MEMÓRIAS DUMA BAOBÁ: UMA EXPERIÊNCIA DE AFETO E MEDIAÇÃO
ARTIGO Isabel Cristina Oliveira Caldas & Prof. Dr. Francisco Gaspar Neto
Isabel Cristina Oliveira Caldas
Mestranda do PPGARTES UNESPAR, na linha de pesquisa Modos de Conhecimento e Processos Criativos em Artes. Pós-graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Universidade Positivo (2015). Graduada em Licenciatura em Teatro pela UNESPAR/FAP (2012). Atriz, professora da Rede Municipal de Curitiba.
Prof. Dr. Francisco Gaspar Neto
Doutor em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC, 2016). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2005) e graduado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO, 1993). Professor Adjunto A da Universidade Estadual do Paraná/ Faculdade de Artes do Paraná. Pesquisador associado ao AND_Lab | Arte-Pensamento e Políticas da Convivência.
RESUMO
Este artigo descreve o experimento artístico “Memórias de um Baobá” da Coletiva Preta de Teatro ÈmíWá, ocorrido em novembro de 2020, em formato remoto. O texto discute as intersecções entre as epistemologias negras e a ideia de “aquilombamento” a partir da experiência da mediação como projeto político de direito à subjetividade e colaboração em processos criativos para a democratização do acesso à criação e fruição da arte.
PALAVRAS-CHAVE
Teatro Negro. Memória. Identidade. Mediação teatral.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº17, MAR., ANO 2022
TRABALHO EM ARTE E CUIDADO
Vivemos um momento de reivindicação da valorização das epistemologias da população negra no Brasil. Nas últimas décadas, surgiram muitas discussões sobre a questão no campo da sociologia e também das artes, com o crescente número de coletivos de teatros pretos, que assim se autodeclaram. Neste contexto, a Coletiva Preta de Teatro ÈmíWá nasce em 2018, em Curitiba, resgatando a ideia de “aquilombamento artístico”. Esse agenciamento de artistas pretas(os) vem transitando na perspectiva de levar à cena outras subjetividades, discutindo a visibilidade desses corpos negros e valorizando suas narrativas e escrevivências1 como táticas contra a ideologia de embranquecimento da população brasileira no âmbito estético e cultural.
Curitiba, a capital do Paraná, cidade onde atua a Coletiva ÈmíWá, não apenas participa dessa realidade nacional como também é uma das cidades na qual o embranquecimento estético é mais evidente. Tal discurso se sustenta no imaginário construído, de que por aqui não passaram africanos em situação de escravidão (e que por isso não haveria número significativo de pessoas negras na região) e, na afirmativa eugenista de que suas positividades repousariam sobre as origens europeias. Diante da privação de um lugar na história que visibilize as presenças negras, cabe a nós, pesquisadores, atores sociais, comunidade em geral e artistas atuarmos para promover a valorização e o reconhecimento da presença da população negra em Curitiba.
O experimento teatral “Memórias duma Baobá2” está ancorado nesse movimento estético-político de resgate de memórias, saberes, descobertas, anseios e histórias a partir da percepção de mulheres negras. Sua elaboração pretendeu reconhecer que todas as identidades estão situadas no tempo e no espaço simbólico, com panoramas próprios das vivências particulares desse grupo. Sobre esse aspecto Hall (2019), observa que as identidades
[…]têm aquilo que Edward Said chama de suas “geografias imaginárias” (1990): suas “paisagens” características, seu senso de “lugar”, de casa/lar, ou heimat, bem como suas localizações no tempo – nas tradições inventadas que ligam passado e presente, em mitos de origem que projetam o presente de volta ao passado, em narrativas de nação que conectam o indivíduo a eventos históricos nacionais mais amplos, mais importantes (HALL, 2019, p. 41).
O experimento em análise navega a partir da proposição de doação de memórias, solicitadas a mulheres negras, na investigação sobre as epistemologias da identidade da população da diáspora negra e na recuperação desse movimento narrado por Hall, a ligação entre passado e presente na projeção de futuros nesse espaço/tempo simbólicos. Parte dessas mulheres faz parte de um grupo de WhatsApp chamado “Casa das Pretas”, mobilizado pelas questões da negritude em Curitiba. Entre as doações estavam as memórias de infância, conselhos de avós e mães, provérbios, saudades que consolidaram as identidades individuais dessas mulheres e, que se tornam memórias coletivas, na medida em que esses corpos têm em comum a condição subalterna, pois, foram e são submetidos ao racismo sistêmico e estrutural na sociedade brasileira.
Assim como a árvore mítica nativa da região árida do continente africano, o Baobá, considerado sagrado pelos praticantes do candomblé, como símbolo de conexão entre o mundo material e o mundo sobrenatural, essas memórias, revelam as vivências corporificadas na oralidade dos relatos, o elo entre o ontem, o hoje e o amanhã, a ancestralidade presente.
A roda
Ao iniciarmos o processo de elaboração da obra experimental, partimos do princípio da circularidade – parte da cosmovisão africana e afrodiaspórica no Brasil – em sua composição, compreendida aqui como princípio de roda: a relação horizontalizada na concepção da obra artística. A escolha teve o objetivo de tentar desierarquizar as relações estabelecidas no âmbito teatral, assim, quem escreve, quem atua, quem ilumina, tem a preocupação de valorizar a promoção das vozes de cada uma das envolvidas, corporificando as potencias de cada contribuição.
O ponto de partida foram as discussões que envolviam o apagamento e recuperação e/ou reinvenção de memórias de mulheres pretas promovidas dentro do grupo “Casa das Pretas” e de suas articulações políticas, sociais e estéticas. A partir daí, compartilhei áudios de memórias de mulheres da minha família com o jovem dramaturgo Carlos Canarin, que inicia o processo de escrita desse conteúdo, imprimindo uma grafia estética às narrativas compartilhadas. A emoção nesse momento de corporificação escrita dos relatos foi surpreendente. As histórias narradas ganharam contornos estéticos que escapavam do campo individual, tornando-se agora, experiência coletiva recriada.
Entendendo a atriz como esse corpo em encruzilhada, como espaço “do encontro e desencontro de trânsito e deslocamento, passagem, interseção, mediação, entrecruzamento” (ALEXANDRE, 2017, p. 57-58), essas histórias/relatos foram tensionadas na escolha estética da performance-experimento, ora representando elementos da narrativa, ora trazendo essas vozes com trechos dos áudios recebidos. A atriz, como as mulheres negras, era o elemento de preservação e disseminação das memórias, um Baobá. Uma atriz-Baobá, responsável por fazer a conexão entre o mundo sobrenatural e o mundo material, a realidade e a memória.
