RETRATOS DE GIZ: INTERVENÇÕES URBANAS EFÊMERAS NA CIDADE DO PORTO
TEXTO CURTO Louise Kanefuku
Designer e artista, mestre em Artes Plásticas, Louise (1985, Porto Alegre) trabalha com foco em desenho e sua produção atual reverbera o próprio deslocamento para a cidade do Porto em temas como a saudade e a migração. Em Portugal desde 2017, realizou a ação “Escuto Histórias de Imigrantes” no Lote 67, a exposição “I wish I was a whale” em Lisboa, além de ter sido uma das vencedoras do Prêmio Arte Jovem 2020.
RESUMO
Neste texto, comento brevemente o processo de criação de Retratos de Giz, intervenções urbanas realizadas assim que cheguei na cidade do Porto, em 2017. O trabalho parte da seguinte instrução direcionada a três amigos: ‘encontre sua sombra retrato’ e consistia em desenhar suas silhuetas com giz a partir de suas sombras.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº17, MAR., ANO 2022
TRABALHO EM ARTE E CUIDADO
Retratos de Giz foi o primeiro trabalho que fiz ao chegar no Porto. A estranha noção de segurança nas ruas para quem vem do Brasil, o sol forte e constante de setembro e a sensação persistente de que as pessoas estavam prestes a partir foram as faíscas que fizeram surgir os retratos. A ação foi realizada com os amigos Cadu, Merz e Diego, em lugares próximos às suas respectivas residências nos pontos que faziam parte de seus caminhos cotidianos. A intenção era materializar uma ação recorrente ─ a passagem deles por aquelas ruas, ao mesmo tempo em que, pela presença do desenho, o trabalho passava a fazer parte do cotidiano dessas pessoas.
Conhecia Cadu de minha cidade de origem, Porto Alegre. Fomos colegas no Instituto de Artes, onde cursamos a graduação e, assim que passei no mestrado da U. Porto, soube que ele já estava aqui. Quando cheguei na cidade, fui recebida em sua casa, na qual me hospedei até encontrar um quarto para ficar.
Merz nasceu em Naval, um vilarejo com 300 habitantes, no norte da Espanha. Morava no Porto há cerca de 5 anos e trabalhava à distância, no setor de marketing de uma empresa. Ela, a Amanda e a Vânia foram as primeiras pessoas com quem dividi um apartamento no Porto. Merz passava bastante tempo em casa, assim como eu e, logo criamos alguma proximidade. Ela é uma daquelas pessoas que facilmente solta um palavrão e com quem rapidamente se simpatiza.
Por fim, Diego é peruano de Lima. Ele estudava na Faculdade de Economia e estava no Porto há pouco mais de um ano. Veio para a cidade pelo programa Erasmus e pretendia ficar até terminar o mestrado. Era amigo de Cadu e nos tornamos amigos também.
O desenho da sombra dos amigos remete ao mito do desenho original, em que é dito que Dibutade ou Butade, desenha a silhueta de seu amante antes de sua partida, a fim de preservar sua imagem. O mito, conhecido como a origem do desenho, descrito de diferentes formas, associa o desenho ao afeto e à resistência ao desaparecimento. Para capturar a forma da silhueta de seu companheiro, Dibutade utiliza uma vela que projeta sua sombra contra uma parede, em um gesto semelhante ao que reproduzo. A partir do registro, a mulher procura tornar presente a ausência de seu amado, resistindo à sua maneira, a realidade dos fatos. O relato também sugere que o desenho surgiu a partir de questões ligadas ao desejo e à viagem (BLOCKER, 1999. p. 97). Em Contornando a origem do desenho, Mário Bismarck, ao mencionar o mito de Dibutade, observa o paradoxo, “o desenho, no preciso momento em que se apresenta como “origem”, como início, como gerador, está ligado à ausência, à perda, à falta.” (BISMARCK, 2004, p. 6).
