FERIDA
TEXTO CURTO Elke Coelho
Elke Coelho nasceu em Junqueirópolis (SP), atualmente vive e trabalha em Londrina (PR). Pesquisadora, artista e professora no Departamento de Arte Visual da Universidade Estadual de Londrina. Possui doutorado em Artes Visuais pela ECA-USP (2014). Participa, desde 2005, de exposições individuais e coletivas. Organizadora, juntamente com Danillo Villa, do livro Cartografias Cotidianas (2011), e autora das publicações Coisas de Iracema (2017) e Outras coisas de Iracema (2020).
RESUMO
O presente texto relata o processo de constituição do trabalho Ferida (2013), realizado pela artista Elke Coelho. Os dados processuais apresentados pela artista/autora envolvem questões como objeto, tactilidade e acumulação
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº17, MAR., ANO 2022
TRABALHO EM ARTE E CUIDADO
A consideração inicial para a constituição de Ferida teve origem em um pequeno arranjo material pertencente a uma série anterior, Quando criança o verme sonhava em ser... Naquela situação, uma caixa circular de acrílico transparente abrigava uma porção de flores sempre-vivas vermelhas. Em Ferida, os elementos díspares são retirados de duas coleções em particular: a palavra ferida vem de uma coleção de termos cujo significado já carrega dados sensórios e a flor sempre-viva provém de uma coleção de objetos cujo corpo denota tactilidades.
Ferida e flor, em termos linguísticos, possuem significações distintas, no entanto, materialmente, têm aspectos similares, como a cor rubra de uma ferida ou de uma flor, o som agudo e estridente da vogal “i” contida no significante ferida e a característica pontiaguda da flor sempre-viva. A fragilidade e a aspereza, tanto da ferida quanto da flor, reúnem as duas, objeto real e linguagem, numa mesma existência. Ao aproximarem-se, flor e ferida, cria-se uma tensão entre palavra e aspectos plásticos. O trabalho toma essa constatação como bússola ao entender que o dado pungente da proposição poderia se concentrar, justamente, no campo dúbio gerado por essa tensão; precisaria apenas encontrar mecanismos capazes de distender essa tensão ao ponto de, inversamente, fundir os campos sensórios.
Por isso, as flores precisavam ser vermelhas – encarnadas. Não poderiam ser de qualquer espécie – as rosas, por exemplo, possuem pétalas macias e aconchegantes, aspecto táctil que cria distanciamento do entendimento corrente de ferida; precisava aproximar sem imitar ou ilustrar. Outro dado relevante, presente no metabolismo das rosas e da maioria das outras flores, é que seu aspecto físico altera radicalmente depois que elas são cortadas e separadas do corpo original. Com as sempre-vivas isso não ocorre. Por ser planta típica de áreas áridas, viva ou morta, com cor natural ou tingida, essa flor possui o mesmo aspecto: seco e delicado. No entanto, como fazer com que algo delicado também seja visceral? Distendendo a delicadeza até o ponto em que ela se torne absurda – foi dessa forma que a acumulação das flores tornou-se uma operação necessária. Arman dizia que “o impacto visual da acumulação, pela própria virtude da quantidade, muda a qualidade das coisas” (1998, p. 48).
Estando determinados a matéria-prima, o título e o dado cumulativo, as ações seguintes para a fatura desse trabalho foram de natureza artesanal: desagregar cada flor do seu caule para que este não interviesse no trabalho, carregando-o de sentidos outros que não convinham ao campo sensório que se desejava constituir. O método mais elementar e moroso foi o de maior eficácia: pressionar a unha do polegar entre a flor e o caule, para que esta se soltasse sem deixar evidências do outro e sem danificar as pétalas. Para o mesmo fim, estratégias outras foram tentadas sem surtir o efeito pretendido; a utilização de tesoura e outros instrumentos cortantes, por exemplo, desuniam várias flores, mas deixavam rastros. Depois dos experimentos, optei pela ação repetitiva citada primeiramente. Tomei como ofício diário desagregar flores: pela manhã, antes de sair e iniciar as atividades na universidade, lidava com as flores; à noite, quando retornava para casa, concentrava-me na mesma tarefa; nos finais de semana, horas a fio, quase que exclusivamente, manipulava as sempre-vivas.
