SUBJETIVAÇÕES À FLOR DA PELE

Rumores de uma Clínica de Si em O Jardim (2015), de Rubiane Maia

ARTIGO Lindomberto Ferreira Alves

Artista-educador, pesquisador e curador independente. Doutorando em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará (PPGArtes/UFPA), Mestre em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGA/UFES), Licenciado em Artes Visuais pelo Centro Universitário Araras Dr. Edmundo Ulson (UNAR/SP) e Bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: lindombertofa@gmail.com

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº17, MAR., ANO 2022
TRABALHO EM ARTE E CUIDADO

RESUMO

O texto situa em perspectiva o conceito-chave subjetivações à flor da pele, o qual delineia uma das linhas de força poética da artista multimídia Rubiane Maia (Caratinga/MG, 1979). Partindo da figura conceitual subjetivações à flor da pele, proposta por Leila Domingues (2010a) e, tomando como gatilho imagético a performance O Jardim (2015), de Rubiane Maia, aborda-se, aqui, a tendência dessa linha de força em dar a ver nuances da potência poética-política de um corpo em permanente estado de performance, cujas práticas rumorejam outros equivalentes sensíveis da realidade, via o compromisso radical com uma clínica de si.

PALAVRAS-CHAVE

Rubiane Maia. Performance. Clínica de si.

ABSTRACT

The text puts into perspective the key concept of subjectivations at the edge of the skin, which outlines one of the lines of poetic force of the multimedia artist Rubiane Maia (Caratinga/MG, 1979). Starting from the conceptual figure subjectivations at the edge of the skin, proposed by Leila Domingues (2010a) and, taking as an imagetic trigger the performance “The Garden” (2015), by Rubiane Maia, it is approached, here, the tendency of this line of force in showing nuances of the poetic-political power of a body in permanent state of performance, whose practices ruminate other sensitive equivalents of reality, via the radical commitment with a clinic of the self.

KEYWORDS

Rubiane Maia. Performance. Clinic of the self.

Introdução
Antes, uma confissão: operamos um roubo.1 Tomamos de assalto a figura conceitual subjetivações à flor da pele, desenvolvida pela psicóloga, professora e artista Leila Domingues (2010a), em favor das potências que essa figura conceitual, em particular, evoca à urdidura das reflexões em torno de uma das linhas de força poéticas que perfazem os dez primeiros anos de carreira – entre os anos de 2006 e 2016 – da artista multimídia Rubiane Maia2 (Caratinga/MG, 1979). Em outras palavras, o roubo da figura conceitual subjetivações à flor da pele (DOMINGUES, 2010a) é mobilizado, aqui, a serviço de cercar certos aspectos que a constituem, os quais, a nosso ver, parecem ir ao encontro dos perceptos e afetos agenciados por Rubiane Maia em sua poética, à medida que coloca em jogo, por meio de seus trabalhos, o tensionamento da “vida como potência de criação, como potência de possíveis” (DOMINGUES, 2010a, p. 22).

Rubiane Maia é um dos nomes que vem explorando como poucas/os as possibilidades de expansão das potências do corpo, alinhada ao que poderíamos chamar de uma dimensão clínica da arte.3 O que implica dizer que, ao fazer uso de seu corpo e de suas narrativas pessoais de vida como principal matéria prima de suas obras, Rubiane Maia parece tensionar suas práticas artísticas em favor do acionamento da experiência estética como âmbito no qual, não só, se agencia um trabalho ético sobre si4, mas, também, no qual a própria prática artística converge para tal proposta ética. No território no qual transita a subjetividade e a materialidade do seu corpo, essa artista, contínua e intencionalmente, prolifera políticas de desejos orientadas por uma bússola ética, ativa e criadora, que toma a vida como experimento da obra e a obra como espaço-tempo prolífico para a invenção de si (FOUCAULT, 2004). Plano cujo tempo da criação ativa uma certa “[…] micropolítica da delicadeza” (SILVA, 2011, p. 113), com o objetivo de propor questões sobre os usos do corpo na arte e no cotidiano e que incitem o desencarceramento dos modos de funcionamento vigentes da vida, com o fito de que essa “[…] seja vivida através de um corpo intensamente afetado” (Idem).

Para nós, sendo essas algumas das intencionalidades com as quais a poética de Rubiane Maia estaria implicada, isso estaria ligado à tendência de suas práticas performáticas e performativas se apoiarem em certas linhas de força5, cuja insistência de circulação no decurso dos seus dez primeiros anos de carreira dariam a ver a singularidade de como o híbrido arte-clínica-política, agenciado como força motriz em sua produção, atuaria em favor da afirmação de um modo potencialmente alternativo e contestatório às modalidades de simbolização e de cognição alienadas entre arte, vida e obra, à medida que “inventa uma arte de viver ao inventar a vida como afirmação de possíveis” (DOMINGUES, 2010a, p. 139).

