DESOBEDIÊNCIA URBANA – ESTRATÉGIAS, PRÁTICAS E TÁTICAS URBANÔMADES. ZONA URBANA / REGIÃO DE INTERESSE ESTRATÉGICO URBANÔMADE NA CIDADE DE PELOTAS (RS)

TEXTO CURTO DE ROGÉRIO NUNES MARQUES

Pesquisador, professor, jardineiro desobediente, urbanômade e artista contextual. Desenvolveu sua pesquisa de mestrado Desobediência Urbana: dispositivos e práticas urbanômades em Poéticas do Cotidiano e Processos Contemporâneos na Universidade Federal de Pelotas. Pratica a ideia de arte maloqueira – maloqueiragem/capoeiragem como contra-ataque e sabotagem dos sistemas colonizadores –, buscando identificar, discutir e reverter, a partir do pensamento e prática em arte, situações que denomina como totalitarismos urbanos, desencadeados por processos de reformulações espaciais e econômicas na cidade e suas consequências nas formas de uso não normatizadas do espaço público. Sua pesquisa aborda diluições entre arte, design, arquitetura e urbanismo, a fim de encontrar no espaço praticado soluções críticas para problemas reais usando a cidade como local de ação direta.

RESUMO

Em 2015, durante minha vivência na OCA (Ocupação Coletiva de Arteirxs), em Pelotas (RS), observei as práticas e táticas de sobrevivência desenvolvidas pelos urbanômades que compartilhavam conosco nessa okupa. Em uma proposição colaborativa de design social, organizei um mapa estratégico para essas práticas e táticas que se dão espontaneamente numa condição de desobediência urbana. Percebi que precisávamos preservar as informações que eram catalogadas, de modo que não fossem perdidas quando quem as catalogou seguisse viagem. Ao mesmo tempo que formam um conjunto de práticas-táticas que ajudam a definir minha pesquisa, essas informações também constituem um arquivo de desobediência urbana elaborado por incontáveis okupas e nômades contemporâneos. O mapa possibilita visualizar panoramicamente essas práticas e táticas na zona comercial e universitária de Pelotas – por isso, uma zona estratégica.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.5, Nº14, JUL., ANO 2018
PENSAMENTO E AÇÃO DE SUBSISTÊNCIA

Entre junho e outubro de 2015, vivi e colaborei na Ocupação Coletiva de Arteirxs (OCA), em Pelotas (RS), em uma residência-vivência experimental e artística que integrou o projeto coletivo Maloca.Lab (Laboratório de Práticas Experimentais UrbaNômades e outras Maloqueiragens http://malocalab.tumblr.com), que investiga e age no nomadismo contemporâneo, antiterritorial e anticapitalista. O Maloca.Lab é resultado de uma zona de contaminação artística estabelecida por práticas e procedimentos resultantes da convivência na OCA entre Cristiano Araujo, Mauricio Ploenals e eu, contando ainda com a participação de Renato Uveda, Vitor Pavan e Aerognomo Cavalheiro. De maneira contextual, relacional e colaborativa o processo constituiu-se com os habitués da OCA, na pororoca entre o povo nômade que passa por Pelotas e outros artistas de áreas tão pouco definidas quanto a nossa. Tinha Matinho, Carole, Helê, Brunaun, teatro, anarcofunk, o pessoal do Ócio, Bruna Oliveira, a trupe da videodança, mais outro povo da dança, uma geral da música, uma geral circense, as crianças do bairro, comparsas de outras okupas, os bandidinhos e os mocinhos do bairro com suas tretas e muitas outras tantas pessoas. O Maloca.Lab partiu desse grande encontro em que as práticas artísticas são pensadas horizontalmente, em sua estrutura contextual. As relações entre os trabalhos e o meio no qual são gerados e os consequentes lugares de ativação deram-se como proposições discutidas abertamente numa condição relacional.

Situada em um prédio da Universidade Federal de Pelotas que em 2014 estava ocioso, a OCA foi temporariamente cedida a um grupo de estudantes por ocasião de um evento artístico. Posteriormente o grupo e movimentos sociais da cidade precisaram ocupar de modo permanente o prédio devido à sua localização na zona portuária – uma necessidade de um movimento social de resistência diante da reestruturação do porto para escoamento fluvial da produção de eucaliptos pela indústria de celulose. Logo em seguida, ao menos em 2015 (período no qual vivenciei), a OCA tornou-se uma ocupação de tendência anarcolibertária, autonomista e auto-organizada por seus residentes a partir de práticas anticapitalistas, horizontais e de apoio mútuo.

