DESCRIÇÃO

VERBETE DE JULIANA PROENÇO DE OLIVEIRA

Bacharel em Direito (2014) e em História da Arte (2018) pela UFRGS. Realiza pesquisa sobre arte contemporânea, memória e interdisciplinaridade sob orientação da Profa. Mônica Zielinsky.

RESUMO

A descrição é uma importante ferramenta, não apenas para artistas, mas para historiadores e críticos de arte. Usá-la, resistindo à tentação de buscar significados ocultos na obra de arte, nem sempre é fácil. Svetlana Alpers (1999) e Didi-Huberman (2010) comentam sobre como a necessidade de interpretar afetou, respectivamente, a pintura holandesa do século XVII e o minimalismo nos anos 1960. Arthur Danto (2005) e Susan Sontag (1987), por volta dessa década, divergem, colocando-se a favor e contra a interpretação. A chave talvez seja começar pela descrição, olhando para a obra, e não através dela, a fim de encontrar outros sentidos.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.6, Nº15, MAR., ANO 2019
VERBETES DA ARTE

Svetlana Alpers, no livro A arte de descrever, opõe a arte holandesa do século XVII àquela desenvolvida na Itália renascentista, com base no caráter descritivo da primeira e narrativo da segunda. Em suma, os “holandeses apresentam seus quadros como descrevendo antes o mundo visto que as imitações de ações humanas significativas” (ALPERS, 1999, p. 38). A prevalência da descrição nas pinturas gera grande desconforto na sua apreciação; o ímpeto de escavar um significado (de cunho moral) logo torna a superfície pictórica enganosa, e eis que a “mulher à janela lendo uma carta, de Vermeer, está envolvida em sexo extramarital” (ALPERS, 1999, p. 27). Afinal, é difícil crer que a representação pudesse ser, simplesmente, de uma mulher lendo uma carta. A resistência em aceitar-se a obra de arte como aquilo que se vê, e somente isso, ditou o tom de movimentos bem posteriores à Holanda seiscentista; por exemplo, o minimalismo nos Estados Unidos dos anos 1960 e 1970. Nas palavras de Didi-Huberman:

[…] Se fosse preciso resumir brevemente os aspectos fundamentais reivindicados pelos artistas desse movimento […] teríamos que começar por deduzir o jogo do que eles propunham a partir de tudo o que proscreviam ou proibiam. Tratava-se em primeiro lugar de eliminar toda ilusão para impor objetos ditos específicos, objetos que não pedissem outra coisa senão serem vistos por aquilo que são. O propósito, simples em tese, se revelará excessivamente delicado na realidade de sua prática. Pois a ilusão se contenta com pouco: tamanha é sua avidez: a menor representação rapidamente terá fornecido algum alimento […] ao homem de crença (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 50).

As motivações e os resultados dos artistas holandeses do século XVII são bem diversos daqueles dos minimalistas. Segundo Alpers, a descrição da natureza, para os primeiros, relacionava-se com o contexto social e com a cultura visual da época, sem se tratar de alguma bandeira ou programa; a inconformidade com o óbvio veio dos olhares formados na tradição italiana, que escreveram a História da Arte.1 E aqui se abre uma perspectiva interessante: a descrição não é uma ferramenta apenas de pintores, ela é também fundamental para historiadores e críticos de arte. Descrever uma obra consiste em formular um enunciado sobre ela, que pode ser avaliado como verdadeiro ou falso – o quadro de Vermeer mostra uma mulher lendo uma carta; já a atribuição de significado, de um enunciado que não é nem verdadeiro e nem falso, corresponde à interpretação – a carta foi enviada por um amante (MATTHEWS, 1977). De certa forma, a descrição é contra a longa linhagem de estudiosos da arte obcecados com significados ocultos e explicações mirabolantes.

A necessidade de interpretar, da qual foram vítimas os holandeses, seguia causando controvérsia à época do minimalismo. Arthur Danto, filósofo contemporâneo do movimento, asseverou que procurar “uma descrição neutra é ver a obra como uma coisa e portanto não como uma obra de arte, já que uma condição analítica do conceito de obra de arte é que deva haver uma interpretação” (DANTO, 2005, p. 189)2. Susan Sontag, por outro lado, e nesse mesmo contexto, sugere que a “interpretação […] constitui uma violação da arte. Torna a arte um artigo de uso, a ser encaixado em um esquema mental de categorias”, e propõe que “o que é necessário é um vocabulário – descritivo e não prescritivo – das formas” (SONTAG, 1987, p. 19 e 21)3.

Diante desses (quase) extremos, parecem mais razoáveis posições como a de Sherry Irvin, que espelha a de muitos autores atuais: a descrição constitui a base da interpretação (IRVIN, 2005), sendo uma etapa indispensável de análise da obra de arte. Muito, demais até, perde-se com a insistência em olhar através da obra, na busca de uma significação invisível; urge a generosidade de antes olhar, a fundo, para ela. A descrição auxilia nessa árdua tarefa.

Notas de Rodapé

1   “Desde a institucionalização da história da arte como disciplina acadêmica, as principais estratégias analíticas pelas quais somos ensinados a olhar para as imagens e interpretá-las – o estilo segundo Wölfflin e a iconografia segundo Panofsky – foram desenvolvidas tendo por referência a tradição italiana” (ALPERS, 1999, p. 28).

2   Primeiro, observo que o livro original foi publicado em 1981. Ainda, por mais que a posição de Danto seja um tanto radical, vale lembrar a ligação dela com o conceito de indiscernibilidade, que pautou boa parte da investigação do filósofo.

3   Já o texto de Sontag é, originalmente, de 1964.

Referências Bibliográficas

ALPERS, Svetlana. A arte de descrever: a arte holandesa no século XVII. São Paulo: Editora da USP, 1999.

DANTO, Arthur C. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 2010.

IRVIN, Sherry. Interprétation et description d’une oeuvre d’art. Questions d’interprétation, vol. 32, n. 1, p. 135-148, primavera 2005. Disponível em: id.erudit.org/iderudit/011067ar. Acesso em 26 de setembro de 2018.

MATTHEWS, Robert J. Describing and interpreting a work of art. The journal of aesthetics and art criticismo, vol. 36, n. 1, p. 5-14, outono 1977.

SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM, 1987.

Lista de Imagens

1 Johannes Vermeer (1632–1675), Moça lendo uma carta à janela, c. 1657–1659, óleo sobre tela, 83 x 64,5 cm, Gemäldegalerie Alte Meister, Dresden/Alemanha.

2 Donald Judd (1928–1994), Sem título, 1972, cobre, esmalte e alumínio, 91,6 x 155,5 x 178,2 cm, Tate Modern, Londres.