O ESPAÇO PÚBLICO CONCEBIDO COMO UM ALVO E UMA ARMA: JENNY HOLZER E A PERFORMANCE DA PALAVRA ESCRITA

ARTIGO DE ELISA MAIA

Elisa Maia é doutoranda em Comunicação e Cultura pela ECO-UFRJ e mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-RIO.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.5, Nº14, JUL., ANO 2018
PENSAMENTO E AÇÃO DE SUBSISTÊNCIA

RESUMO

O objetivo deste ensaio é pensar o uso do espaço público feito pela artista visual norte-americana Jenny Holzer (1950). Suas intervenções participam da difícil tarefa de encorajar o passante anestesiado pela carga visual excessiva que caracteriza os grandes centros urbanos a devolver o olhar para a cidade, questionar e refletir sobre os enunciados que lhe são impostos. Funcionam como estímulos que cobram de um espectador passivo alguma reação, sem, no entanto, prescrevê-la de antemão, em uma tentativa de restituir-lhe uma percepção pessoal e crítica sobre seu entorno.

PALAVRAS-CHAVE

Jenny Holzer. Espaço Público. Arte Urbana. Palavra e Imagem. Cultura Visual.

ABSTRACT

The objective of this paper is to think about the use of the public space by American visual artist Jenny Holzer. Her interventions take part in the difficult task of encouraging passersby numbed by the sensory overload of the metropolis to return their gaze to the city, questioning the statements imposed on them. The interventions function as stimulus for the passive spectator to take some action, in an effort to return his subjective and critic perception on his surroundings.

KEYWORDS

Jenny Holzer. Public Space. Urban Art. Word and Image. Visual Culture.

ABUSE OF POWER SHOULD COME AS NO SURPRISE
AN ELITE IS INEVITABLE
ANY SURPLUS IS IMMORAL
EVERYONE’S WORK IS EQUALLY IMPORTANT
EXCEPTIONAL PEOPLE DESERVE SPECIAL CONCESSIONS
FAITHFULNESS IS A SOCIAL NOT A BIOLOGICAL LAW
FREEDOM IS A LUXURY NOT A NECESSITY
GOVERNMENT IS A BURDEN ON THE PEOPLE
HUMANISM IS OBSOLETE
MONEY CREATES TASTE
MORALS ARE FOR LITTLE PEOPLE
MURDER HAS ITS SEXUAL SIDE
PRIVATE OWNERSHIP IS AN INVITATION TO DISASTER
STERILIZATION IS OFTEN JUSTIFIED
STUPID PEOPLE SHOULD NOT REPRODUCE
[…]

Em 1977 a artista visual norte-americana Jenny Holzer espalha clandestinamente pela cidade de Nova Iorque uma série de pôsteres com frases curtas, de uma linha e em caixa alta, impressas em tinta preta sobre um fundo branco. O tom das frases é enfático, às vezes infame, quase impositivo. Há convicção e autoridade na forma como as ideias são afirmadas. Passa-se abruptamente de uma ideia a outra. Os sentidos, descartáveis, emergem com a mesma velocidade com que são dispensados. Entre as frases, não há hierarquia. Nenhuma posição é privilegiada em detrimento das demais. Pontos de vista antagônicos são apresentados simultaneamente, compartilhando o mesmo tom e a mesma tipografia. Entre as ideias, não há continuidade nem sequência lógica de pensamento. Ao contrário, perspectivas desconexas impedem que se veja coerência na lista de frases organizadas alfabeticamente. Tampouco é possível identificar uma instância autoral, pelo menos não uma única. Sobre a questão da “voz” por trás dos escritos, em entrevista à revista Art in America, Holzer afirma: “Sempre tento evitar que minha voz seja identificada. Não gostaria de ser uma voz feminina isolada, porque acho que quando as coisas são categorizadas, elas tendem a ser descartadas” (FERGUNSON, 1986, p. 111, tradução da autora).