Diferenciando-se de outras tendências, a OCA participa de uma rede internacional de ocupações que compartilham dos mesmos princípios políticos – por integrarem essa rede, as ocupações anarcolibertárias denominam-se com os termos okupa ou squat. A OCA abriga uma rede nômade de residentes que ao longo de suas viagens estabelece e fortalece laços entre diversas okupas, trocando informações e práticas para uma vida autonomista, sustentável e sobretudo desobediente. O trabalho colaborativo que apresento aqui busca organizar algumas dessas práticas em um mapa da zona de nosso maior interesse na cidade, o qual serviu como dispositivo de práticas e catálogo de informações para a OCA, trazendo também uma proposta de metodologia para outras okupas.

  1. Casas ociosas para possíveis ocupações: são abundantes no bairro portuário devido à especulação imobiliária e às normas de preservação do patrimônio histórico arquitetônico. Em sua grande maioria são edificações que possuem limitações legais quanto a eventuais intervenções. Isso leva os proprietários a abandonarem essas moradias, de modo que a falta de manutenção as faça ruir naturalmente, permitindo a venda dos terrenos para a construção de apartamentos ou casas. Esse golpe muito utilizado é uma forma de, a médio prazo, valorizar economicamente um terreno. Com possíveis sabotagens do proprietário nas estruturas, é possível fazer ruir uma construção do dia para a noite. Outras tantas casas estão abandonadas devido a processos jurídicos ou pelo desinteresse de herdeiros distantes. Essa situação acontece em uma cidade na qual o valor dos aluguéis triplicou nos últimos anos.
  1. Terrenos baldios: em sua grande maioria foram casas que ruíram devido ao “abandono” ou que foram incendiadas. Alguns terrenos baldios, por falta de opção, podem vir a ser novas ocupações. Outros foram catalogados com o objetivo de serem revertidos em hortas comunitárias. Mapear esses terrenos é uma maneira de observar quantas casas abandonadas já se transformaram em áreas prontas para venda, um processo que se dá de forma bem rápida. Uma casa que esteve ociosa durante anos, sem sinalização indicando uma intenção do proprietário em negociá-la, logo após ruir e ter seu terreno limpo e cercado, começa a dar lugar a um novo empreendimento imobiliário.
  1. Árvores frutíferas: em Pelotas existe uma grande variedade de árvores frutíferas, as quais fornecem uma das melhores, mais divertidas e seguras fontes de alimentação na cidade. Saber onde se pode colher frutas maduras facilita muito a vida não só do urbanômade, mas também de quem não perdeu o hábito da infância de saborear uma fruta na rua, direto do pé. Recentemente, depois de termos catalogado árvores nessa região, surgiram movimentos em diversas cidades que também fazem esse mapeamento, inclusive utilizando aplicativos para smartphones, como o projeto Inventário das Árvores e o Mapa das Árvores Frutíferas, entre outros, que permitem encontrá-las durante passeios ou caminhos rotineiros.
  1. Plantas alimentícias não convencionais (PANCs): existem poucas fontes seguras na cidade devido ao enorme risco de contaminação por urina, fezes de animais e esgoto. No entanto, são potenciais fontes de alimento se forem tomados os devidos cuidados. Além de fonte de alimento, as PANCs são observadas e catalogadas pelo urbanômade para troca de conhecimento ancestral. Cada nova espécie de matinho desobediente comestível aumenta consideravelmente as opções disponíveis de alimento durante uma viagem de bicicleta em uma zona rural, por exemplo. Além de comestíveis, as plantas são medicinais, de forma que conhecê-las, identificá-las e saber onde estão disponíveis expande a farmácia nômade. Para o resistente de uma okupa, a autocura – alimentação e técnicas antigas de cura – contra a indústria farmacêutica é uma luta e prática anticapitalista muito importante.
