianças e adolescentes.

Ana Mae Barbosa (2010) por meio da metodologia Abordagem Triangular apresenta uma arte educação alicerçada em três ações: a criação, a leitura e a contextualização. E estas três ações apontam para o que Barthes (2006)4 pontua na relação entre indivíduo-fotografia, uma relação de identidade e revisitação. Frente a isso, aliamos esta prática ao entendimento do patrimônio coletivo como ferramenta de aproximação dos educandos com o ambiente escolar – que também é coletivo, mas que tem uma relação subjetiva para cada discente – e também com os bens culturais da cidade.

Ainda fazendo referência à proposta de Barthes quando este diz que “no fundo, a Fotografia é subversiva não quando assusta, perturba ou até estigmatiza, mas quando é pensativa” ( BARTHES, 2006, p. 47), percebemos que a fotografia é decisiva no processo de construção de um diálogo visual que influencie e desencadeie discussões sobre algum contexto social, por exemplo. Sendo assim, ela serve como forte aliada ao (re)conhecimento do patrimônio arquitetônico e cultural da cidade, fazendo a intermediação entre o patrimônio e o indivíduo.

Na primeira aula do cronograma planejado, realizamos atividades de reflexão a fim de que compreendêssemos o conhecimento que os educandos possuíam com relação ao conceito de patrimônio. Esta primeira parte da aula acabou por ser uma conversa bem prazerosa com os alunos. Culminou em um diálogo sobre a depredação do patrimônio público escolar, em que se revelou que muitos dos alunos o praticavam, riscando e quebrando classes e cadeiras da escola, e também se discutiu a importância do patrimônio no que tange o cultural tombado ou não por órgãos de proteção.

Concluídas as discussões, os educandos dividiram-se em grupos e foram convidados a fotografarem uns aos outros nos espaços com os quais mais se identificavam no colégio.

Após a prática fotográfica no espaço escolar, na sala de informática, os alunos utilizaram sites de edição de imagens para realizarem intervenções em suas fotografias. Em contrapartida às mídias on-line, na semana letiva que se seguiu, a prática artística escolhida para abordar o conteúdo foi a do desenho. Iniciamos com um diálogo acerca da história e contexto da fundação do Instituto Estadual de Educação Juvenal Miller, discussão que fluiu de forma mais profícua devido às reflexões que aconteceram na aula anterior de teoria patrimonial, sobre a importância da escola.

Em seguida, através da exposição dialogada, conversou-se sobre as obras do artista belga, Ben Heine. Embora desconhecido pelos discentes, o artista mencionado, criou obras que, na nossa percepção, são de uma linguagem artística de fácil relação com o imaginário dos alunos. Heine, no trabalho Pencil Vs Camera, produziu fotografias e, ao intervir com grafite e papel, acrescentava às mesmas ou a seu entorno uma realidade inventada. Assim, os alunos receberam impressas as suas fotografias, anteriormente trabalhadas em sites de edição de imagens da escolha de cada aluno, a fim de intervirem nas mesmas, inspirados no trabalho Pencil Vs Camera de Ben Heine.

Ao final da atividade os educandos produziram um texto reflexivo sobre as atividades realizadas nas últimas aulas e também acerca de sua relação com o I.E.E. Juvenal Miller, tal qual um memorial, que nos foi entregue ao final da aula.

Nas duas semanas seguintes, realizamos duas saídas de campo seguindo um roteiro pelas edificações arquitetônicas com presença histórica no centro da cidade, muitos deles estão localizados no entorno do colégio.

A cada edificação5 visitada, os alunos aprendiam um pouco sobre a história e arquitetura da construção. Muitos dos alunos não conheciam de perto os prédios visitados, o que já agregou valor à visita, proporcionando este conhecimento a cada educando. No encontro que se seguiu às visitações, os educandos aprenderam acerca da Arte Postal, prática inúmeras vezes considerável corriqueira, mas também desconhecida para muitos.

Após a exposição dialogada, na sala de informática, os alunos elegeram uma das edificações visitadas no centro histórico da cidade e iniciaram o processo de produção de um cartão postal no Paint. Esse software é uma ferramenta usada por muitos dos educandos para desenhar e/ou editar imagens. Os postais produzidos ilustravam o patrimônio cultural da cidade de Rio Grande e traziam informações sobre ele.

