DA BOCA PRA FORA

TEXTO CURTO DE Felipe Bernardes Caldas

Doutor em História, Teoria e Crítica da Arte pelo PPGAV-UFRGS. Atualmente professor substituto no Centro de Artes da UFPel.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.6, Nº16, DEZ., ANO 2019
ARTE E EDUCAÇÃO

RESUMO

A reflexão aqui proposta volta-se para a relação entre educação, arte e política, especificamente para a tensão entre discurso e prática no ambiente universitário.

O sol toca nossas orelhas em uma tarde de maio em Pelotas, Rio Grande do Sul. De braços dados e caminhando em um só passo, entoamos gritos de guerra contra os ataques do atual governo federal, que ameaça a universidade pública e tenta impor uma reforma da previdência que nos escravizará. Ocupamos as ruas e o largo na frente do Mercado Público, de pé e cantando. Entre um grito e outro, falamos da vida, de Dante Alighieri, dos concursos públicos, das trapalhadas do governo, da função da arte nessas circunstâncias. Construímos novas relações de afeto e enxergamos o outro em uma perspectiva diferente.

Arte, educação e política são instâncias inseparáveis para educadores e artistas, ainda mais quando falamos da prática docente universitária, na qual os artistas são também professores e responsáveis pela formação de novos docentes e artistas. A arte e a educação têm em si uma dimensão política intrínseca a suas manifestações: engajadas ou não, são políticas, pois compartilham e partilham modos de ver, de ser, de estar no mundo – de compreendê-lo e de significá-lo.

Embebido de Jacques Rancière (2009; 2012) e Luis Camnitzer (2018), fui convidado pelos discentes de Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas a ministrar uma palestra sobre arte e política na semana acadêmica. Tal convite aconteceu durante o ato do dia 15 de maio de 2019, e assim propus uma fala a 1 hora da madrugada. Com Luis Camnitzer, projetei uma “percepção estética” para essa fala, em um horário nada convencional, e com Rancière (2012) aprendi que o simples deslocar de horário possibilitaria reflexões de ordem política: pensar a estrutura da universidade, a maneira como nos apropriamos dos conteúdos, nossos hábitos e assim por diante. Um simples ato, o deslocamento temporal de um evento, já traria em si um dos principais argumentos para pensarmos a potência política da arte.

Recebi uma negativa dos discentes por motivos de segurança. Contra-argumentei que, se era seguro ir no bar ao lado do Centro de Artes, ou na balada nesse horário, por que não seria seguro ir à universidade? A resposta mais uma vez foi negativa. Não acreditei que um conjunto de estudantes engajado politicamente nas manifestações e nas instâncias universitárias, envolvido com a função política da arte, não percebesse a própria dimensão política do ato. Ponderei em não ministrar a palestra, pois achei a negativa de uma contradição assustadora. Por outro lado, se eu não a ministrasse, estaria me ausentando de minhas crenças como educador e artista. Então aceitei ministrar a palestra às 9 horas da manhã de uma quarta-feira, mas fui com o único propósito de fazer as seguintes perguntas a todos: como mudaríamos a situação do Brasil, se somos incapazes de vislumbrar outras perspectivas para além daquilo que está instituído, dos hábitos e normas vigentes? Se não conseguimos, por nossa própria vontade, mudar o horário convencional de um evento acadêmico, como vamos mudar as próprias instâncias acadêmicas, o mundo do trabalho, econômico e social? Como vamos mudar a nós mesmos? Esta situação me fez refletir sobre minha prática docente e sobre a discrepância entre o que a boca fala e o que o corpo executa.

Imersos em nossas rotinas universitárias, professores e discentes conclamam Jorge Larrosa, Richard Sennett, Deleuze, Foucault e muitos outros, e assim falamos do sentido de experiência que estaria em oposição à velocidade do ritmo de vida, questionamos a lógica capitalista e suas novas relações de trabalho, discutimos a dominação dos corpos, reivindicamos uma biopolítica e refletimos sobre os devires, além de acusarmos como o mundo exige uma ocupação em tempo integral, e que isso é prejudicial a nós mesmos. Afirmamos a necessidade de tempo, lazer, a inutilidade da arte, a consciência de nosso próprio corpo e uma perspectiva menos avassaladora, pela qual não sejamos apenas carvão para alimentar o fogo. No entanto, nos enchemos de tarefas, produzimos incessantemente, trabalhamos em tempo integral e assim nos tornamos homens e mulheres de vidas ocupadas e avessos à própria possibilidade da experiência, da contemplação da vida, da consciência de nosso corpo – logo, de vislumbrar outro mundo. Acabamos por reafirmar a lógica cultural do capitalismo dentro de nossas próprias práticas. O que a boca fala não é o que o corpo executa.

Falamos de como a arte tem um sentido político em si, independente do tema, pois ela nos suspende, nos leva à ficção e ao dissenso, com outras possibilidades de viver, pensar, ser e compreender o que nos cerca. Mas, na maioria das vezes, somos incapazes de gerar esse outro mundo dentro da própria universidade. Nossas palavras, por mais belas e encantadoras que possam vir a ser, são boa parte das vezes vazias, da boca pra fora, para o outro ver, ouvir, apreender o que nós, docentes, não conseguimos realizar em nossas próprias vidas. E por que não realizamos? Por dois motivos: pela estrutura universitária e suas obrigações embasadas em uma lógica diversa; e pelo desejo de visibilidade. Toda tentativa de mudar, pensar diferente e rever estruturas de poder, protocolos de trabalho e meios nos colocam em risco, em choque com diversas instâncias – às vezes com os próprios colegas. Nos fazem beirar abismos em que se adequar a estrutura, em vez de transmutá-la, é mais seguro, menos arriscado.

É preferível acreditar que fazemos o que fazemos pelo bem do outro, dos nossos cursos e discentes, mas, na verdade, fazemos o que fazemos, antes de mais nada, pelos nossos próprios interesses e pelos possíveis benefícios advindos. Certamente não são monetários, mas nós não trabalhamos simplesmente por dinheiro. Como comenta Giorgio Vasari, o único sol que nos aquece é a fama – eu diria: a visibilidade, as honrarias contemporâneas, o reconhecimento do outro. Tornamo-nos assim escravos de nossos desejos, o principal deles, o de sermos vistos, e assim o fazemos, pregando ao outro uma perspectiva de mundo diversa da atual, que somos incapazes de realizar em nossas próprias vidas. Estamos longe de sermos sábios, somos excelentes sofistas e formamos novos sofistas, cada vez mais perspicazes.

Referências Bibliográficas

CAMNITZER, Luis. O Ensino da Arte como Fraude. In: CERVETTO, Renata de; LÓPEZ, Miguel (org.). Agite antes de usar: deslocamentos educativos, sociais e artísticos. São Paulo: Edições SESC, 2018.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

______. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2009.

Lista de Imagens

1   Mobilização Estudantil e de Trabalhadores. Pelotas, 15 de maio de 2019. Fotografia: Ana Safons.

2   Mobilização Estudantil e de Trabalhadores. Pelotas, 15 de maio de 2019. Fonte: Assessoria ADUFPel. Disponível em: http://www.adufpel.org.br/site/noticias/em-pelotas-milhares-dizem-no-aos-cortes-na-educao. Acessado em: 16 de julho de 2019.