CURADORIA COLETIVA COMO ALTERNATIVA À NARRATIVA HEGEMÔNICA

TEXTO CURTO DE Taline Frantz

Bacharel em Filosofia pela PUCRS (2018) e mestranda em Filosofia da Arte pela University of Toledo.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.6, Nº16, DEZ., ANO 2019
ARTE E EDUCAÇÃO

RESUMO

O presente texto discute como dinâmicas hierárquicas de educação se estendem ao espaço de instituições culturais, principalmente museus, e como essas dinâmicas podem começar a ser superadas através da construção de narrativas coletivas.

Desde as discussões teóricas geradas pela virada educativa1, movimento que teve seu início na metade da década de 1990, que até o momento atual reverbera como crítica institucional e tem como propósito geral o entendimento crítico daquilo que nomeamos instituições culturais assim como seu papel educativo para com as comunidades em que estão inseridas –, foi possível perceber maior proximidade entre núcleos curatoriais e educativos em instituições culturais em nível mundial.2 O movimento de convergência e colaboração entre esses núcleos cria uma terceira abordagem chamada curadoria educativa, que aparece como alternativa institucional para a até então clara hierarquização de papéis que, em muitos casos, coloca até hoje a curadoria, parte responsável pela conceituação e montagem da exposição, como procedimento prévio à estratégia pedagógica. Essa hierarquização – que em um primeiro momento se mostra como escolha intuitivamente lógica, pois o conceito e arquitetação de um argumento (o da exposição, por exemplo) costuma ser concebido antes de sua apresentação – implica na expectativa do uso da pedagogia como tradutora (HOFF, 2013) desses argumentos para o grande público. Isso se dá através da mediação, função na qual são repousadas as expectativas de preenchimento de uma lacuna social existente entre instituições culturais e seus públicos, e não como parte integrada no processo de concepção daquilo que é assimilado como corpo de conhecimento gerado pelo processo curatorial.

Em uma palestra sediada e realizada pela plataforma e-flux, a pesquisadora e curadora Maria Lind aborda a diferença entre curadoria (o ato de curar) e curatorial um corpo de conhecimento e narrativa que se adquire através da pesquisa que antecede uma exposição. Lind explica que “curadoria seria justamente a modalidade técnica que conhecemos de instituições de arte e projetos independentes, e o curatorial seria uma presença mais viral que consiste em processos de significação e relações entre objetos, pessoas, ideias e lugares” (LIND, 2017)3

Se pensarmos que boa parte do que se adquire no processo curatorial extrapola aquilo que é transmitido através da relação entre textos curatoriais e disposição de objetos, pois há um processo de significação e construção de narrativa anterior àquilo que é exibido como resultado desse processo curatorial, é necessário reconhecer que esse espaço e processo é constituidor de conhecimento, pois combina objetos, contextos e significações que produzem experiências passíveis de compreensão.

Se as instituições culturais e, especialmente, os museus, são espaços que constituem conhecimento, é interessante pôr em questão de que forma esse conhecimento é constituído e por quem ele é criado. Quando observarmos as dinâmicas que tomam a maioria das salas de aula de todos os níveis de ensino no Brasil, vemos uma linha bem clara: a de professor, como porta-voz do conhecimento, conectada com a de estudante como receptor. Há espaço para fala por parte daquele que “recebe” o conhecimento, como forma de suavizar a dinâmica que, no final das contas, é hierárquica por conta da convenção de credibilidade daquele que compartilha o conhecimento adquirido em sua formação profissional. 