Paralelamente ao ofício diário e disciplinado com as flores, procurava uma estrutura que as pudesse abrigar. O dispositivo de apresentação das flores deveria exibi-las ao máximo; sendo assim, a transparência se tornou uma premissa nessa busca. Também, pelo aspecto delicado da sempre-viva, o suporte deveria ter uma aparência discreta. Depois de pesquisar inúmeras variáveis, encontrei em uma loja de embalagens caixas de acrílico transparente com 6 x 6 x 2 cm. Comprei um pacote, coloquei flores e verifiquei: eram adequadas – a pequenez das caixas mantinha, inclusive, a possibilidade de o espectador notar – mesmo com a acumulação – as particularidades de cada flor.
Enquanto comprava flores (de acordo com o estoque das lojas que as comercializavam), retirava-as do caule, armazenava-as em recipientes plásticos e higienizava as caixas de acrílico com guardanapo de papel e álcool (a fim de eliminar qualquer resíduo ou sujeira), já pensava em como o trabalho iria se resolver: a quantidade de flores, o orçamento para a compra delas e a necessidade ou não da inserção de outros materiais.
De tempos em tempos as estruturas eram dispostas no chão de minha casa-ateliê e avaliadas segundo as intenções materiais explicitadas acima. A decisão de formar uma área com as caixas de acrílico se afirmou a partir da visualidade desses testes: a possibilidade de religar as flores a seu estado originário de campo e, ao mesmo tempo, tangenciar o estado em que as feridas se manifestam, por meio de áreas.
Para a primeira montagem efetiva do trabalho, na exposição Pós-Paisagem1, foram necessárias dezoito horas, agregando, com o auxílio de fita silicone, as 552 caixas de acrílico na parede. O desafio, desta vez, foi estabelecer uma ligação formal entre o espaço, que possuía como peculiaridade uma coluna entre duas paredes, e o dado sensório presente na obra – estrutura de caixas com flores. No início da montagem, o pensamento postulou a existência de duas paredes, mas, ao agregar parte das estruturas, percebi que poderia ter uma única parede, desde que utilizasse alguma estratégia que mantivesse a unidade das partes e, consequentemente, do espaço. A utilização de nichos, com espaços dividindo-os, replicou o efeito da coluna, o que se tornou parte da obra, nesse caso.
FERIDA
TEXTO CURTO Elke Coelho
Elke Coelho nasceu em Junqueirópolis (SP), atualmente vive e trabalha em Londrina (PR). Pesquisadora, artista e professora no Departamento de Arte Visual da Universidade Estadual de Londrina. Possui doutorado em Artes Visuais pela ECA-USP (2014). Participa, desde 2005, de exposições individuais e coletivas. Organizadora, juntamente com Danillo Villa, do livro Cartografias Cotidianas (2011), e autora das publicações Coisas de Iracema (2017) e Outras coisas de Iracema (2020).
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº17, MAR., ANO 2022
TRABALHO EM ARTE E CUIDADO
RESUMO
O presente texto relata o processo de constituição do trabalho Ferida (2013), realizado pela artista Elke Coelho. Os dados processuais apresentados pela artista/autora envolvem questões como objeto, tactilidade e acumulação
A consideração inicial para a constituição de Ferida teve origem em um pequeno arranjo material pertencente a uma série anterior, Quando criança o verme sonhava em ser... Naquela situação, uma caixa circular de acrílico transparente abrigava uma porção de flores sempre-vivas vermelhas. Em Ferida, os elementos díspares são retirados de duas coleções em particular: a palavra ferida vem de uma coleção de termos cujo significado já carrega dados sensórios e a flor sempre-viva provém de uma coleção de objetos cujo corpo denota tactilidades.