Através de Retratos de Giz, deixo a marca desses amigos na cidade e a minha própria marca a partir dos laços afetivos que estabelecia, ao mesmo tempo em que estava consciente da vulnerabilidade das nossas permanências no Porto. O Porto é uma cidade de constantes chegadas e partidas, de modo que a ideia era também registrar além de fazer perdurar, de alguma forma, a passagem daquelas pessoas que vinham de diferentes partes do mundo e deixavam a cidade sem deixar rastros.
Essa dimensão metafórica é intensificada no gesto que realizo para fixar o giz. Para que ele tenha adesão e cobertura, após riscar o chão, passo meus dedos sobre o pigmento, de forma suave (a fim de não machucar minhas mãos), o que remete à ação de acariciar. Nesse gesto, acaricio, simultaneamente, a silhueta e o muro que é parte da cidade, de maneira a reforçar o aspecto afetivo da ação. Na silhueta desenhada na calçada ou nos muros, a superfície usualmente utilizada para pisar ou dividir é considerada em todas as suas nuances pelo toque das minhas mãos.
No trabalho, há também a intenção de me abster da autoria da criação da obra, ao mesmo tempo em que me coloco como a pessoa que torna ela possível pela instrução e pelo trabalho manual. A arte por instrução tem como origem as experiências do grupo Fluxus e dos situacionistas. Com base na escrita ou na palavra e dependente da resposta do participante, por meio da instrução, a obra se torna um pedido, um convite a um diálogo com o outro, que, por sua vez, torna-se também autor. Por colocar em xeque o valor da obra de arte e da autoria, a arte por instrução também pode ser considerada um elemento da contracultura.
Enquanto o meu amigo tem a autoria da forma da silhueta, a instrução, a escolha da pessoa representada, a técnica e o contexto em que o trabalho é feito são indicados por mim, a partir de critérios subjetivos. Há um pequeno jogo em que meus amigos são convidados a participar. Ao fim da operação, a silhueta anônima na superfície urbana não tem a autoria reivindicada. A ação se inscreve discreta e brevemente em pontos distantes da cidade.
A escolha pela intervenção no espaço público teve origem no situacionismo. O nome do movimento, por sua vez, origina-se na crença de que os indivíduos devem construir as situações de sua vida no cotidiano, de maneira que cada um possa explorar seu potencial de modo a romper com a alienação e obter prazer próprio, sem depender da indústria cultural. Para isso, práticas como a “deriva”, a “psicogeografia” e o “desvio” incentivam caminhadas ao acaso pela cidade como estratégias de inspirar interpretações do espaço. Foi por meio da prática da deriva e da possibilidade de sugerir novas interpretações do espaço que me propus à criação desses desenhos.
Na instrução que cria uma breve encenação e no seu rastro, meus amigos se tornam representantes de outros tantos que passaram por ali e que, por acaso, não registraram sua passagem, mas poderiam tê-lo feito. Quem sabe na próxima esquina?
RETRATOS DE GIZ: INTERVENÇÕES URBANAS EFÊMERAS NA CIDADE DO PORTO
TEXTO CURTO Louise Kanefuku
Designer e artista, mestre em Artes Plásticas, Louise (1985, Porto Alegre) trabalha com foco em desenho e sua produção atual reverbera o próprio deslocamento para a cidade do Porto em temas como a saudade e a migração. Em Portugal desde 2017, realizou a ação “Escuto Histórias de Imigrantes” no Lote 67, a exposição “I wish I was a whale” em Lisboa, além de ter sido uma das vencedoras do Prêmio Arte Jovem 2020.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº17, MAR., ANO 2022
TRABALHO EM ARTE E CUIDADO
RESUMO
Neste texto, comento brevemente o processo de criação de Retratos de Giz, intervenções urbanas realizadas assim que cheguei na cidade do Porto, em 2017. O trabalho parte da seguinte instrução direcionada a três amigos: ‘encontre sua sombra retrato’ e consistia em desenhar suas silhuetas com giz a partir de suas sombras.