Holzer aponta como fonte de seus primeiros textos a “enorme lista de livros sérios e às vezes opacos, tudo de Marx ao estruturalismo” que recebeu de seu professor Ron Clark quando cursava o Whitney Independent Study Program, entre 1976 e 1977 (MADOFF, 2003, p. 82-83, tradução da autora). Segundo a artista, havia um desejo de descobrir o que poderia ser feito com aquela quantidade enorme de informação. A resposta veio na forma de uma reescritura que deu origem à série Truisms. Nesse projeto, teorias da cultura ocidental e crenças populares são condensadas em frases sucintas – microteorias, truísmos. A linguagem transita em meio à literatura, à filosofia, a chavões populares, à propaganda e a mensagens oficiais, contribuindo para diminuir as distâncias (supõe-se que alguma distância deva existir) que separam esses discursos. Na série que se segue a Truisms, intitulada Inflammatory Essays (1979-1982), as frases de uma linha tornam-se parágrafos de cem palavras. Inspirada em escritos de figuras emblemáticas, como Mao Tsé-Tung, Adolf Hitler, Vladimir Lênin, Leon Trotsky e Emma Goldman, a série é escrita em tom mais “inflamado” – diferentemente do estilo neutro e factual dos truísmos – e impressa em itálico e negrito, em pôsteres coloridos. As mudanças na escrita são acompanhadas por variações de suporte, e o formato simples dos primeiros pôsteres dá lugar a uma série de diferentes suportes – bonés, camisas, recibos de caixa registradora, performances de dança, placas de bronze, preservativos, sinais eletrônicos, bancos de mármore, internet, sarcófagos e pele humana, entre outros (figura 1). Dessa maneira, as contingências materiais e contextuais que articulam o texto logo se provam tão importantes para o trabalho quanto a mensagem que veiculam. Descontextualizados e cuidadosamente recontextualizados, os textos passam a estabelecer com os leitores/espectadores relações que vão muito além da leitura.

Em 1975, quatro anos antes de dar início à série Truisms, Holzer trabalha em um projeto que recebe o nome de Pigeon Lines (“linhas de pombos”), no qual migalhas de pão são dispostas no chão de uma praça em Rhode Island, conforme padrões de figuras geométricas. O objetivo é fazer com que os transeuntes tenham sua atenção capturada por uma imagem inusitada: pombos comendo, organizados na forma de, por exemplo, um triângulo ou quadrado. Holzer conta que na época percebeu que “o trabalho não era bonito o suficiente, ou convincente o suficiente, ou inteligível o suficiente para fazer as pessoas pararem” (WALDMAN, 1997, p. 18, tradução da autora). Mesmo assim, é possível perceber aqui duas características que acompanhariam a obra da artista nas décadas seguintes, a saber, o desejo de interferir no caminho cotidiano dos passantes e o de incorporar nessa interferência algo inesperado, capaz de abrir uma fenda na avalanche informativa da cidade. Esse impulso faz com que Holzer, a partir do início da década de 1980, comece a fazer uso do que ela chamou de “Big Brother Media” – meios de comunicação de massa que marcam presença ostensiva na paisagem urbana. Ao usar a cidade como suporte, apropriando-se de seus meios de comunicação para transgredi-los, o trabalho da artista interfere performaticamente na realidade em que está inserido, oferecendo uma possibilidade de resistência capaz de medir forças com essa plurirrealidade. É nesse sentido que, para Hal Foster, Holzer concebe o espaço público ao mesmo tempo como “um alvo e uma arma” (FOSTER, 1986, p. 36).

Na série Living (1980-1982), os pôsteres dão lugar a placas de bronze, que passam a ser coladas nas paredes de prédios institucionais, como o do MOMA, em Nova Iorque. Valendo-se do material, do formato e da tipografia característicos das placas que trazem informações sobre monumentos históricos, os textos de Holzer apropriam-se da autoridade reservada a mensagens oficiais e institucionais (figuras 3 e 4). Esse seria o início de um processo cujos efeitos se acentuariam à medida que o trabalho conquistasse meios do circuito dominante da publicidade e da comunicação, como um dos telões da Times Square, em Nova Iorque.

Sabe-se que a avalanche midiática que compõe a geografia urbana contribui para a formação de um olhar em trânsito permanente, que se move de forma vertiginosa em direção a novos enunciados e a novas imagens. Sobre a maneira como a aceleração crescente e contínua da vida contemporânea produz mudanças sensíveis nas formas de apreensão da paisagem urbana, Nelson Brissac Peixoto comenta:

As transformações mais radicais na nossa percepção estão ligadas ao aumento da velocidade da vida contemporânea, ao aceleramento dos deslocamentos cotidianos, à rapidez com que o nosso olhar desfila sobre as coisas. Uma dimensão hoje está no centro de todos os debates teóricos, de todas as formas de criação artística: o tempo. O olhar contemporâneo não tem mais tempo (PEIXOTO, 2003, p. 209).