Isto posto, este texto situa em perspectiva o conceito-chave subjetivações à flor da pele, o qual delineia uma dessas linhas de força da poética artística de Rubiane Maia. Partindo da discussão em torno da figura conceitual subjetivações à flor da pele (DOMINGUES, 2010a) e tomando como gatilho imagético a performance O Jardim (2015), de Rubiane Maia, aborda-se, aqui, a tendência dessa linha de força em dar a ver nuances da potência poética-política de um corpo em permanente estado de performance; isto é, nuances de um corpo que, mobilizando a performance como “laboratório ético, estético, poético e político do sensível, da heterogeneidade, do outramento” (SILVA, 2011, p. 8), chama atenção aos devires clínicos que atravessam suas práticas performáticas e performativas. Perseguimos, portanto, a hipótese de que o conceito-chave subjetivações à flor da pele permitiria aferir o compromisso radical dessa artista com uma clínica de si, ou seja, com uma política de si, com uma criação de si que impulsionaria a produção de outros equivalentes sensíveis da realidade tanto quanto a construção de perspectivas mais expansivas de relações entre arte e vida.

Subjetivações à flor da pele
É precisamente no intento de roçar com palavras os jogos de força que perpassam a fadiga e o cansaço como sinalizadores “dos modos de vida que se processam na atualidade” (DOMINGUES, 2010b, p. 67) – nos quais as subjetivações se encontram no limiar – que Leila Domingues (2010a) recorrerá à expressão à flor da pele, levando-a, por sua vez, ao desenvolvimento da figura conceitual subjetivações à flor da pele. A esse respeito, Leila Domingues nos diz:

Denominamos à flor da pele aos processos que movem essas configurações subjetivas […]. Pois as subjetivações à flor da pele encontram-se num limiar, num entre-formas onde certa configuração subjetiva se desfez sem que outra tenha surgido. (DOMINGUES, 2010b, p. 69).

Nos termos colocados por Domingues, estar à flor da pele implica a experiência intensiva de um entre-formas, “[…] entre antes e depois. A um só tempo anestesiado e excessivamente poroso. […] Interstício temporal, […] onde o ‘antes’ se mostra intolerável e o ‘depois’ se mostra imprevisível” (DOMINGUES, 2010a, p. 53). O cansaço seria, portanto, um dos sinais/indicadores do que ela chama de nebulosa subjetivações à flor da pele, uma vez que, para Leila Domingues:

[…] o cansaço, ao mesmo tempo em que evidencia sensações de impotência, também pode ser anúncio de potência. Isto é, o cansaço pode ser ao mesmo tempo a ponta extrema do entorpecimento e o ponto zero do desejo de transmutação desse estado de coisa. (DOMINGUES, 2010a, p. 20).

À flor da pele: “interstício das palavras, das imagens, do amor, do pensamento, da memória, do ‘eu’” (Ibidem, p. 28), intervalo em que as configurações subjetivas se encontram em confluências de passagem, isto é, em que as subjetivações estão em liame com o mundo. Nesse entre-formas, tanto os “clichês que anestesiam as subjetivações” (Ibidem, p. 20) quanto as “linhas de resistência que as fazem escapar do que se mostra intolerável” (Idem) são expostas. Entra-se em contato com aquilo que “transborda no presente” (Ibidem, p. 23) e que estremece, rui, faz fugir as certezas, as posições, os lugares. Quando à flor da pele, os esquemas sensório-motores – que colocam em funcionamento os modelos de vida que aderimos – são bloqueados, são temporariamente postos em suspensão. Nesse instante, tornamo-nos permeáveis às ilimitadas possibilidades de potência de encontros com o mundo, as quais podem ser acolhidas e recusadas.