Ferida e flor, em termos linguísticos, possuem significações distintas, no entanto, materialmente, têm aspectos similares, como a cor rubra de uma ferida ou de uma flor, o som agudo e estridente da vogal “i” contida no significante ferida e a característica pontiaguda da flor sempre-viva. A fragilidade e a aspereza, tanto da ferida quanto da flor, reúnem as duas, objeto real e linguagem, numa mesma existência. Ao aproximarem-se, flor e ferida, cria-se uma tensão entre palavra e aspectos plásticos. O trabalho toma essa constatação como bússola ao entender que o dado pungente da proposição poderia se concentrar, justamente, no campo dúbio gerado por essa tensão; precisaria apenas encontrar mecanismos capazes de distender essa tensão ao ponto de, inversamente, fundir os campos sensórios.
Por isso, as flores precisavam ser vermelhas – encarnadas. Não poderiam ser de qualquer espécie – as rosas, por exemplo, possuem pétalas macias e aconchegantes, aspecto táctil que cria distanciamento do entendimento corrente de ferida; precisava aproximar sem imitar ou ilustrar. Outro dado relevante, presente no metabolismo das rosas e da maioria das outras flores, é que seu aspecto físico altera radicalmente depois que elas são cortadas e separadas do corpo original. Com as sempre-vivas isso não ocorre. Por ser planta típica de áreas áridas, viva ou morta, com cor natural ou tingida, essa flor possui o mesmo aspecto: seco e delicado. No entanto, como fazer com que algo delicado também seja visceral? Distendendo a delicadeza até o ponto em que ela se torne absurda – foi dessa forma que a acumulação das flores tornou-se uma operação necessária. Arman dizia que “o impacto visual da acumulação, pela própria virtude da quantidade, muda a qualidade das coisas” (1998, p. 48).
Estando determinados a matéria-prima, o título e o dado cumulativo, as ações seguintes para a fatura desse trabalho foram de natureza artesanal: desagregar cada flor do seu caule para que este não interviesse no trabalho, carregando-o de sentidos outros que não convinham ao campo sensório que se desejava constituir. O método mais elementar e moroso foi o de maior eficácia: pressionar a unha do polegar entre a flor e o caule, para que esta se soltasse sem deixar evidências do outro e sem danificar as pétalas. Para o mesmo fim, estratégias outras foram tentadas sem surtir o efeito pretendido; a utilização de tesoura e outros instrumentos cortantes, por exemplo, desuniam várias flores, mas deixavam rastros. Depois dos experimentos, optei pela ação repetitiva citada primeiramente. Tomei como ofício diário desagregar flores: pela manhã, antes de sair e iniciar as atividades na universidade, lidava com as flores; à noite, quando retornava para casa, concentrava-me na mesma tarefa; nos finais de semana, horas a fio, quase que exclusivamente, manipulava as sempre-vivas.
Paralelamente ao ofício diário e disciplinado com as flores, procurava uma estrutura que as pudesse abrigar. O dispositivo de apresentação das flores deveria exibi-las ao máximo; sendo assim, a transparência se tornou uma premissa nessa busca. Também, pelo aspecto delicado da sempre-viva, o suporte deveria ter uma aparência discreta. Depois de pesquisar inúmeras variáveis, encontrei em uma loja de embalagens caixas de acrílico transparente com 6 x 6 x 2 cm. Comprei um pacote, coloquei flores e verifiquei: eram adequadas – a pequenez das caixas mantinha, inclusive, a possibilidade de o espectador notar – mesmo com a acumulação – as particularidades de cada flor.
Enquanto comprava flores (de acordo com o estoque das lojas que as comercializavam), retirava-as do caule, armazenava-as em recipientes plásticos e higienizava as caixas de acrílico com guardanapo de papel e álcool (a fim de eliminar qualquer resíduo ou sujeira), já pensava em como o trabalho iria se resolver: a quantidade de flores, o orçamento para a compra delas e a necessidade ou não da inserção de outros materiais.