Espaços que extrapolam essa dinâmica, em ambientes escolares e acadêmicos, como grupos de estudo e pesquisa, frequentemente mais horizontais, não raramente acontecem fora dos horários de aula e dão conta de contemplar uma parcela minúscula do total de estudantes, pois poucos conseguem conciliar afazeres externos à sua educação. A consequência dessas dinâmicas vai além do desinteresse do estudante em qualquer que seja o assunto ministrado: ela molda o formato em que se acredita ser possível obter conhecimento. A superação de uma dinâmica colonialista, que ocorre através da noção de transferência de um conhecimento e uma epistemologia supostamente superiores para as partes que em tese carecem desse conhecimento, é imprescindível para a quebra da noção de que a educação precisa se dar nesses moldes. Como explica Freire (2002, p. 12) sobre a participação do formando na educação que recebe:

é preciso […] que o formando, desde o princípio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se como sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção.

Quando transferimos o olhar para o modo como o conhecimento é produzido em instituições culturais, elas raramente fogem dessa regra colonialista, no entanto, o processo se dá através de outras nomenclaturas, o que causa certa camuflagem. Isso se torna mais evidente quando pensamos o curador como professor, como a pessoa que cria, arquiteta e expõe as narrativas que criou para o público sendo este a representação do formando/estudante. No geral, a virada educativa repousa sua preocupação em democratizar a arte usando estratégias pedagógicas (como o ato da mediação, que é usado como ponte entre a mensagem da exposição e o espectador). No entanto, é nítida a necessidade de uma realocação de etapas na qual a democratização deve ser inserida, pois para escapar de uma lógica hierárquica, há a necessidade de abertura para a autoria de narrativas feitas pela comunidade “não artística”, em vez de uma mera tradução desses discursos por parte do curador/professor. Para além das conversas com os curadores, é necessário ir mais fundo e abrir a escrita de narrativas e significações para a comunidade.

Para isso, uma proposta de dinâmicas que escapam à lógica colonialista são as curadorias coletivas. No contexto brasileiro, essa iniciativa tem como um exemplo recente a exposição Textão, realizada de dezembro de 2018 a janeiro de 2019 no Museu da Diversidade Sexual, que uniu três coletivos de arte: Lastro Arte, Explode! e Lanchonete.org. A curadoria coletiva dessa mostra aparece como possibilidade de criação de narrativas que desviam a adoção de uma construção individual de significados e, com isso, engaja sujeitos que falam de suas experiências na escrita de suas próprias narrativas, envolvendo-os no processo de significação curatorial – e, portanto, na constituição de conhecimento através da arte e instituições culturais.

Notas de Rodapé

1   Ver Paul O’Neill & Mick Wilson, “Curating and the educational turn” (M. Londres: Open Editions; Amsterdam: De Appel, 2010).

2   Exemplos desse fenômeno em contexto brasileiro são as edições de 2007, 2009 e 2011 da Bienal do Mercosul. Ver Mônica Hoff, “Curadoria Pedagógica, metodologias artísticas, formação e permanência: a virada educativa da Bienal do Mercosul” em Pedagogia no campo expandido, Pablo Helguera e Mônica Hoff (Porto Alegre: Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul, 2011) pp. 113-123.

3   Palestra para a plataforma e-flux. Tradução e transcrição da autora.

Referências Bibliográficas

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002.

HOFF, Mônica. Mediação (da arte) e curadoria (educativa) na Bienal do Mercosul, ou a arte onde ela “aparentemente” não está. Trama Interdisciplinar, v. 4, n. 1, p. 69-87, 2013.

“Situating the Curatorial,” lecture by Maria Lind. e-flux videos. e-flux. 31 mar. 2017. 1h33min36s. Disponível em: https://www.e-flux.com/video/152657/e-flux-lectures-maria-lind-situating-the-curatorial/. Acesso em: 13 jul. 2019.

Lista de Imagens

1   Faig Ahmed (1982-), 10(-35), 2017, tecelagem e instalação, 15 x 3 m, Bienal do Mercosul, 2018.
2   Imagem de divulgação da exposição Textão. Disponível em: http://amlatina.contemporaryand.com/pt/events/textao-como-maquina-deguerra/. Acesso em: 13 jul. 2019.