A pele, nesse instante, passa ser “percorrida por sensações de apreensão e incerteza” (Ibidem, p. 27), e o desassossego toma conta. Afinal, segundo Domingues (2010a, p. 54), essa porosidade nos defronta, ao mesmo tempo, “com toda a impossibilidade de uma forma de vida e com toda a potência de possibilitar outra vida”. Não sabemos ao certo “para onde ir ou o que fazer” (Ibidem, p. 27), pois “se pode acolher o desassossego ou recusá-lo” (Ibidem, p. 25). A sua recusa – aplacada pelo medo, tristeza e descrença – leva à fadiga, ao suportar de “uma ‘sobrevida’ que se restringe ao visível, às percepções, aos sentimentos, à razão, à inteligência” (Ibidem, p. 26). Nesse domínio, temos a sensação de que “o próprio presente escapa” (Ibidem, p. 53) e, portanto, experimentamos uma “impotência movida pela concepção de que não há uma solução para o sofrimento; e uma aflição em querer realizar qualquer ação para estancar a dor” (Ibidem, p. 79). Já a sua acolhida – mobilizada pela potência, alegria e crença – leva ao esgotamento, isso porque, de acordo com Leila Domingues (2010a, p. 20), no esgotamento as forças intensivas da vida deixam de ser capturadas e circunscritas pelas “malhas insidiosas da corrupção de nós mesmos”.

Nesses termos, parece residir na aceitação6 do desassossego, que o estar à flor da pele suscita, a aposta de Leila Domingues na criação de territórios existenciais que se engendram na experimentação das subjetivações em liame7 com o mundo – ou melhor, em liame com a invenção de mundos. Em suma, se as subjetivações à flor da pele atribuem visibilidade ao intolerável, passando a “ser absurdo não só um certo estado de coisas, mas também tolerá-lo” (Ibidem, p. 72), isso só ocorre porque o estar à flor da pele nos coloca em uma relação intensiva com aquilo “que faz parte do cotidiano e sempre esteve ali: ‘a luta da vida com aquilo que a ameaça’” (Ibidem, p. 22-23). O que seria isso que ameaça a vida? Tudo que, escamoteado de “tolerável”, captura as linhas de fuga, de fissura e de resistência, isto é, “nossa potência de exploração de possíveis, fazendo dela um ponto de aplicação de estratégias e táticas operadas pelo capital, […] e de alinhamento mercantil dos desejos” (ORLANDI apud DOMINGUES, 2010a, p. 23-24). Assim, o que está em jogo – e que Domingues, por meio da proposição da figura conceitual subjetivações à flor da pele, nos ajuda a vislumbrar – é o espaço-tempo das mutações subjetivas; intervalo no qual as metamorfoses agenciadas podem “se desdobrar tanto em mortificações como na criação de outras possibilidades de vida” (DOMINGUES, 2010a, p. 70). Junto a figura conceitual subjetivações à flor da pele, confrontamo-nos com os dinamismos espaçotemporais de captura e de fuga; coexistências díspares, mas complementares e indissociáveis aos modos de subjetivação – dimensão fundamental da produção e reprodução dos modos de vida em curso.

Ao atermo-nos a esse intervalo, nos defrontamos, ao mesmo tempo, “com toda a impossibilidade de uma forma de vida e com toda a potência de possibilitar outra vida” (Ibidem, p. 54). Domingues chama nossa atenção, portanto, para o fato de que a vida “jorra por entre grades que procuram sempre capturá-la e nos força a um estranho ‘atletismo’, pois algo aconteceu que nos deixou ‘com os olhos vermelhos e o fôlego curto’ e, ao mesmo tempo, nos invadiu de uma força que faz viver” (Ibidem, p. 22). Em outras palavras, residiria no modo como intensivamente nos implicamos na potência de um determinado acontecimento8 – que nos arrasta para esse “limiar tênue [que] separa potência e impotência em vias de serem inventadas” (Ibidem, p. 54) – a expansão “das transmutações que fazem a vida se expandir” (Ibidem, p. 27). Expansão essa que mobiliza “a invenção de outros sentidos para o que se vive” (Ibidem, p. 86), cujo intuito implica a avaliação das forças com as quais vai compor, a fim de que seja possível erigir “uma outra vida, uma outra forma de amar, de perceber, de ouvir, de ver, de desejar, enfim, uma outra forma de estar nos verbos da vida” (Ibidem, p. 104).

A essa altura, parece ficar mais nítido o motivo do porquê nos aproximamos dessa figura conceitual não só para pensar, mas também para nominar uma das linhas de força que perfazem a poética de Rubiane Maia. Isso porque, aos nossos olhos, essa artista parece lançar mão de suas práticas performáticas e performativas em favor da instauração de acontecimentos nos quais ela deliberadamente se coloca nesse limiar que é estar à flor da pele, e no qual as subjetivações estão em liame com a invenção de mundos. Nesses termos, para nós, as subjetivações à flor da pele parecem, em Rubiane Maia, falar de um compromisso ético, político e estético que traz para o campo da visualidade “um alguém em empenhada transformação” (PRECIOSA, 2010, p. 36) e cuja potência de possível ainda está inventando suas possibilidades (DOMINGUES, 2010a). Alguém que, nesse limiar, escapa aos esquemas sensório-motores que nos capturam, transmutando-os em favor da invenção e da afirmação de outros sentidos para a vida. É como se pudéssemos presenciar, em cada ação agenciada por essa linha de força, esse alguém “confabulando com o vivo” (PRECIOSA, 2010, p. 36); alguém “[…] que vai atraindo para si novas montagens de existência” (Idem).