  1. Recicle de alimentos em estabelecimentos comerciais: o recicle de alimentos de feiras é a principal fonte de alimento das okupas e uma tática de luta urbana contra a indústria alimentícia e a exploração capitalista pelo trabalho. Trata-se da coleta de um alimento que iria para o lixo por ter perdido não suas qualidades nutricionais, mas seu valor monetário. Uma fruta marcada pelo toque ou uma folha de vegetal com vestígios de algum inseto costumam ser rejeitadas pelo consumidor. Uma refeição que custava determinado valor em um restaurante, logo após o expediente de atendimento do estabelecimento perde totalmente seu valor comercial. Na maior parte dos casos essa comida é desperdiçada, descartada. Geralmente o recicle de alimentos em estabelecimentos comerciais ocorre por meio de um acordo com proprietários também contrários a jogar alimento de qualidade no lixo. Em vez de inutilizar a comida que não foi vendida, esses comerciantes a distribuem, de maneira solidária e clandestina, a quem estiver disposto a recolhê-la.Vence-se a indústria alimentícia quando se consegue autonomia alimentar, algo muito difícil de se obter nas cidades. Por isso a guerrilha alimentícia é caracterizada pela compra mínima de alimentos e de seu aproveitamento máximo. Não ter que trabalhar por teto e comida liberta o urbanômade para a vida livre da exploração do tempo e do corpo pelo lucro do capital. Sem precisarmos vender horas de existência para um patrão lucrar com nossas vidas, sobra tempo para o livre jogo da invenção, da conspiração e do ócio.
  1. Recicle de alimentos em feiras: consiste em coletar hortifrutigranjeiros que foram machucados pelo toque, perdendo assim o atrativo visual que é parte de seu valor financeiro, ou que já não podem ser vendidos por estarem maduros – frutas macias como ameixas, bananas, caquis etc. – ou murchos – verduras em geral, devido à exposição ao sol ou ao prolongado tempo desde a colheita. Essa talvez seja a forma de recicle de alimentos mais popular e praticada nas cidades. Em Pelotas, a prática é abundante, porém é comum o feirante se recusar a doar as frutas e hortaliças descartadas, com o pretexto de que alimenta seus porcos com elas – o que raramente acontece de fato, visto que, ao final da feira, muitas são descartadas. O recicle é praticada um pouco antes do horário de encerramento da feira, a tempo de coletar os descartes que não serviram para alimentar porcos nem foram contaminados pelo lixo comum.
  1. Internet gratuita e banheiros públicos: duas necessidades básicas para quem está na rua. Ambas costumam ser oferecidas em “vendas casadas”. Para usar a internet acaba-se tomando um café ou consumindo qualquer outra coisa em um estabelecimento que ofereça o acesso. O caso da disponibilidade de banheiros públicos é bem mais grave porque seria um serviço de saúde pública que praticamente não é oferecido por nenhuma prefeitura. De certa forma, os banheiros públicos foram privatizados quando a disponibilidade de sanitários foi delegada exclusivamente ao comércio – o qual, por sua vez, costuma lucrar com a prestação do “serviço”, cobrando ou limitando o uso de forma exclusiva aos clientes. Quando restrito, é o mesmo caso da internet: para se ter acesso é necessário consumir. Não raramente se compra água quando, na verdade, precisa-se urinar. A maior parte dos lugares com internet e banheiros gratuitos foi cartografada em prédios da universidade – públicos, porém, de entrada restrita, devido a critérios de segurança que compartilham os privilégios e as consequentes desigualdades de uma sociedade baseada pela divisão de classes e pela discriminação racial e de gênero.
  1. Sítios para ações emergenciais diversas: locais com especificidades que os tornam suscetíveis a intervenções artísticas pelo que são ou por conta de seu contexto: um carro abandonado, um grande terreno que deveria ser uma reserva ecológica ou um microlote vago no centro da cidade – lugares nos quais gostaríamos de agir. Alguns desses sítios foram ativados por ações emergenciais no desenvolvimento de propostas do Maloca.Lab. Outros, ativados em ações posteriores, promovidas por grupos, artistas, ativistas e okupas. Muitos já eram alvo de interesse de alguns de nós que integrávamos o projeto.
    1. Sobre o processo de construção do mapa

O processo cartográfico deu-se de modo colaborativo. Boa parte das informações me foram passadas por urbanômades residentes da OCA. Outras descobri em caminhadas objetivas realizadas durante um mês, nas quais saí com um mapa e uma câmara para fotografar os lugares indicados no mapa (figura 1). Depois, transcrevia o nome dos lugares com uma máquina de escrever em uma ficha que, além das informações e da fotografia, continha um número. Esses números foram transcritos em um grande mapa, que ficava em uma parede da Sala Negra, indicando sua ficha correspondente. Cada número também era assinalado com um alfinete colorido. Os itens cartografados possuíam uma cor distinta conforme a categoria: verde para PANCs, rosa para casas ociosas etc. Dessa forma, podia-se identificar um conjunto por sua cor. Se o interesse fosse por um item específico em um grupo, bastava olhar o número e consultar a respectiva ficha ao lado do mapa.