A carga visual excessiva que compõe o espaço urbano contemporâneo promove uma reconfiguração da paisagem, articulando uma nova visualidade em que a profundidade é substituída por uma superfície plana, na qual inúmeros ângulos e perspectivas se sobrepõem e são percebidos simultaneamente. Em geral, os signos da cidade midiática são aqueles que não solicitam resposta do observador, que não oferecem possibilidade de diálogo ou de transcendência do sentido. São signos que se impõem ao olhar do passante e estabelecem com ele uma relação unilateral em que não há espaço nem tempo para reflexão. O sinal de trânsito proibindo um retorno, o relógio público que informa a hora (e, em seguida, a temperatura), o símbolo do cigarro cortado por uma linha diagonal que adverte sobre a proibição de fumar, a foto publicitária e os sinais eletrônicos que trazem informações sobre o tráfego na hora do rush são todos exemplos desses signos aos quais nada se pode acrescentar. No tecido urbano, sinais de trânsito, mensagens institucionais, propaganda política, publicidade e notícias alternam-se e confundem-se, produzindo a aparência de uma falsa homogeneidade que o passante certamente não se dispõe a questionar. Como bem nos lembra Marc Augé:

É preciso constatar que se misturam diariamente nas telas do planeta as imagens da informação, da publicidade e da ficção, cujo trabalho e cuja finalidade não são idênticos, pelo menos em princípio, mas que compõem, debaixo de nossos olhos, um universo relativamente homogêneo em sua diversidade (AUGÉ, 2004, p. 34).

Holzer comenta que o anonimato deliberado de suas frases contribui para que elas sejam “percebidas como verdades” (FERGUNSON, 1986, p. 111). Essa estratégia da qual a artista lança mão não deixa de ser a mesma da linguagem encontrada nos meios de comunicação de massa dos quais se apropria. Essa linguagem oficial é pautada por um estilo impessoal e uma aparência de neutralidade. Apesar de conterem uma finalidade inequívoca e de serem atualizados com a velocidade característica da era digital, são textos que parecem não terem sido escritos por ninguém, dando a impressão de terem sempre estado ali, integrados à paisagem urbana. E, claro, de serem verdades. A diversidade de ideologias veiculadas por Holzer nos meios de comunicação de massa, suas frases contraditórias e incompatíveis expõem não apenas contradições na estrutura discursiva dos signos linguísticos da cidade como também a estratégia de impor uma mensagem desvinculada da ideia de autoria. Ao veicular frases como “PESSOAS BURRAS NÃO DEVERIAM PROCRIAR” e “A FALTA DE CARISMA PODE SER FATAL” no quadro de avisos do aeroporto de Las Vegas; “A PROPRIEDADE PRIVADA CRIOU O CRIME” em um dos telões da Times Square (figura 5); ou ainda “O ASSASSINATO TEM SEU LADO SEXUAL” em um relógio público de Washington, Holzer promove uma confusão entre os discursos públicos e privados. Essa estratégia permite que pensamentos particulares sejam lidos, ainda que por um breve instante, como mensagens oficiais, explicitando, ainda, a maneira como o suporte do texto é importante para determinar o tipo de postura assumida pelo leitor. O que parece desconcertante para o espectador não é tanto o conteúdo dos escritos (muitos deles, banais), mas o desajuste entre conteúdo e suporte, o intervalo entre o meio e a mensagem. A frase que afirma que “a propriedade privada criou o crime”, apresentada em letras gigantescas em um dos maiores centros comerciais do mundo, causa o estranhamento necessário para interromper bruscamente o fluxo homogêneo e repetitivo dos enunciados comerciais que compõem aquele espaço. Esse intervalo abre uma fenda na epiderme urbana, evidenciando seus processos internos e a forma como o poder econômico e político é exercido de forma eloquente e ostensiva na arquitetura da cidade – busca-se, contudo, apagar os vestígios que levariam à sua origem. As intervenções públicas de Holzer participam da difícil tarefa de encorajar o passante a devolver o olhar para a cidade, a questionar e responder aos enunciados que lhe são impostos. Funcionam como estímulos que cobram de um espectador passivo alguma reação, sem, no entanto, prescrevê-la de antemão, em uma tentativa de restituir-lhe uma percepção pessoal e crítica sobre seu entorno.