O que implica dizer que, a cada nova ação, o que Rubiane Maia traz para o campo do visível não é só uma “forma-corpo que se desfaz seus contornos atuais para poder assumir outros” (DOMINGUES, 2010a, p. 97). Indo além, cada ação nos chama atenção para o próprio espaço-tempo das mutações subjetivas; esse interstício no qual múltiplos podem ser os contornos que venham a ser delineados – lembrando-nos de que é no campo dos dinamismos espaçotemporais das subjetivações que as avaliações se fazem e, com as quais, a artista compõe e “experimenta uma surpreendente consistência: ‘variar-se de vários’” (PRECIOSA, 2010, p. 69). Consistência essa que, quanto mais explorada por Rubiane Maia em suas práticas, mais parece afirmar o seu saber-fazer artístico como laboratório, no qual empreende uma espécie de “exercício de gradações de prudência” (DOMINGUES, 2010a, p. 18) em favor de “escolhas ético-estético-políticas que tenham como critério a vida” (DOMINGUES, 2010a, p. 133). Isso porque, conforme nos lembra Leila Domingues, a escolha9 “se faz arte, um exercício ético, estético e político sobre si e sobre o mundo” (Ibidem, p. 129). Seria, portanto, nas escolhas que Rubiane Maia vai fazendo, em função dos desassossegos que experimenta nesse interstício no qual as subjetivações estão à flor da pele e em liame com o mundo, que ela explora o diferir como “experimentação da potência estética de um exercício ético” (Ibidem, p. 135) – não por acaso, uma das linhas de força que leva a artista ao compromisso radical com práticas que rumorejam uma clínica de si.

Subjetivações à flor da pele em O Jardim (2015), de Rubiane Maia
Se essa é uma das direções em que a poética de Rubiane Maia caminha, parece assim ser porque é possível vislumbrar essa linha de força, percorrendo as diferentes “fases” que dizem respeito às diferentes sequências de sua obra. Os trabalhos que assumem como eixo norteador as subjetivações à flor da pele parecem falar do desejo e da escolha da artista em “acolher a processualidade e não estacar o processo” (DOMINGUES, 2010a, p. 129). Desejo de “abrir-se às turbulências, [de] deixar-se contaminar por toda a carga de futuro, de imprevisibilidade e com elas criar composições” (Ibidem, p. 126) de si e de mundos, nas quais a vida encontra canais de efetuação para performar suas potências. É o caso, por exemplo, dos processos que levaram à produção da performance de longa duração O Jardim10 (2015) (Figura 1). Nesse trabalho, ao propor o cultivo de um jardim de feijões, ela parece estar interessada em experimentá-lo como uma via prolífica para explorar exercícios de autocuidado, aplicados a si e ao outro, e neles os desdobramentos clínicos que nossas ações mais ordinárias são capazes de suscitar quando as subjetivações encontram-se à flor da pele.

Em O Jardim (2015), é precisamente isso que a artista traz para o campo do visível: a “criação e a invenção de outros modos de percepção e de relação com o vivido, porosidade à flor da pele, passagem de afetos” (SILVA, 2011, p. 8). Para tanto, ela lança mão do cultivo de um jardim a partir de uma pequena plantação de feijões em meio a arquitetura cinza, de puro concreto, da sede do Centro Cultural Sesc Pompeia (SP). Espaço-tempo concebido como uma espécie de laboratório vivo e em constante processo de transformação para experiências de cultivo e plantio (Figura 2), no qual a vida pôde ser continuamente manipulada, testada, cuidada e observada – do nascimento à morte – em uma escala tão sutil que exigiu, da artista e do público, outro tipo de experiência comum do sensível.