Para encerrar o cronograma de atividades, a prática artística escolhida foi o graffiti , que tem muita proximidade com a realidade de alguns alunos. Iniciamos com a apresentação do documentário Quem tem medo de Arte Contemporânea6, o que gerou muita discussão acerca do que pode ou não ser considerado arte , e assim centramos nossas discussões acerca da Arte Urbana focando na prática de graffiti em estêncil, bem como em artistas que dão significativas contribuições para esta prática artística, como os artistas Banksy e Os Gêmeos.

No encontro que se seguiu, os educandos deram início a produção do estêncil, com ilustrações do próprio colégio, Juvenal Miller. Transferiram a imagem para o papel onde seria cortado o molde, e, pouco a pouco, os alunos individualmente participavam do processo de desenho, recorte e aplicação da tinta spray sobre o molde de estêncil, em uma parede do pátio do colégio, previamente pintada de branco pelos professores-bolsistas.

A CHEGADA E AS SUAS POTENCIALIDADES

O Instituto Estadual de Educação Juvenal Miller está inserido no centro histórico da cidade, no entanto, ao por em prática as propostas discutidas abordando o patrimônio Rio-grandino, constatamos que, mesmo que os educandos transitassem ao redor das edificações históricas da cidade quase que diariamente, eles não conheciam o patrimônio arquitetônico presente no seu caminhar diário.

Temos ciência de que é um tanto utópico pensar que todo cidadão conhece as edificações que deram início ao processo de construção da cidade em que habita. As aulas confirmaram tal premissa. No entanto, foi surpreendente o interesse dos educandos em aprender e em conhecer o patrimônio cultural da cidade de Rio Grande. Até mesmo para aqueles alunos que nasceram em outros estados, como fora o caso de alguns que vieram do Rio de Janeiro, o interesse estava presente. Frente aisso, os relatos solicitados a eles, ao final das aulas, também são um demonstrativo e indício desse interesse:

Sempre é bom aprender um pouco sobre a cidade onde vivemos. Uma das curiosidades que fiquei sabendo sobre patrimônio é que as dunas da cidade fazem parte dos patrimônios da cidade. (P.G. Turma 101).

Aprendi muito com cada trabalho feito neste trimestre, além de aperfeiçoar meus desenhos aprendi um pouco da história de Rio Grande e da história da arte com tantos detalhes e riquezas do passado, gostei de saber tudo, aliás aprendi o que é tombado o que eu não sabia, gostei muito de saber um pouco de cada prédio histórico e conhecer eles por dentro […] e olhando detalhes que se eu olhasse pessoalmente não teria visto tanto detalhe bonito. (L. Turma 101).

Quando a aluna escreve que sozinha e pessoalmente não teria percebido certos detalhes do patrimônio cultural e que somente com as atividades realizadas em aula essas percepções foram possíveis, temos um vislumbre dos resultados alcançados a partir das atividades educacionais propostas.

O trabalho buscou utilizar elementos do cotidiano dos educandos, de forma a retirá-los do conforto, mas não excluindo os saberes e vivências que possuíam sobre o assunto. Trabalhou-se com o intuito de aprender arte, reconhecê-la no cotidiano e dar mais sentido aos conteúdos que precediam as práticas artísticas, a saber, a arquitetura e o patrimônio cultural da cidade.

Além disso, acreditamos que foi possível propiciar aos educandos a oportunidade de conhecer com mais profundidade o patrimônio de sua cidade. Esse fato responde uma das perguntas do problema de pesquisa, a qual se refere à relevância de apresentar este ensino aos educandos.

O pensamento de que “quem não sabe o que veio antes não sabe dizer adiante”, é tomado aqui como uma das justificativas para esta proposta de estudo, sobre a qual me debrucei por muitos meses. Repito: conhecer a própria história é um ato de cidadania. Saber o que o antecedeu a existência do indivíduo e o que por diversos fatores culminou na identidade de cada cidadão é muito importante para a compreensão do próprio indivíduo e do espaço que o rodeia. Logo, este ato contribui para o desenvolvimento de um indivíduo crítico e atuante na sociedade, além de disseminar as ações de preservação ao patrimônio cultural das cidades.

Pensamos que fazer parte do ensino de arte muitas vezes é mais desafiador que lecionar em qualquer outra disciplina, as tais chamadas “úteis” e “funcionais”, que ensinam a comprar o pão na padaria e não ser enganado, que ensinam a assinar o nome em um contrato, e etc. Porém, é em um desses momentos de desvalorização da disciplina que visualizamos seu poder transformador, a chance de mudar tais concepções. Kasimir Malevich (1910, apud RIBEIRO, 2002, p. 16) disse certa vez que:

É certo que, tanto quanto antes, o público continua convencido de que o artista cria coisas desnecessárias, inúteis; ele não pensa que estas coisas inúteis sobrevivem através dos séculos e mantêm-se “atuais”, ao passo que as coisas necessárias, úteis, não duram muito tempo.