O segundo momento foi o encontro, algumas mulheres negras foram convidadas para o evento que aconteceu em plataforma on-line intitulado “Doação de Memórias”. Lá, as mulheres foram incentivadas a pegar um chá, um café, um bolo, um aconchego afetivo e prestigiar o experimento, podendo inclusive interferir na encenação com a contribuição de uma canção, um som, um movimento e, ao final da apreciação, um bate-papo foi aberto para que compartilhassem as implicações da experiência em suas próprias memórias. Por mais de uma hora, a troca de cheiros, sons, canções, histórias e gestos, ocuparam o encontro. Uma saudação à ancestralidade, revitalizando as presenças dos que nos antecederam: mães, avós, tias. O reconhecimento dos saberes, sabores e conhecimentos apreendidos na relação com a força ancestral atualizada em nossas existências.
O próximo movimento foi o recebimento das doações de memórias dessas mesmas mulheres, novamente através de áudios e a inserção desse material na dramaturgia. Camila Cardoso, produtora de casting, doou a seguinte memória:
A minha memória é sobre a minha vó.
Toda vez que eu penso na minha vó me vem o rostinho dela,
perdi a minha vó há quase dez anos já…
Ela era mais uma mãe para mim.
Então toda vez que eu lembro dela bu me emociono…
É engraçado porque eu lembro do cheiro do cabelo dela,
do cheiro da pele dela, eu lembro do cheiro do colo dela.
E lembro das musiquinhas que ela cantava pra mim quando eu era pequena.
E depois que eu cresci, que tive filhos,
as mesmas musiquinhas que ela cantava para mim, ela cantava pros meus filhos.
A música quase não tinha letra,
era mais um resmungado com uma melodia doce da voz dela.
Então essa é a minha memória: minha vó, Dona Edite.
Me faz muita falta.
Na sequência do áudio, ela compartilhou o resmungo em uma vogal melódica de sua avó, com a voz embargada de afetividade e revelando os resmungos de muitas avós pretas, o cheiro de lenços que enfeitavam e protegiam as cabeças brancas de muitas que nos geraram, criaram, embalaram e embalam nossas existências.
A memória é patrimônio, na medida em que engloba tudo aquilo que herdamos nos campos culturais e sociais em contextos específicos que nos impregnam de sentidos. É a herança do passado para o presente e o futuro que contribuem com a permanência e a identidade da cultura a que se pertence, é um bem imaterial. Na medida em que traz em si as várias camadas que se articulam na constituição de uma parcela da população, a memória deve ser encarada como patrimônio cultural do nosso povo. A linguagem “tem a dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (Kilomba, 2019, p. 14) e desse modo nos informa quais as vozes que devem ou não ser ouvidas.
Vale ressaltar que a proposição desse experimento artístico, ensaia romper com o sentido da palavra patrimônio como nos apresenta Coutinho (2011, p. 1109) “do grego pater, que significa pai”, ou seja, a herança, o legado patriarcal. Como aqui, procuramos revelar os legados dessas mulheres que, de modo geral, são as bases estruturais e econômicas de suas famílias, entendo como mais apropriado dizer, que nesse caso a memória compartilhada por essas mulheres negras, é matrimônio.
Ousaria dizer que a herança mnemônica das vivências da população negra está arquivada e é compartilhada a partir das relações dessas mulheres com as suas famílias estendidas – filhos, sobrinhos, afilhados, filhos de santo. Estas, que são o arrimo de suas famílias. O sentido de grafar tais narrativas é colocá-las no estatuto de bem cultural matrimonial, como argumenta Martins (2003, p.64) “a memória, inscrita como grafia pela letra escrita, articula-se assim ao campo e ao processo da visão mapeada pelo olhar, apreendido como janela do conhecimento” e, ampliar essas narrativas para o campo estético da cena, é também, reconhecer-se como sujeito produtor de subjetividades e afetos culturais, na medida em que essas histórias são corporificadas em um espaço/tempo artístico. A memória, constituidora de identidades, está estruturada como a linguagem e, na linguagem está a possibilidade de “assumir a identidade da cultura” (FANON, 2008, p. 15).
Isso significa evidenciar, através da arte, a profundidade, as estesias e as táticas de sobrevivência estruturadas por um grupo, que, mantido propositalmente à margem, recria, inventa e elabora suas micropolíticas de sobrevivência. A narrativa da militante e professora aposentada Will Amaral, aponta para as dinâmicas dessa realidade
eu perdi minha mãe faz oito anos, perdi meu filho faz três.
quando eu era adolescente a minha mãe reunia sempre a família,
a minha mãe sempre gostou de uma família reunida,
de gente né? e eu me lembro bem que nós nos reuníamos,
e a minha mãe gostava de cantar, e as vezes a gente desafinava
e ela batia as unhas, fazia a gente parar, e ela cantava:
“de noite eu ando a cidade a me procurar sem te encontrar”
e ela cantava muito bem, e eu fiquei me lembrando também,
de quando eu era bem pequena, devia ter uns cinco, seis anos,
ela levantava muito cedo pra ir trabalhar, tava escuro ainda,
e ela me acordava e eu ficava deitada na cama enrolada nas cobertas,
e ela colocando casaco, me lembro bem, ela tomava tabuada de mim.
3 vezes 7? 5 vezes 3? E foi assim que eu aprendi a tabuada.
E nesse decorrer de lembrança, me lembrei do meu filho.
Eu trabalhava muito. Sabe que mulher preta tem que trabalhar muito sempre né?
Eu trabalhava muito muito muito,
e aos sábados eu pedia pro meu filho me passar as tarefas dele né,
o que ele fez na escola e tal,
e eu pedia pra ele ler porque eu já não aguentava mais de sono,
e eu meio que dormindo, eu dizia pra ele ler pra mim, e ele lia,
de vez em quando eu acordava assustada: como é que é? não entendi!
eu no quarto e ele na sala, e ele achando que eu tava prestando atenção,
e assim meu filho me fez aprender,
minha mãe me fez aprender,
e isso aquece o coração da gente né? alivia, conforta.
a gente que é mulher preta, a gente tem luta né?