Com a atenção voltada para esse microcosmo, ao mesmo tempo em que a artista e o público são confrontados com a incapacidade de perceber, a olho nu, as minúcias, as formas e as transformações contínuas dos dinamismos espaçotemporais que o perpassam, eles são, também, convidados a acompanhar todo esse processo que se altera de maneira lenta, quase imperceptível, todos os dias. Experimenta-se, assim, uma espécie de vínculo, de cumplicidade. Afinal de contas, dada a inaptidão do olho de não perceber tudo – neste caso, o crescimento do feijão (Figura 3), a olho nu, até se tornar jardim –, o trabalho parece tensionar em nós o desejo de uma fruição outra, que diferentemente da condição sine qua non de existência da arte que entretém, possa ser capaz de suscitar uma maior atenção ao processo em si, bem como o contato intensivo com as sutilezas que agenciam todo o crescimento dos feijões – desde a preparação da terra, passando pelos múltiplos recomeços e movimentos descontínuos entre as diferentes fases do ciclo de desenvolvimento da planta: o brotar, o nascer, o crescer, o viver, o morrer – até que se constituísse o jardim (Figura 4). Envoltos por este microcosmo, o que parece nos atravessar é a própria formalização estética das metamorfoses da vida, explícita nesse espaço-tempo de cuidado da artista com seu jardim, que silenciosamente também se transmuta junto com ela. O que equivale dizer que, nesse trabalho, a performance parece se dar entre ela, a artista, e o jardim; ou seja, é a própria vida em suas instâncias politemporais se manifestando através do crescimento dos feijões, que é objeto de/da performance.

Segundo Rubiane Maia, “plantar, colher, cuidar de um jardim, pode ensinar bastante, não apenas sobre a vida, mas, sobretudo, sobre a morte – no sentido de se estar lidando com a delicadeza da vida”11. Ou seja, é como se ela nos chamasse atenção para o fato de que a nossa própria vida tanto pode crescer e seguir seu fluxo por caminhos mais potentes quanto pode padecer, a qualquer momento, às incansáveis tentativas de empobrecimento das relações que podemos constituir com as nossas existências. Assim, é redefinindo sutilmente o foco de atenção para o ciclo de vida dos feijões – assumindo como matéria de expressão artística a própria natureza instável, efêmera, minuciosa, frágil, misteriosa e politemporal da existência – que Rubiane Maia compõe um “corpo-sentido de dizibilidades e visibilidades” (DOMINGUES, 2010a, p. 17), com o qual ela aprende a transmutar as frustrações da perda de modo a lidar com um processo que nasce, cresce, vive, morre e nasce de novo, dia após dia (Figura 5).

Ao fazer isso, ela nos lembra de que a vida precisa de tempo de observação, de tempo de autocentramento, de tempo de silêncio e, sobretudo, de tempo de cuidado. Passa, portanto, pelo cuidado e pela sensibilidade com que a artista gesta a coexistência desses tempos, no âmbito do seu saber-fazer artístico, a capacidade de instaurar situações em que o público, assim como ela, sinta-se compelido ao compartilhamento da criação de si e de novas relações com o mundo em suas instâncias éticas e políticas. Mais além e aquém, é tensionando nossa atenção às confluências de passagem das subjetivações à flor da pele – espaços-tempos de disputas e, também, de prudências em relação aos nossos próprios modos de vida – que residiria, não só, a possibilidade da percepção daquilo que nos acontece, mas, sobretudo, que tudo o que nos acontece “seja experimentado na intensidade das sensações que provoca” (DOMINGUES, 2010a, p. 16). Em O Jardim (2015), muito mais diversa e complexa em relação ao atual status quo em que a lógica espetacularizada da arte opera junto à realidade, o que estaria incutida seria a efetividade do enfrentamento da batalha que, não por acaso, diz respeito à contemporaneidade da questão foucaultiana12, reformulada por Leila Domingues (2010a, p. 19) da seguinte maneira: o “que estamos ajudando a fazer do que vem sendo feito de nós?”.

Nota (in)conclusiva
Os desassossegos que experimentamos quando confrontamo-nos com essa questão podem se desdobrar tanto em potência de agir quanto em potência de padecer. Dependerá, portanto, do “grau de abertura para a vida que cada um se permite a cada momento” (ROLNIK, 2011, p. 68), bem como das escolhas aí realizadas em função do “feeling que varia inteiramente em função da singularidade de cada situação, inclusive do limite de tolerância do próprio corpo” (Ibidem, p. 69) em relação a esses desassossegos, para que seja possível perscrutar “os esquemas de ‘organização’ e não mais carregar o fardo ou permanecer fatigado ou perpetuar a dominação” (DOMINGUES, 2010a, p. 135) dos modos vigentes de ser, sentir, pensar, fazer, viver. As subjetivações à flor da pele, em Rubiane Maia, parecem se configurar, portanto, como uma espécie de convite poético-político à escuta das transmutações desses desassossegos em perturbações que, não só solicitam de nós a criação de outra vida, como também afirmam esse limiar como lócus privilegiado na experiência da “potência política de um exercício ético” (Ibidem, p. 134).