Entre 05 de junho de 1820 e 16 de maio de 1821, o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) visitou o Rio Grande do Sul naquela que seria considerada a primeira expedição botânica empreendida nestas terras. Em seus escritos, reunidos no volume Viagem ao Rio Grande do Sul,1 a paisagem da Província de São Pedro é monotonamente descrita, desoladora em seus infinitos areais e invariáveis planícies. Todavia, apesar do contraste à diversidade da floresta tropical e do clima mais aprazível que havia encontrado antes de aqui chegar, o viajante não se furtava de estabelecer comparações com sua terra natal, especialmente na descrição de rios — o que lhe evocava o sentimento da saudade. A construção da paisagem, em seus relatos, é composta menos por imagens de uma natureza intocada e selvagem, mas pela evocação da cultura manifesta no trabalho humano, na ocupação, no cultivo de pomares, lavouras e jardins, em acordo com uma tradição que olhava para o lugar do homem na natureza, tanto como ordenador da diversidade quanto como objeto de estudo.
As imagens que, não sem certo estranhamento, leio no relato de Saint-Hilaire configuram-se num processo de tradução que parte do meu olhar sobre o texto escrito e perpassa o percebido, o visto, o imaginado, o conhecido e o rememorado. Pouco consciente, tal percurso atravessa, num rastro intangível, as camadas de história que nos separam do século XIX: o lugar é o mesmo; a paisagem é continuamente outra. Também a descrição do viajante implica por si só um processo de tradução que, no entanto, vai em sentido inverso: a partir de um conjunto complexo de percepções e memórias, a tradução culmina no texto escrito, que já é outro no inevitável lapso entre o que toca o sujeito da experiência e as possibilidades expressivas da linguagem. Esse fenômeno (nada menos que criativo e fundante) foi reproduzido de forma emblemática por Charles Darwin (1809-1882) quando em seu diário enunciou “I think…” (Eu penso), seguido da representação gráfica daquilo que se projetou em sua mente como essencialmente original, mas ainda não traduzível em palavras. A imagem da árvore da vida contém em seus traços a representação da teoria da evolução concebida por Darwin a partir de deslocamentos e do olhar atento sobre adversidade da natureza. Apenas posteriormente elaborada e descrita, a imagem continua a reverberar no interior de estudos que atualizam e reelaboram a teoria nela contida.
Quase dois séculos após os deslocamentos e as coletas de espécimes de Saint-Hilaire, que culminaram na produção de importantes obras sobre a flora brasileira e de suas regiões mais meridionais, bem como registros sobre a fauna, a mineralogia e a etnografia do Rio Grande do Sul,2 a paisagem continua a ser reescrita em complexos processos que, ao considerarem camadas de apagamento e filamentos de história, criam mecanismos renovados de leitura, identificação e desejo de apropriação de espaços e lugares próximos ou distantes. Penso especialmente no trabalho poético Endereçamentos3 (2017) da artista, docente e pesquisadora Maria Ivone dos Santos, exposto no Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (MARGS) no contexto da mostra Pro Posições.4 Em sua pesquisa, a artista investiga contextos urbanos e expositivos por meio de caminhadas e linguagem verbal.5 Escrita, objeto, mapas, fotografias, vídeos e publicações são veículos de sua prática, na qual a cidade é pensada como lugar de apagamento.
Nesse sentido, ao ter-se voltado ao acervo da Pinacoteca Barão de Santo ngelo do Instituto de Artes da UFRGS, Maria Ivone selecionou, após intensa pesquisa, duas pinturas de paisagem: uma da autoria de Benito Castañeda, sem título, de 1947, na qual vemos em primeiro plano o topo de prédios, o rio, as ilhas e morros no horizonte; e outra, da autoria de Luís Maristany de Trias, Barco no Estaleiro, de 1939, que representa o navio Palmares ancorado sobre imensas toras de madeira, a água e, ao longe, a cidade. Contidas em molduras tradicionais neutras, as imagens foram fotografadas ao serem suportadas por um par de mãos sobre um fundo no qual se vê elementos vegetais como folhas de árvores. Tais composições são impressas, emolduradas e fixas à parede.
Ao lado de cada fotografia há um quadro que apresenta texto. Com estrutura semelhante à de uma carta, leio as indicações de lugar e data com alinhamento à direita: Porto Alegre, 20 de abril de 2017 e Porto Alegre, 12 de abril de 2017. Cada texto exprime uma descrição pouco convencional das pinturas de Castañeda e de Trias. Nada superficial, a narrativa leva-me para o interior da imagem representada, para além da dupla superfície fotográfica e pictórica. Mentalmente, reconstituo a vista das ilhas do Delta do Rio Jacuí a partir do centro de Porto Alegre, as casas baixas, os prédios em construção, o Instituto de Artes e o artista Castañeda que pinta. Reelaboro, a partir da descrição do quadro de Trias, o evento da enchente de 1941, as águas do Guaíba que invadem Porto Alegre, a ação do vento, os jornalistas que registram a calamidade; dois anos antes no estaleiro de Mabilde, na Ilha da Pintada, as máquinas e os guinchos, as estruturas metálicas, as fagulhas da solda, os trabalhadores; seu desabamento em 1936, os prejuízos da enchente de 1941, o drama dos operários e de suas famílias.
Como fragmentos de filme muito fugazes e anacrônicos, as projeções que elaboro não emergem unicamente das imagens ou dos textos produzidos pela artista, mas da confluência entre esses elementos, na maneira como se apresentam, sua forma descritiva, as percepções, memórias e desejos que em mim evocam, constituindo um complexo mecanismo de tradução que aqui novamente se desdobra sob forma terceira. De modo similar, porém inverso, os dados que a artista elabora em texto não estão contidos unicamente nas pinturas inventariadas ou em suas legendas, senão em outros textos e imagens componentes do arcabouço histórico (que exige escavação e leitura), assim como da memória, do imaginário e de suas percepções. As paisagens representadas por Castañeda (que olha da cidade para o arquipélago) e por Trias (que registra a cidade a partir das ilhas) têm em comum a água que se coloca como intermediária. Contudo, o rio que imagino, entre imagem e texto, é ainda outro. A imagem mental que crio, a partir das sugestões de Endereçamentos de Maria Ivone, opera como elemento de identificação e instaura desejo de apropriação do lugar próximo, a cidade e as ilhas. Reelaboro, então, a paisagem, composta por corpos orgânicos e corpos-máquina, empilhamentos e deslocamentos já bastante diversos daqueles descritos por Saint-Hilaire, Castañeda e Trias. Enquanto isso, o rio, que àquele evocava memórias saudosas, não cessa de correr.