Se retirarmos os indicativos de que essa memória se passa num tempo ido, facilmente encontraremos grande parte da população feminina preta potencialmente representada por ela. Ela é o arquétipo atualizado na mulher negra contemporânea, que se desdobra para dar conta da maternidade, do trabalho e das questões da casa – tudo ao mesmo tempo – sob a pressão de garantir a sobrevivência e o progresso de seus ascendentes. É uma narrativa que dialoga com aquela da mãe que necessita levar junto seu filho pequeno para o trabalho, para atender as necessidades de manutenção do lar de sua patroa. Como no caso Miguel, que ocorreu em 02 de junho de 2020, em Recife, no qual Mirtes, a mãe, trabalhando em meio à pandemia, deixa o menino de cinco anos sob os cuidados da patroa, Sara Corte Real, enquanto levava o cachorro da patroa para passear e se depara com a criança morta, após cair do nono andar do prédio de luxo.
O relato de Will “eu pedia pra ele ler porque eu não aguentava mais de sono… e ele achando que eu tava prestando atenção”, referindo-se há pelo menos duas décadas, talvez pudesse ter sido dito pelas escravizadas representadas na obra “um jantar a brasileira” de Debret: “eu lhe cantava cantigas de ninar antes de mamar porque minhas tetas já não suportavam mais… e ele achando que eu o estava afagando”. Ou como se a mãe de Miguel dissesse “e ele achando que eu estava prestando atenção, mas eu não aguentava mais de cansaço”.
Três temporalidades distintas com a mesma necessidade de sobrevivência. E não considerar isso como matrimônio é permitir que essas histórias continuem se repetindo como se fossem inéditas ou naturalizáveis. O que é uma babá acompanhando os filhos da patroa em uma festa, quando seus filhos jamais entraram em um daqueles buffets? O que é, uma funcionária da limpeza de uma escola particular, quando sequer consegue vaga em uma creche pública? Quantas estratégias são lançadas? Quem são essas mulheres? E quantas vezes se veem representadas na arte com subjetividades expressivas, famílias, existências plenas?
As formas de apagamento de memórias, as violências físicas, as delimitações de espaços de ocupação dos corpos pretos, a desvalorização dos traços culturais e das epistemologias da população negra no Brasil, bem como nas Américas, atuaram como estratégia de dominação dos colonizadores europeus em suas colônias. Nesses territórios, o racismo desempenhou um papel essencial na apropriação dos corpos escravizados tanto no trato sociopolítico, quanto na internalização da superioridade do colonizador em relação aos colonizados. Durante todo o processo colonial e estendendo-se até os dias atuais, o racismo antinegro nas Américas (e aqui, faço um recorte, no Brasil) imprimiu-se de maneiras diversas e sutis. O racismo explícito durante o período colonial, onde os corpos pretos não passavam de instrumento objetificado de trabalho, se mascara hoje, na falsa ideia de igualdade racial sob a égide meritocrática de que todos somos iguais, de que temos os mesmos direitos e oportunidades e que o progresso, é fruto dos esforços individuais. Entretanto, ao revisitar a história sobre uma ótica descolonial, evidencia-se que a possibilidade de ascensão da população preta mantém-se quase que utópica, na medida em que a ela ainda são reservadas as piores funções no mercado de trabalho e os menores salários, os espaços da cidade com menores infraestruturas, a violência contra sua juventude, os menores investimentos em educação, saúde e acessibilidade. Na formação dessas mulheres, a violência desses discursos surge como fantasmas para uma vida inteira, conforme lembrado na memória da professora e pesquisadora Genice:
“Eu… tenho a lembrança de que, desde pequena a patroa branca da minha mãe, me orientava a… me esforçar! Ela dizia que… por conta da minha cor, eu deveria sempre me esforçar em ser a melhor, porque onde houvesse uma oportunidade… que eu fosse disputar… uma vaga de emprego ou algo parecido, eu teria que ser muito melhor do que os outros candidatos brancos… Na verdade eu não entendia muito… o que ela estava querendo dizer… porque …com o passar do tempo… dentro da minha família… eu não me percebia como negra. Porque minha mãe… e minhas tias tinham a pele mais… retinta. E a minha… eu era chamada de moreninha… Minha avó também! Ela… era filha de bugre… que hoje eu sei que é indígena com italiano. Então a sua pele era um tom mais clara do que a das próprias filhas… Mas, me acompanhou essa questão do estudo… e que tem que ser melhor, de que tem que sempre ser melhor… e se esforce! e se esforce! E isso me perseguiu e me persegue até hoje. Tudo o que eu procuro fazer, eu tento fazer o melhor possível. E me cobro também, bastante… E muitas vezes essa busca por fazer o melhor acaba nos paralisando…”
Dialogando com Lélia Gonzales (1988), enquanto em alguns países o racismo explicitou abertamente os espaços reservados aos negros, através do regime de segregação racial – o apartheid – na América Latina temos como característica o “racismo por denegação”, ou seja, o racismo disfarçado pelo mito da igualdade racial. Ambas as faces do racismo, aberto ou por denegação, foram e são táticas que objetivam a exploração e a opressão. Contudo, diante do racismo aberto, é notável que seu efeito sob os grupos discriminados fortaleceu as identidades raciais (na medida em que não se sobravam dúvidas sobre o que os separa nos espaços), visto que essa certeza permitiu a articulação de outras formas de viver no interior dessa sociedade (a exemplo das conquistas do Movimento Negro nos Estados Unidos). Enquanto no racismo por denegação, o discurso igualitário mantém veladas as estratégias de manutenção das relações de poder e segregação, impossibilitando esses grupos de compreender as sujeições de suas existências e consequentemente a tomada de posições políticas e sociais, na luta contra o esmagamento de suas subjetividades. Diante disso, percebemos no relato de Genice, a articulação do movimento de negação de suas reais origens, a negação de sua própria imagem. Para Gonzalez:
O racismo latino-americano é suficiente sofisticado para manter índios e negros na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia de branqueamento. Veiculadas pelos meios de comunicação de massa e pelos aparelhos ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores do Ocidente branco são os únicos verdadeiros e universais. (GONZALES, 1988, p.73).