Acreditamos que o processo educativo se torna possível a partir de uma relação dialógica entre professor e alunos e suas práticas e percursos. É como afirma Freire, “não há docência sem discência” ( 1997, p. 21-46) é uma relação dependente onde um contribui para o desenvolvimento e crescimento do outro.

Sentimos como se trabalhássemos em um rizoma que se expande a cada ação executada de forma a expandir também os resultados positivos, a isto caracteriza Gallo (1995) como educação menor, que segundo ele é:

rizomática, segmentada, fragmentária, e não está preocupada como nenhuma falsa totalidade. Não interessa à educação menor criar modelos, propor caminhos, impor soluções. Não se trata de buscar uma unidade perdida. Não se trata de buscar a integração dos saberes; importa fazer rizoma. Viabilizar conexões e conexões; conexões sempre novas. Fazer rizomas com os alunos, viabilizar rizomas com projetos de outros professores, manter os projetos abertos… (GALLO, 1995, p. 82).

É a isto que nos propomos; uma educação que não separe os conhecimentos, mas que os amplie; que não trabalhe em linha do tempo fechada, mas que de forma interdisciplinar crie rizomas, dispondo de inúmeras possibilidades e teias de conhecimento, pois assim é a vida; um cruzamento constante de conhecimento, ideias e fatos. A educação faz parte da vida e, portanto, não deveria ser abordada de forma a ser dissociada da mesma.

Com isso, há diversas possibilidades para um ensino qualificado de arte, transpondo as barreiras do desenho livre e da linha do tempo fechada, tão conhecido por mim devido à experiência discente durante a educação básica. Mais ainda, julgamos termos obtido êxito se tratando da junção proposta entre ensino de arte e patrimônio arquitetônico.

Acreditamos que esta proposta desencadeou uma mudança cultural e social na vida de cada educando que participou conosco desta formação. Permanece, para esta autora, a possibilidade de, no fazer docente, enxergar a cidade como um livro aberto: lócus de aprendizagem, o qual provê material e vivências suficientes para qualificar o ensino e contribuir para a formação intelectual e social dos educandos, bem como a (re)significação do patrimônio cultural da cidade onde vivemos e convivemos.

Notas de Rodapé

1   A Igreja Nossa Senhora do Carmo é uma das imponentes presenças arquitetônicas na cidade do Rio Grande que remonta o estilo de arquitetura gótica. A igreja teve sua pedra fundamental lançada no dia 16 de fevereiro de 1930, sua conclusão foi adiada devido alguns percalços, e sua inauguração aconteceu em 22 de abril de 1938.

2   Turmas alcançadas 101, 102, 104 e 106, em dois períodos de 45 minutos cada.

3   O ensino das artes visuais na sociedade da informação e do conhecimento.

4   Para Barthes (2006, p. 20) “a Fotografia é o aparecimento de eu próprio como outro, uma dissociação artificiosa da consciência de identidade.”

5   Mercado Público Municipal, situado na Rua General Osório s/nº, protegido e classificado como Edificação de Interesse Sociocultural, pela Lei Municipal 4556-90; Banca do Peixe contígua ao prédio do Mercado Público, com colunas de Ordem Toscana e de construção datada no ano de 1853; e Prefeitura Municipal de Rio Grande, tombada pelo IPHAE (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado), construção do séc. XIX.

6   Produzido em 2005 sob a direção de Cecília Araújo e Isabela Cribari, com duração de 26 min.

Referências Bibliográficas

BARBOSA, Ana Mae. Arte-educação no Brasil. São Paulo: editora Perspectiva, 2010. 

BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: Edições 70, 2006. La chambre Claire (Note sur la photographie). Tradução: Manuela Torres. 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

GALLO, Silvio. Educação Anarquista: paradigma para hoje. Piracicaba: Editora da Unimep, 1995. 

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

RIBEIRO, Maria Aparecida Guimarães. Concepções e Funções da Arte na Arteterapia. Dissertação (Dissertação em psicologia) – UCG. Goiânia, p. 16. 2002.

Lista de Imagens

1   Trabalho dos discentes

2   Graffiti finalizado. Fonte: Acervo PIBID Artes.