As fichas foram datilografadas devido a parte da cartografia ser executada durante a ocupação de uma praça no movimento 2 do Maloca.Lab. Por conta disso foi necessário um processo que não dependesse de eletricidade, uma vez que lá não teríamos energia o suficiente para manter um computador ligado. As fotografias foram anexadas às fichas para facilitar a identificação dos lugares de interesse, tendo em vista que o mapa cumpre uma função prática: munir de informações o urbanômade que está chegando a Pelotas – um guia de sobrevivência urbana.

Parte da proposta inicial da minha residência consistia em solucionar um problema de design na OCA que facilitasse a vida de todos e ainda criasse um espaço que estivesse de acordo com as posições da okupa, onde ela pudesse se pensar. No início, pretendia projetar um mobiliário crítico num espaço já insurgente que permitisse o desvio: amar, sonhar e lutar. Acabei, no entanto, construindo uma peça (o mapa) que categorizo como design social por ser construída a partir de uma dinâmica de relações sociais e espaciais. De uma cultura urbanômade de resistência de okupas para outras okupas (bagagem do nômade). Da okupa para a cidade (prática de um ensinamento). Da cidade de volta para a okupa (bagagem do nômade praticada). Da okupa para outra okupa (cultura urbanômade).

Aprendo uma tática. Pratico essa tática. Ensino essa tática. Essa tática passa a ser praticada por outra pessoa. Essa pessoa ensina essa tática para outra pessoa em outra okupa – possivelmente, em outro país.

O mapa é uma proposta de metodologia, de organização para algumas dessas táticas e também de organização da OCA, de modo que as táticas possam ser praticadas. Saber onde tem um limoeiro permite colher um limão. Saber onde tem uma casa ociosa lembra que é preciso okupar e resistir. O que de fato acontece: a ideia do mapa se move no circuito das okupas.

Lista de Imagens

Rogério Nunes Marques, Desobediência Urbana – Estratégias, Práticas e Táticas UrbaNômades, Cartógrafo. Fotografia: arquivo maloca.lab. 2015.

2 e 3  Rogério Nunes Marques, Desobediência Urbana – Estratégias, Práticas e Táticas UrbaNômades, Casa Ociosa – ficha nº 82. Fotografias: arquivo maloca.lab. 2015.

4 e 5  Rogério Nunes Marques, Desobediência Urbana – Estratégias, Práticas e Táticas UrbaNômades, Terrenos Baldios – ficha nº 51. Fotografias: arquivo maloca.lab. 2015.

6 e 7  Rogério Nunes Marques, Desobediência Urbana – Estratégias, Práticas e Táticas UrbaNômades, Árvores Frutíferas – ficha nº 62. Fotografias: arquivo maloca.lab. 2015.

8 e 9  Rogério Nunes Marques, Desobediência Urbana – Estratégias, Práticas e Táticas UrbaNômades, PANCs – ficha nº 11. Fotografias: arquivo maloca.lab. 2015.

10 e 11 Rogério Nunes Marques, Desobediência Urbana – Estratégias, Práticas e Táticas UrbaNômades, Recicle de Alimentos em Estabelecimentos Comerciais – ficha nº 93, Recicle de Alimentos em Feiras – ficha nº 100. Fotografias: arquivo maloca.lab. 2015.

12 e 13  Rogério Nunes Marques, Desobediência Urbana – Estratégias, Práticas e Táticas UrbaNômades, Internet Gratuita e Banheiros Públicos – ficha nº 24, Fotografias: arquivo maloca.lab. 2015.

14 e 15  Rogério Nunes Marques, Desobediência Urbana – Estratégias, Práticas e Táticas UrbaNômades, Sítio para Ações Emergenciais Diversas – ficha nº 45. Fotografias: arquivo maloca.lab. 2015.

16  Rogério Nunes Marques, Desobediência Urbana – Estratégias, Práticas e Táticas UrbaNômades, Ficha – Sala Negra. Fotografia: maloca.lab. 2015.

17  Rogério Nunes Marques, Desobediência Urbana – Estratégias, Práticas e Táticas UrbaNômades, Detalhes. Fotografias: arquivo maloca.lab. 2015.

18  Rogério Nunes Marques, Desobediência Urbana – Estratégias, Práticas e Táticas UrbaNômades, Sala Negra. Fotografia: arquivo maloca.lab. 2015.