No entanto, é preciso considerar as táticas de manutenção da cultura africana na diáspora. Segredados e camuflados na linguagem do colonizador, os saberes dos africanos escravizados foram transmitidos e adaptados à realidade de seus ascendentes nas ações dos terreiros, nas rodas de capoeira, nas favelas, nas escolas de samba, nos provérbios, nos chás, nas quituteiras, enfim, nas gingas dos corpos pretos. Esses saberes foram mediados por avós, mães, parteiras, mães de santo e o nosso país tem na base da cultura a herança dessa malemolência. Os valores do Ocidente branco não foram completamente absorvidos nos becos das nossas memórias3, e se faz necessário iluminar os conhecimentos que resistiram e que foram produzidos pela diáspora negra na cultura desta nação. Pensar mediação cultural no âmbito da produção é considerar a importância também dessas epistemologias e saberes. Ao discutir as estratégias de mediação para a promoção da democratização de acesso cultural, Wendell (2014) afirma que a ação de formação de público precisa ser plural, estimulando-o a viver ações criativas e participativas nas propostas lançadas pela mediação. Acredito que esse processo de democratização será alavancado também pela noção de representatividade e valorização das múltiplas subjetividades.
O experimento “Memórias duma Baobá” nesse sentido se apresenta como o que Guattari e Rolnik (1996, p. 17) designam como “cultura-alma coletiva” no que se refere aos movimentos de emancipação para reapropriar-se de sua singular identidade cultural. Rememorar os fazeres, as histórias, os afetos, as produções dos seus ancestrais e vê-los se tornarem cenas capazes de afetar outras vivências é se perceber com legitimidade. Aildes de 59 anos nos lembra os seus avós maternos na colheita e preparo do algodão:
“Minha avó Cândida foi uma exímia artesã da tecelagem. Ela produzia toda a matéria-prima… é… desde o plantio da semente do algodão. E eu participava de todo o processo do plantio até a tecelagem… dos meus 5 anos mais ou menos, até meus 9 anos. É… e na companhia dos meus avós, eu adquiri… todos os hábitos deles: tomava guaraná ralado, tomava chá de losna com açúcar e outros hábitos. Eu passava a maior parte do dia e muitas noites com eles. Dormíamos em redes… é um hábito mato-grossense dormir em rede (…) redes lindas…. coloridas… e a noite… quando apagavam as luzes, eles contavam histórias pra mim. ora um, ora outro…. eles se revezavam… mas sempre tinham histórias pra mim. Minha avó, além de ser uma eximia artesã… era a única que sabia limpar o meu nariz (risos)”
A escolha da memória a ser doada revela a mobilização provocada pela proposição do convite, ao observarmos o cuidado nas palavras escolhidas para a narrativa. Por exemplo quando escolhe o termo “exímia artesã… a única que sabia limpar o meu nariz”, que confere às mãos uma dimensão repleta de excelências e afetos. Contornos sensoriais, memórias corporificadas em grafia e imagem. Dessa doação, escolhemos apenas o gesto da atriz Baobá projetando a ponta do vestido simulando limpar o nariz de uma criança. Na qualidade de público criador onde “o primeiro passo é ele ser incluído desde o início da construção do projeto cultural” (WENDELL, 2014, P. 20), todas as doadoras foram atravessadas pela co-participação criativa ao apreciarem a performance gravada, relatando que se sentiram presenteadas pela possibilidade de entrar em contato com seus baús de memórias transformados em arte.
Na apreciação, relataram o quanto ficaram emocionadas com as escolhas cênicas que resolveram a cena: a casa de madeira, a luz entrando na janela, o café no bule e o bolo de fubá. A fotografia na parede, o chapéu de palha, a viagem de trem. O quanto a imagem, por estar com a luz estourada (o que não havia sido planejado), havia remetido à sensação de tempo passado e as lembranças que alguns avós foram perdendo com as demências da idade.
O movimento não cessa, segue bordando poesias
A arte lança uma lente de aumento sobre os eventos. Política, ela carrega um pensamento em sua forma e conteúdo e o público é conectado ao produto cultural a partir do seu contexto. Memórias Duma Baobá propõe o resgate e a valorização dessas identidades negras que de modo geral são apresentadas sob estereótipos das imagens de controle, deslocando as visões que determinam os lugares sociais estigmatizados destinados aos negros, pela hegemonia racial dominante. O processo de escrevivência nessas cenas pretende romper com a violência simbólica, que se instaura com a desvalorização de nossas experiências/vivências, elevando ao público mediado nessa experiência à condição de sujeitos de conhecimentos relevantes. A Coletiva, investe nesse trabalho como uma experiência de mediação que afirme o lugar do público negro, ouvindo-o e convocando-o a participar das decisões da cena, a fim de criar vínculos com os produtos e espaços culturais.
São inúmeras as histórias e vivências negras negligenciadas pela experiência teatral. As atrizes-Baobás vêm se impondo nos palcos dessa nação (com os diversos grupos de teatros negros e suas manifestações), assim como a que vivenciou essa experiência, se inclinando sobre a estratégia de, regada de afeto, trazer à cena outras histórias, outras vivências, outros bordados e modos de estar em cena, dialogando com um público sedento de se ver.
Não há aqui, a intenção de definir tal estratégia como fim de uma ação e, muito menos, como receita de atuação junto a este ou àquele público, mas considerar a relevância de uma criação em roda, horizontalizada.
MEMÓRIAS DUMA BAOBÁ: UMA EXPERIÊNCIA DE AFETO E MEDIAÇÃO
ARTIGO Isabel Cristina Oliveira Caldas & Francisco Gaspar Neto
Isabel Cristina Oliveira Caldas
Mestranda do PPGARTES UNESPAR, na linha de pesquisa Modos de Conhecimento e Processos Criativos em Artes. Pós-graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Universidade Positivo (2015). Graduada em Licenciatura em Teatro pela UNESPAR/FAP (2012). Atriz, professora da Rede Municipal de Curitiba.
Francisco Gaspar Neto
Doutor em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC, 2016). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2005) e graduado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO, 1993). Professor Adjunto A da Universidade Estadual do Paraná/ Faculdade de Artes do Paraná. Pesquisador associado ao AND_Lab | Arte-Pensamento e Políticas da Convivência.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº17, MAR., ANO 2022
TRABALHO EM ARTE E CUIDADO
RESUMO
Este artigo descreve o experimento artístico “Memórias de um Baobá” da Coletiva Preta de Teatro ÈmíWá, ocorrido em novembro de 2020, em formato remoto. O texto discute as intersecções entre as epistemologias negras e a ideia de “aquilombamento” a partir da experiência da mediação como projeto político de direito à subjetividade e colaboração em processos criativos para a democratização do acesso à criação e fruição da arte.
PALAVRAS-CHAVE
Teatro Negro. Memória. Identidade. Mediação teatral.
