DISPOSITIVO
VERBETE DE LUCIANO FIGUEIREDO NASCIMENTO
Doutorando do Programa de Pós-Graduação de Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo
RESUMO
No texto a seguir, apresento em linhas gerais o conceito de dispositivo para Deleuze (1996) e Agamben (2009). Proponho, a partir dessas abordagens, uma reflexão sobre esse conceito aproximando-o também do campo da institucionalidade artística a partir da obra Projeto para uma pintura de Luis Camnitzer.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.6, Nº15, MAR., ANO 2019
VERBETES DA ARTE
O termo dispositivo é amplamente utilizado no discurso em torno do campo das artes visuais. Ele emerge como um conceito importante para o pensamento contemporâneo a partir da obra de Foucault, principalmente quando este passa a ter o poder como objeto central de sua pesquisa. Embora não tenha definido o termo dispositivo, Foucault (1984, p. 246), em uma entrevista, apontou para algumas de suas características fundamentais. Dispositivo seria então a rede que é estabelecida pela interação entre elementos heterogêneos que estão no mundo (instituições, arranjos arquitetônicos, moral…). Essa rede está sempre inscrita em jogos de poder.
Em um texto intitulado O que é um dispositivo?, Deleuze busca sistematizar esse termo a partir dos pontos delineados por Foucault. Nele, um dispositivo teria quatro dimensões: a da visibilidade, a da enunciação, a do poder e a da subjetivação.
“Pertencemos aos dispositivos e neles agimos” (DELEUZE, 1996, p. 83); assim, o que enunciamos depende das configurações do dispositivo em que estamos atuando, pois o que é compreensível depende das regras dos jogos de linguagem estabelecidos pela dinâmica que conforma o dispositivo, assim como o que é lançado à visibilidade e o que é deixado à sombra. E essas regras que vão conformando o visível e o dizível não são estabelecidas por uma razão transcendente, metafísica, universal, pois são sempre atravessadas por disputas de poder que envolvem interesses concretos e circunstanciais. O regime de poder que conforma o dispositivo tende, assim, a criar situações e noções de estabilidade e de sedimentação. Porém, ele é confrontado pela ação subjetiva que, desde dentro dele mesmo, cria novos enunciados e novas visualidades, esgarçando suas próprias regras – fraturando-o.
Em seu texto, Deleuze (1996) apresenta alguns exemplos de dispositivos: a Polis grega, a Cristandade, a Prisão, a Revolução Francesa e a Revolução Bolchevique. A partir desses exemplos, primeiramente, somos instados a pensar o que dentro de cada dispositivo desses é visibilizado e o que é invisibilizado, o que/quem atua como instância de poder e sedimentação e o que/quem age como força de criação e esgarçamento desses dispositivos a ponto de fraturá-los.
Giorgio Agamben (2009), em um texto também intitulado O que é um dispositivo?, dá ao conceito em questão um encaminhamento diferente ao de Deleuze. Para o pensador italiano, o dispositivo pode ser entendido em dimensões micro, cuja relação com o poder não é tão evidente. Ou seja, não somente, as prisões, os manicômios, e o pan-óptico podem ser entendidos como dispositivos, mas também o “cigarro”, os “computadores” ou os “telefones celulares”.
Nesse sentido seria interessante pensar em uma mixagem da abordagem agambeniana e deleuziana a respeito do conceito de dispositivo. Pensar o conceito desde suas dimensões macro à micro, concomitantemente, pode nos auxiliar nessa reflexão. Dessa maneira, proponho que pensemos, junto ao conceito de dispositivo, obras cujo sentido depende de uma compreensão das linhas de força que compõem as instituições do sistema das artes. Por exemplo, a obra Projeto para uma pintura (1976) de Luis Camnitzer.
Esse artista propõe uma obra que se utiliza da noção de projeto como uma forma de produção poética irônica. A ironia dispara uma série de possibilidades metalinguísticas. Um projeto, em geral, é uma produção que visa uma realização futura; mas no seu caso não. Há, portanto, uma desconstrução de uma forma transitória que passa a se estabelecer como uma forma “pronta” graças à moldura institucional que pode conferir ao Projeto para uma pintura (1976) o status de uma obra, como outra pintura qualquer. Porém, em certa medida, o Projeto para uma pintura (1976) não é uma pintura. Seu material precário faz retornar a ideia de transitoriedade e, ao colocar em xeque o seu status de obra, coloca também nessa chave de transitoriedade todas obras que estão dentro da “moldura institucional do museu”.
Ou seja, uma instância macro (o sistema das artes) impõe condicionantes de produção, circulação e leitura do trabalho artístico. Mas o artista, a partir de uma intervenção micro (uma obra mesmo de escala monumental é uma obra diante do sistema), pode confrontar essa lógica sedimentada dentro do macro. Pode-se questionar a eficácia desse confronto, mas não se pode deixar de reconhecer que ele existe. No caso da obra e do artista supracitados, esse confronto se dá por meio de uma obra que busca questionar um dos pilares do sistema das artes: os mecanismos de legitimação que, para funcionarem de forma plena, devem ser invisibilizados.
Assim, ao analisarmos uma obra junto ao conceito de dispositivo, é necessário pensá-la junto a uma instância mais complexa e considerar as reverberações entre estas “dimensões”.
Algo possível de considerar a partir dessa discussão, mas que deve ser ampliada pelo estudo detido de mais obras que vão nessa direção, é a ideia de que esse tipo de produção não está alheio à importância das instituições de arte, mas, ao contrário, objetiva agir sobre elas, instaurando processos de subjetivação que tencionam as linhas de força presentes nelas.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: ______. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p. 25-51.
DELEUZE, G. O que é um dispositivo? In: ______. O mistério de Ariana: cinco textos e uma entrevista de Gilles Deleuze. Lisboa: Passagens, 1996, p. 83-96.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
Lista de Imagens
1 Luis Camnitzer, Projeto para uma Pintura, 1976, off-set sobre papel milimetrado. MAC USP São Paulo. Fonte: PROJETO para uma Pintura. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra33584/projeto-para-uma-pintura>. Acesso em: 01 de fev. 2019. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.