Em 1996 Holzer começa a apresentar seus textos em imensas projeções luminosas, as chamadas xenon projections, que ocorrem à noite em locais emblemáticos de grandes cidades ao redor do mundo. Nelas, textos feitos de luz percorrem lentamente fachadas de museus, prédios históricos, igrejas, montanhas, florestas e ondas do mar, adaptando-se ao espaço e à geografia, em um tempo ditado pela leitura. Nas projeções, a cidade, espaço vivo e dinâmico, empresta corpo às palavras, servindo-lhes de suporte, e a palavra escrita torna-se maleável ao mesmo tempo em que se investe de uma presença escultural. A combinação da escrita com a geografia cria esculturas vaporosas, feitas de luz, que após percorrerem lentamente o espaço do suporte, dissolvem-se no ar da noite. Na projeção de San Diego (figura 7), por exemplo, a letra, objeto bidimensional, ganha espessura ao ser projetada sobre a rocha, espaço tridimensional, invertendo a lógica da perspectiva linear, método através do qual a realidade espacial tridimensional é traduzida para uma superfície plana.

Diante das projeções, o passante, anestesiado pela carga visual excessiva e veloz do espaço urbano, é capturado pelo inusitado, por uma nova imagem, fruto da interferência de algo alheio à paisagem – o texto, apresentado em uma escala que é a mesma do monumento. A monumentalidade das construções – expressões tangíveis da permanência – é contrastada à suavidade silenciosa e à efemeridade das figuras de luz. Em La Jolia, na Califórnia, Holzer, tal como o poeta John Keats, escreve na água, articulando imagens insólitas, criadoras de experiências singulares (figura 6). As projeções de xenônio pedem tempo. Propõem outro ritmo, outra velocidade, outra rotação que não a dos veículos e dos passantes que se movimentam nas grandes cidades. É preciso interromper o ritmo ditado pelo entorno e parar para acompanhar o movimento e a disposição das letras que compõem primeiro as palavras e então os textos. Nesse sentido, possibilitam o estabelecimento de pausas semânticas no fluxo temporal do cotidiano contemporâneo e a abertura de janelas críticas no espaço claustrofóbico da paisagem urbana. As projeções de Holzer promovem experiências estéticas capazes de desacelerar a percepção da cidade e incitar estados reflexivos, apresentando-se, portanto, como estratégias muito bem-vindas de reconquista do tempo presente.

Referências Bibliográficas

AUGÉ, Mark. Não-Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução Maria Lúcia Pereira: Campinas: Papirus, 2004.

FERGUNSON, Bruce. Wordsmith: an interview with Jenny Holzer. Art in America, p. 109-113, dez. 1986.

FOSTER, Hal. Subversive sign. In: Recording: art, spectacle, cultural politics. Seattle: Bay Press, 1986, p. 88-91.

MADOFF, Steven H. Jenny Holzer talks to Steven Henry Madoff. Artforum International, 41.8, p. 82-83, 2003.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: Editora Senac, 2003.

WALDMAN, Diane. Jenny Holzer. Nova Iorque: Guggenheim Museum, 1997.

Lista de Imagens

1   Jenny Holzer, Truisms, 1977-79.  Regata usada pela artista nova iorquina Lady Pink, Nova Iorque, 1983.

  Jenny Holzer, Spectacolor Board, Times Square, Nova Iorque, 1982.

3   Jenny Holzer, “Damage is done…”, texto da série Living (1980-1982), 1981.

4   Jenny Holzer, “You are caught thinking”, texto da série Living (1980-1982).

5   Jenny Holzer, série Truisms (1977-1979) Spectacolor Board, Times Square, Nova Iorque, 1982.

 Projeção em Wipeout Beach, La Jolla, Califórnia, 2007. Texto retirado de Selected Poems, Adam Zagajewski, (2002).

 Projeção no Instituto de Oceanografia, San Diego, Califórnia, 2007. Texto da série Arno (1996).

 Jenny Holzer, Projeção no Pantheon. Paris, 2001. Texto da série Earluf (1995).