ABSTRACT
This article describes the artistic experiment “Memories of a Baobá” by Coletiva Preta de Teatro ÈmíWá which took place in November 2020 in remote format. The text discusses the intersections between black epistemologies and the idea of “aquilombamento” from the experience of mediation as a political project of the right to subjectivity and collaboration in creative processes for the democratization of access to the creation and enjoyment of art.
KEYWORDS
Black theater. Memory. Identity. Theatrical mediation.
Vivemos um momento de reivindicação da valorização das epistemologias da população negra no Brasil. Nas últimas décadas, surgiram muitas discussões sobre a questão no campo da sociologia e também das artes, com o crescente número de coletivos de teatros pretos, que assim se autodeclaram. Neste contexto, a Coletiva Preta de Teatro ÈmíWá nasce em 2018, em Curitiba, resgatando a ideia de “aquilombamento artístico”. Esse agenciamento de artistas pretas(os) vem transitando na perspectiva de levar à cena outras subjetividades, discutindo a visibilidade desses corpos negros e valorizando suas narrativas e escrevivências1 como táticas contra a ideologia de embranquecimento da população brasileira no âmbito estético e cultural.
Curitiba, a capital do Paraná, cidade onde atua a Coletiva ÈmíWá, não apenas participa dessa realidade nacional como também é uma das cidades na qual o embranquecimento estético é mais evidente. Tal discurso se sustenta no imaginário construído, de que por aqui não passaram africanos em situação de escravidão (e que por isso não haveria número significativo de pessoas negras na região) e, na afirmativa eugenista de que suas positividades repousariam sobre as origens europeias. Diante da privação de um lugar na história que visibilize as presenças negras, cabe a nós, pesquisadores, atores sociais, comunidade em geral e artistas atuarmos para promover a valorização e o reconhecimento da presença da população negra em Curitiba.
O experimento teatral “Memórias duma Baobá2” está ancorado nesse movimento estético-político de resgate de memórias, saberes, descobertas, anseios e histórias a partir da percepção de mulheres negras. Sua elaboração pretendeu reconhecer que todas as identidades estão situadas no tempo e no espaço simbólico, com panoramas próprios das vivências particulares desse grupo. Sobre esse aspecto Hall (2019), observa que as identidades
[…]têm aquilo que Edward Said chama de suas “geografias imaginárias” (1990): suas “paisagens” características, seu senso de “lugar”, de casa/lar, ou heimat, bem como suas localizações no tempo – nas tradições inventadas que ligam passado e presente, em mitos de origem que projetam o presente de volta ao passado, em narrativas de nação que conectam o indivíduo a eventos históricos nacionais mais amplos, mais importantes (HALL, 2019, p. 41).
O experimento em análise navega a partir da proposição de doação de memórias, solicitadas a mulheres negras, na investigação sobre as epistemologias da identidade da população da diáspora negra e na recuperação desse movimento narrado por Hall, a ligação entre passado e presente na projeção de futuros nesse espaço/tempo simbólicos. Parte dessas mulheres faz parte de um grupo de WhatsApp chamado “Casa das Pretas”, mobilizado pelas questões da negritude em Curitiba. Entre as doações estavam as memórias de infância, conselhos de avós e mães, provérbios, saudades que consolidaram as identidades individuais dessas mulheres e, que se tornam memórias coletivas, na medida em que esses corpos têm em comum a condição subalterna, pois, foram e são submetidos ao racismo sistêmico e estrutural na sociedade brasileira.
Assim como a árvore mítica nativa da região árida do continente africano, o Baobá, considerado sagrado pelos praticantes do candomblé, como símbolo de conexão entre o mundo material e o mundo sobrenatural, essas memórias, revelam as vivências corporificadas na oralidade dos relatos, o elo entre o ontem, o hoje e o amanhã, a ancestralidade presente.
A roda
Ao iniciarmos o processo de elaboração da obra experimental, partimos do princípio da circularidade – parte da cosmovisão africana e afrodiaspórica no Brasil – em sua composição, compreendida aqui como princípio de roda: a relação horizontalizada na concepção da obra artística. A escolha teve o objetivo de tentar desierarquizar as relações estabelecidas no âmbito teatral, assim, quem escreve, quem atua, quem ilumina, tem a preocupação de valorizar a promoção das vozes de cada uma das envolvidas, corporificando as potencias de cada contribuição.
O ponto de partida foram as discussões que envolviam o apagamento e recuperação e/ou reinvenção de memórias de mulheres pretas promovidas dentro do grupo “Casa das Pretas” e de suas articulações políticas, sociais e estéticas. A partir daí, compartilhei áudios de memórias de mulheres da minha família com o jovem dramaturgo Carlos Canarin, que inicia o processo de escrita desse conteúdo, imprimindo uma grafia estética às narrativas compartilhadas. A emoção nesse momento de corporificação escrita dos relatos foi surpreendente. As histórias narradas ganharam contornos estéticos que escapavam do campo individual, tornando-se agora, experiência coletiva recriada.
Entendendo a atriz como esse corpo em encruzilhada, como espaço “do encontro e desencontro de trânsito e deslocamento, passagem, interseção, mediação, entrecruzamento” (ALEXANDRE, 2017, p. 57-58), essas histórias/relatos foram tensionadas na escolha estética da performance-experimento, ora representando elementos da narrativa, ora trazendo essas vozes com trechos dos áudios recebidos. A atriz, como as mulheres negras, era o elemento de preservação e disseminação das memórias, um Baobá. Uma atriz-Baobá, responsável por fazer a conexão entre o mundo sobrenatural e o mundo material, a realidade e a memória.
O segundo momento foi o encontro, algumas mulheres negras foram convidadas para o evento que aconteceu em plataforma on-line intitulado “Doação de Memórias”. Lá, as mulheres foram incentivadas a pegar um chá, um café, um bolo, um aconchego afetivo e prestigiar o experimento, podendo inclusive interferir na encenação com a contribuição de uma canção, um som, um movimento e, ao final da apreciação, um bate-papo foi aberto para que compartilhassem as implicações da experiência em suas próprias memórias. Por mais de uma hora, a troca de cheiros, sons, canções, histórias e gestos, ocuparam o encontro. Uma saudação à ancestralidade, revitalizando as presenças dos que nos antecederam: mães, avós, tias. O reconhecimento dos saberes, sabores e conhecimentos apreendidos na relação com a força ancestral atualizada em nossas existências.
O próximo movimento foi o recebimento das doações de memórias dessas mesmas mulheres, novamente através de áudios e a inserção desse material na dramaturgia. Camila Cardoso, produtora de casting, doou a seguinte memória:
A minha memória é sobre a minha vó.