De tempos em tempos as estruturas eram dispostas no chão de minha casa-ateliê e avaliadas segundo as intenções materiais explicitadas acima. A decisão de formar uma área com as caixas de acrílico se afirmou a partir da visualidade desses testes: a possibilidade de religar as flores a seu estado originário de campo e, ao mesmo tempo, tangenciar o estado em que as feridas se manifestam, por meio de áreas.
Para a primeira montagem efetiva do trabalho, na exposição Pós-Paisagem1, foram necessárias dezoito horas, agregando, com o auxílio de fita silicone, as 552 caixas de acrílico na parede. O desafio, desta vez, foi estabelecer uma ligação formal entre o espaço, que possuía como peculiaridade uma coluna entre duas paredes, e o dado sensório presente na obra – estrutura de caixas com flores. No início da montagem, o pensamento postulou a existência de duas paredes, mas, ao agregar parte das estruturas, percebi que poderia ter uma única parede, desde que utilizasse alguma estratégia que mantivesse a unidade das partes e, consequentemente, do espaço. A utilização de nichos, com espaços dividindo-os, replicou o efeito da coluna, o que se tornou parte da obra, nesse caso.
Notas de Rodapé
1 Exposição coletiva Pós-paisagem. Divisão de Artes Plásticas da Casa de Cultura da Universidade Estadual de Londrina. Curadoria de Ricardo Resende e Danillo Villa. De 8 de março a 19 de abril de 2013.
Notas de Rodapé
1 Exposição coletiva Pós-paisagem. Divisão de Artes Plásticas da Casa de Cultura da Universidade Estadual de Londrina. Curadoria de Ricardo Resende e Danillo Villa. De 8 de março a 19 de abril de 2013.
Referências Bibliográficas
ARMAN, P. F; ABADIE, D. A arqueologia do futuro. In: ECO, Umberto et al. Arman. Paris: Galerie National du Jeu de Paume. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1998. p. 41-67.
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. São Paulo: Globo, 2009.
VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2007.
Referências Bibliográficas
ARMAN, P. F; ABADIE, D. A arqueologia do futuro. In: ECO, Umberto et al. Arman. Paris: Galerie National du Jeu de Paume. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1998. p. 41-67.
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. São Paulo: Globo, 2009.
VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 2007.
Lista de Imagens
1 Elke Coelho, Ferida (Série Quando criança o verme sonhava em ser…), 2012-2013, Flor sempre-viva, acrílico, palavra datilografada, papel e prego, 12,5 x 12,5 cm. Foto da autora.
2 Elke Coelho, Ferida, 2013, Acrílico e flor sempre-viva vermelha, 72 x 325 x 2 cm. Foto da autora.
3 Elke Coelho, Ferida (detalhe), 2013, Acrílico e flor sempre-viva vermelha. Foto da autora.
4 Elke Coelho, Ferida (detalhe), 2013, Acrílico e flor sempre-viva vermelha. Foto da autora.
5 Elke Coelho, Ferida (detalhe), 2013, Acrílico e flor sempre-viva vermelha. Foto da autora.
Lista de Imagens
1 Elke Coelho, Ferida (Série Quando criança o verme sonhava em ser…), 2012-2013, Flor sempre-viva, acrílico, palavra datilografada, papel e prego, 12,5 x 12,5 cm. Foto da autora.
2 Elke Coelho, Ferida, 2013, Acrílico e flor sempre-viva vermelha, 72 x 325 x 2 cm. Foto da autora.
3 Elke Coelho, Ferida (detalhe), 2013, Acrílico e flor sempre-viva vermelha. Foto da autora.
4 Elke Coelho, Ferida (detalhe), 2013, Acrílico e flor sempre-viva vermelha. Foto da autora.
5 Elke Coelho, Ferida (detalhe), 2013, Acrílico e flor sempre-viva vermelha. Foto da autora.