Toda vez que eu penso na minha vó me vem o rostinho dela,
perdi a minha vó há quase dez anos já…
Ela era mais uma mãe para mim.
Então toda vez que eu lembro dela bu me emociono…
É engraçado porque eu lembro do cheiro do cabelo dela,
do cheiro da pele dela, eu lembro do cheiro do colo dela.
E lembro das musiquinhas que ela cantava pra mim quando eu era pequena.
E depois que eu cresci, que tive filhos,
as mesmas musiquinhas que ela cantava para mim, ela cantava pros meus filhos.
A música quase não tinha letra,
era mais um resmungado com uma melodia doce da voz dela.
Então essa é a minha memória: minha vó, Dona Edite.
Me faz muita falta.
Na sequência do áudio, ela compartilhou o resmungo em uma vogal melódica de sua avó, com a voz embargada de afetividade e revelando os resmungos de muitas avós pretas, o cheiro de lenços que enfeitavam e protegiam as cabeças brancas de muitas que nos geraram, criaram, embalaram e embalam nossas existências.
A memória é patrimônio, na medida em que engloba tudo aquilo que herdamos nos campos culturais e sociais em contextos específicos que nos impregnam de sentidos. É a herança do passado para o presente e o futuro que contribuem com a permanência e a identidade da cultura a que se pertence, é um bem imaterial. Na medida em que traz em si as várias camadas que se articulam na constituição de uma parcela da população, a memória deve ser encarada como patrimônio cultural do nosso povo. A linguagem “tem a dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (Kilomba, 2019, p. 14) e desse modo nos informa quais as vozes que devem ou não ser ouvidas.
Vale ressaltar que a proposição desse experimento artístico, ensaia romper com o sentido da palavra patrimônio como nos apresenta Coutinho (2011, p. 1109) “do grego pater, que significa pai”, ou seja, a herança, o legado patriarcal. Como aqui, procuramos revelar os legados dessas mulheres que, de modo geral, são as bases estruturais e econômicas de suas famílias, entendo como mais apropriado dizer, que nesse caso a memória compartilhada por essas mulheres negras, é matrimônio.
Ousaria dizer que a herança mnemônica das vivências da população negra está arquivada e é compartilhada a partir das relações dessas mulheres com as suas famílias estendidas – filhos, sobrinhos, afilhados, filhos de santo. Estas, que são o arrimo de suas famílias. O sentido de grafar tais narrativas é colocá-las no estatuto de bem cultural matrimonial, como argumenta Martins (2003, p.64) “a memória, inscrita como grafia pela letra escrita, articula-se assim ao campo e ao processo da visão mapeada pelo olhar, apreendido como janela do conhecimento” e, ampliar essas narrativas para o campo estético da cena, é também, reconhecer-se como sujeito produtor de subjetividades e afetos culturais, na medida em que essas histórias são corporificadas em um espaço/tempo artístico. A memória, constituidora de identidades, está estruturada como a linguagem e, na linguagem está a possibilidade de “assumir a identidade da cultura” (FANON, 2008, p. 15).
Isso significa evidenciar, através da arte, a profundidade, as estesias e as táticas de sobrevivência estruturadas por um grupo, que, mantido propositalmente à margem, recria, inventa e elabora suas micropolíticas de sobrevivência. A narrativa da militante e professora aposentada Will Amaral, aponta para as dinâmicas dessa realidade
eu perdi minha mãe faz oito anos, perdi meu filho faz três.
quando eu era adolescente a minha mãe reunia sempre a família,
a minha mãe sempre gostou de uma família reunida,
de gente né? e eu me lembro bem que nós nos reuníamos,
e a minha mãe gostava de cantar, e as vezes a gente desafinava
e ela batia as unhas, fazia a gente parar, e ela cantava:
“de noite eu ando a cidade a me procurar sem te encontrar”
e ela cantava muito bem, e eu fiquei me lembrando também,
de quando eu era bem pequena, devia ter uns cinco, seis anos,
ela levantava muito cedo pra ir trabalhar, tava escuro ainda,
e ela me acordava e eu ficava deitada na cama enrolada nas cobertas,
e ela colocando casaco, me lembro bem, ela tomava tabuada de mim.
3 vezes 7? 5 vezes 3? E foi assim que eu aprendi a tabuada.
E nesse decorrer de lembrança, me lembrei do meu filho.
Eu trabalhava muito. Sabe que mulher preta tem que trabalhar muito sempre né?
Eu trabalhava muito muito muito,
e aos sábados eu pedia pro meu filho me passar as tarefas dele né,
o que ele fez na escola e tal,
e eu pedia pra ele ler porque eu já não aguentava mais de sono,
e eu meio que dormindo, eu dizia pra ele ler pra mim, e ele lia,
de vez em quando eu acordava assustada: como é que é? não entendi!
eu no quarto e ele na sala, e ele achando que eu tava prestando atenção,
e assim meu filho me fez aprender,
minha mãe me fez aprender,
e isso aquece o coração da gente né? alivia, conforta.
a gente que é mulher preta, a gente tem luta né?
Se retirarmos os indicativos de que essa memória se passa num tempo ido, facilmente encontraremos grande parte da população feminina preta potencialmente representada por ela. Ela é o arquétipo atualizado na mulher negra contemporânea, que se desdobra para dar conta da maternidade, do trabalho e das questões da casa – tudo ao mesmo tempo – sob a pressão de garantir a sobrevivência e o progresso de seus ascendentes. É uma narrativa que dialoga com aquela da mãe que necessita levar junto seu filho pequeno para o trabalho, para atender as necessidades de manutenção do lar de sua patroa. Como no caso Miguel, que ocorreu em 02 de junho de 2020, em Recife, no qual Mirtes, a mãe, trabalhando em meio à pandemia, deixa o menino de cinco anos sob os cuidados da patroa, Sara Corte Real, enquanto levava o cachorro da patroa para passear e se depara com a criança morta, após cair do nono andar do prédio de luxo.
O relato de Will “eu pedia pra ele ler porque eu não aguentava mais de sono… e ele achando que eu tava prestando atenção”, referindo-se há pelo menos duas décadas, talvez pudesse ter sido dito pelas escravizadas representadas na obra “um jantar a brasileira” de Debret: “eu lhe cantava cantigas de ninar antes de mamar porque minhas tetas já não suportavam mais… e ele achando que eu o estava afagando”. Ou como se a mãe de Miguel dissesse “e ele achando que eu estava prestando atenção, mas eu não aguentava mais de cansaço”.
Três temporalidades distintas com a mesma necessidade de sobrevivência. E não considerar isso como matrimônio é permitir que essas histórias continuem se repetindo como se fossem inéditas ou naturalizáveis. O que é uma babá acompanhando os filhos da patroa em uma festa, quando seus filhos jamais entraram em um daqueles buffets? O que é, uma funcionária da limpeza de uma escola particular, quando sequer consegue vaga em uma creche pública? Quantas estratégias são lançadas? Quem são essas mulheres? E quantas vezes se veem representadas na arte com subjetividades expressivas, famílias, existências plenas?
As formas de apagamento de memórias, as violências físicas, as delimitações de espaços de ocupação dos corpos pretos, a desvalorização dos traços culturais e das epistemologias da população negra no Brasil, bem como nas Américas, atuaram como estratégia de dominação dos colonizadores europeus em suas colônias. Nesses territórios, o racismo desempenhou um papel essencial na apropriação dos corpos escravizados tanto no trato sociopolítico, quanto na internalização da superioridade do colonizador em relação aos colonizados. Durante todo o processo colonial e estendendo-se até os dias atuais, o racismo antinegro nas Américas (e aqui, faço um recorte, no Brasil) imprimiu-se de maneiras diversas e sutis. O racismo explícito durante o período colonial, onde os corpos pretos não passavam de instrumento objetificado de trabalho, se mascara hoje, na falsa ideia de igualdade racial sob a égide meritocrática de que todos somos iguais, de que temos os mesmos direitos e oportunidades e que o progresso, é fruto dos esforços individuais. Entretanto, ao revisitar a história sobre uma ótica descolonial, evidencia-se que a possibilidade de ascensão da população preta mantém-se quase que utópica, na medida em que a ela ainda são reservadas as piores funções no mercado de trabalho e os menores salários, os espaços da cidade com menores infraestruturas, a violência contra sua juventude, os menores investimentos em educação, saúde e acessibilidade. Na formação dessas mulheres, a violência desses discursos surge como fantasmas para uma vida inteira, conforme lembrado na memória da professora e pesquisadora Genice:
“Eu… tenho a lembrança de que, desde pequena a patroa branca da minha mãe, me orientava a… me esforçar! Ela dizia que… por conta da minha cor, eu deveria sempre me esforçar em ser a melhor, porque onde houvesse uma oportunidade… que eu fosse disputar… uma vaga de emprego ou algo parecido, eu teria que ser muito melhor do que os outros candidatos brancos… Na verdade eu não entendia muito… o que ela estava querendo dizer… porque …com o passar do tempo… dentro da minha família… eu não me percebia como negra. Porque minha mãe… e minhas tias tinham a pele mais… retinta. E a minha… eu era chamada de moreninha… Minha avó também! Ela… era filha de bugre… que hoje eu sei que é indígena com italiano. Então a sua pele era um tom mais clara do que a das próprias filhas… Mas, me acompanhou essa questão do estudo… e que tem que ser melhor, de que tem que sempre ser melhor… e se esforce! e se esforce! E isso me perseguiu e me persegue até hoje. Tudo o que eu procuro fazer, eu tento fazer o melhor possível. E me cobro também, bastante… E muitas vezes essa busca por fazer o melhor acaba nos paralisando…”
Dialogando com Lélia Gonzales (1988), enquanto em alguns países o racismo explicitou abertamente os espaços reservados aos negros, através do regime de segregação racial – o apartheid – na América Latina temos como característica o “racismo por denegação”, ou seja, o racismo disfarçado pelo mito da igualdade racial. Ambas as faces do racismo, aberto ou por denegação, foram e são táticas que objetivam a exploração e a opressão. Contudo, diante do racismo aberto, é notável que seu efeito sob os grupos discriminados fortaleceu as identidades raciais (na medida em que não se sobravam dúvidas sobre o que os separa nos espaços), visto que essa certeza permitiu a articulação de outras formas de viver no interior dessa sociedade (a exemplo das conquistas do Movimento Negro nos Estados Unidos). Enquanto no racismo por denegação, o discurso igualitário mantém veladas as estratégias de manutenção das relações de poder e segregação, impossibilitando esses grupos de compreender as sujeições de suas existências e consequentemente a tomada de posições políticas e sociais, na luta contra o esmagamento de suas subjetividades. Diante disso, percebemos no relato de Genice, a articulação do movimento de negação de suas reais origens, a negação de sua própria imagem. Para Gonzalez:
O racismo latino-americano é suficiente sofisticado para manter índios e negros na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia de branqueamento. Veiculadas pelos meios de comunicação de massa e pelos aparelhos ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores do Ocidente branco são os únicos verdadeiros e universais. (GONZALES, 1988, p.73).
No entanto, é preciso considerar as táticas de manutenção da cultura africana na diáspora. Segredados e camuflados na linguagem do colonizador, os saberes dos africanos escravizados foram transmitidos e adaptados à realidade de seus ascendentes nas ações dos terreiros, nas rodas de capoeira, nas favelas, nas escolas de samba, nos provérbios, nos chás, nas quituteiras, enfim, nas gingas dos corpos pretos. Esses saberes foram mediados por avós, mães, parteiras, mães de santo e o nosso país tem na base da cultura a herança dessa malemolência. Os valores do Ocidente branco não foram completamente absorvidos nos becos das nossas memórias3, e se faz necessário iluminar os conhecimentos que resistiram e que foram produzidos pela diáspora negra na cultura desta nação. Pensar mediação cultural no âmbito da produção é considerar a importância também dessas epistemologias e saberes. Ao discutir as estratégias de mediação para a promoção da democratização de acesso cultural, Wendell (2014) afirma que a ação de formação de público precisa ser plural, estimulando-o a viver ações criativas e participativas nas propostas lançadas pela mediação. Acredito que esse processo de democratização será alavancado também pela noção de representatividade e valorização das múltiplas subjetividades.
O experimento “Memórias duma Baobá” nesse sentido se apresenta como o que Guattari e Rolnik (1996, p. 17) designam como “cultura-alma coletiva” no que se refere aos movimentos de emancipação para reapropriar-se de sua singular identidade cultural. Rememorar os fazeres, as histórias, os afetos, as produções dos seus ancestrais e vê-los se tornarem cenas capazes de afetar outras vivências é se perceber com legitimidade. Aildes de 59 anos nos lembra os seus avós maternos na colheita e preparo do algodão:
“Minha avó Cândida foi uma exímia artesã da tecelagem. Ela produzia toda a matéria-prima… é… desde o plantio da semente do algodão. E eu participava de todo o processo do plantio até a tecelagem… dos meus 5 anos mais ou menos, até meus 9 anos. É… e na companhia dos meus avós, eu adquiri… todos os hábitos deles: tomava guaraná ralado, tomava chá de losna com açúcar e outros hábitos. Eu passava a maior parte do dia e muitas noites com eles. Dormíamos em redes… é um hábito mato-grossense dormir em rede (…) redes lindas…. coloridas… e a noite… quando apagavam as luzes, eles contavam histórias pra mim. ora um, ora outro…. eles se revezavam… mas sempre tinham histórias pra mim. Minha avó, além de ser uma eximia artesã… era a única que sabia limpar o meu nariz (risos)”
A escolha da memória a ser doada revela a mobilização provocada pela proposição do convite, ao observarmos o cuidado nas palavras escolhidas para a narrativa. Por exemplo quando escolhe o termo “exímia artesã… a única que sabia limpar o meu nariz”, que confere às mãos uma dimensão repleta de excelências e afetos. Contornos sensoriais, memórias corporificadas em grafia e imagem. Dessa doação, escolhemos apenas o gesto da atriz Baobá projetando a ponta do vestido simulando limpar o nariz de uma criança. Na qualidade de público criador onde “o primeiro passo é ele ser incluído desde o início da construção do projeto cultural” (WENDELL, 2014, P. 20), todas as doadoras foram atravessadas pela co-participação criativa ao apreciarem a performance gravada, relatando que se sentiram presenteadas pela possibilidade de entrar em contato com seus baús de memórias transformados em arte.
Na apreciação, relataram o quanto ficaram emocionadas com as escolhas cênicas que resolveram a cena: a casa de madeira, a luz entrando na janela, o café no bule e o bolo de fubá. A fotografia na parede, o chapéu de palha, a viagem de trem. O quanto a imagem, por estar com a luz estourada (o que não havia sido planejado), havia remetido à sensação de tempo passado e as lembranças que alguns avós foram perdendo com as demências da idade.
O movimento não cessa, segue bordando poesias
A arte lança uma lente de aumento sobre os eventos. Política, ela carrega um pensamento em sua forma e conteúdo e o público é conectado ao produto cultural a partir do seu contexto. Memórias Duma Baobá propõe o resgate e a valorização dessas identidades negras que de modo geral são apresentadas sob estereótipos das imagens de controle, deslocando as visões que determinam os lugares sociais estigmatizados destinados aos negros, pela hegemonia racial dominante. O processo de escrevivência nessas cenas pretende romper com a violência simbólica, que se instaura com a desvalorização de nossas experiências/vivências, elevando ao público mediado nessa experiência à condição de sujeitos de conhecimentos relevantes. A Coletiva, investe nesse trabalho como uma experiência de mediação que afirme o lugar do público negro, ouvindo-o e convocando-o a participar das decisões da cena, a fim de criar vínculos com os produtos e espaços culturais.
São inúmeras as histórias e vivências negras negligenciadas pela experiência teatral. As atrizes-Baobás vêm se impondo nos palcos dessa nação (com os diversos grupos de teatros negros e suas manifestações), assim como a que vivenciou essa experiência, se inclinando sobre a estratégia de, regada de afeto, trazer à cena outras histórias, outras vivências, outros bordados e modos de estar em cena, dialogando com um público sedento de se ver.
Não há aqui, a intenção de definir tal estratégia como fim de uma ação e, muito menos, como receita de atuação junto a este ou àquele público, mas considerar a relevância de uma criação em roda, horizontalizada.
Notas de Rodapé
1 Cunhado por Conceição Evaristo, o termo escrevivência reivindicando o direito à escritura de mulheres negras. Aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta.
2 Disponível no link: https://youtu.be/NNNESBe1yH0
3 Referência ao livro de Conceição Evaristo “Becos da memória”.
Notas de Rodapé
1 Cunhado por Conceição Evaristo, o termo escrevivência reivindicando o direito à escritura de mulheres negras. Aponta para uma dupla dimensão: é a vida que se escreve na vivência de cada pessoa, assim como cada um escreve o mundo que enfrenta.
2 Disponível no link: https://youtu.be/NNNESBe1yH0
3 Referência ao livro de Conceição Evaristo “Becos da memória”.
Referências Bibliográficas
ALEXANDRE, Marcos Antônio. O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba. Rio de Janeiro: Malê, 2017.
COUTINHO, Rejane Galvão. Questões sobre mediação e educação patrimonial. In: 20º Encontro Nacional da ANPAP, 2011, Rio de Janeiro. Anais do Encontro Nacional da ANPAP (Cd-Rom). Rio de Janeiro: ANPAP, 2011.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
GONZALES, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro. Nº.92/93 (jan./ jun.). 1988b, p. 69-82.
GUATTARI, Felix & ROLNIK, Suely. Micropolíticas: Cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: 1996.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade. Trad. Thomas Tadeu & Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2019.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MARTINS, Leda M. Performances da oralitura: corpo lugar da memória. 2003. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11881. Acesso em: 11 /10/ 2020.
WENDELL, Ney. Estratégias de mediação cultural para a formação do público. Bahia, Fundação Cultural do Estado da Bahia – FUNCEB, 2014. Disponível em: < https://bit.ly/2SqrTm9>. Acesso em: 20 jan. 2020.
Referências Bibliográficas
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FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
GONZALES, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro. Nº.92/93 (jan./ jun.). 1988b, p. 69-82.
GUATTARI, Felix & ROLNIK, Suely. Micropolíticas: Cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: 1996.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade. Trad. Thomas Tadeu & Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2019.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MARTINS, Leda M. Performances da oralitura: corpo lugar da memória. 2003. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11881. Acesso em: 11 /10/ 2020.
WENDELL, Ney. Estratégias de mediação cultural para a formação do público. Bahia, Fundação Cultural do Estado da Bahia – FUNCEB, 2014. Disponível em: https://bit.ly/2SqrTm9. Acesso em: 20 jan. 2020.
Lista de Imagens
1 A atriz-Baobá, Isabel Oliveira, enquanto ouve os áudios, como se as memórias ecoassem durante a espera. Foto de Carlos Canarim, 2020.
Lista de Imagens
1 A atriz-Baobá, Isabel Oliveira, enquanto ouve os áudios, como se as memórias ecoassem durante a espera. Foto de Carlos Canarim, 2020.