Retratos de Giz foi o primeiro trabalho que fiz ao chegar no Porto. A estranha noção de segurança nas ruas para quem vem do Brasil, o sol forte e constante de setembro e a sensação persistente de que as pessoas estavam prestes a partir foram as faíscas que fizeram surgir os retratos. A ação foi realizada com os amigos Cadu, Merz e Diego, em lugares próximos às suas respectivas residências nos pontos que faziam parte de seus caminhos cotidianos. A intenção era materializar uma ação recorrente ─ a passagem deles por aquelas ruas, ao mesmo tempo em que, pela presença do desenho, o trabalho passava a fazer parte do cotidiano dessas pessoas.
Conhecia Cadu de minha cidade de origem, Porto Alegre. Fomos colegas no Instituto de Artes, onde cursamos a graduação e, assim que passei no mestrado da U. Porto, soube que ele já estava aqui. Quando cheguei na cidade, fui recebida em sua casa, na qual me hospedei até encontrar um quarto para ficar.
Merz nasceu em Naval, um vilarejo com 300 habitantes, no norte da Espanha. Morava no Porto há cerca de 5 anos e trabalhava à distância, no setor de marketing de uma empresa. Ela, a Amanda e a Vânia foram as primeiras pessoas com quem dividi um apartamento no Porto. Merz passava bastante tempo em casa, assim como eu e, logo criamos alguma proximidade. Ela é uma daquelas pessoas que facilmente solta um palavrão e com quem rapidamente se simpatiza.
Por fim, Diego é peruano de Lima. Ele estudava na Faculdade de Economia e estava no Porto há pouco mais de um ano. Veio para a cidade pelo programa Erasmus e pretendia ficar até terminar o mestrado. Era amigo de Cadu e nos tornamos amigos também.
O desenho da sombra dos amigos remete ao mito do desenho original, em que é dito que Dibutade ou Butade, desenha a silhueta de seu amante antes de sua partida, a fim de preservar sua imagem. O mito, conhecido como a origem do desenho, descrito de diferentes formas, associa o desenho ao afeto e à resistência ao desaparecimento. Para capturar a forma da silhueta de seu companheiro, Dibutade utiliza uma vela que projeta sua sombra contra uma parede, em um gesto semelhante ao que reproduzo. A partir do registro, a mulher procura tornar presente a ausência de seu amado, resistindo à sua maneira, a realidade dos fatos. O relato também sugere que o desenho surgiu a partir de questões ligadas ao desejo e à viagem (BLOCKER, 1999. p. 97). Em Contornando a origem do desenho, Mário Bismarck, ao mencionar o mito de Dibutade, observa o paradoxo, “o desenho, no preciso momento em que se apresenta como “origem”, como início, como gerador, está ligado à ausência, à perda, à falta.” (BISMARCK, 2004, p. 6).
Através de Retratos de Giz, deixo a marca desses amigos na cidade e a minha própria marca a partir dos laços afetivos que estabelecia, ao mesmo tempo em que estava consciente da vulnerabilidade das nossas permanências no Porto. O Porto é uma cidade de constantes chegadas e partidas, de modo que a ideia era também registrar além de fazer perdurar, de alguma forma, a passagem daquelas pessoas que vinham de diferentes partes do mundo e deixavam a cidade sem deixar rastros.
Essa dimensão metafórica é intensificada no gesto que realizo para fixar o giz. Para que ele tenha adesão e cobertura, após riscar o chão, passo meus dedos sobre o pigmento, de forma suave (a fim de não machucar minhas mãos), o que remete à ação de acariciar. Nesse gesto, acaricio, simultaneamente, a silhueta e o muro que é parte da cidade, de maneira a reforçar o aspecto afetivo da ação. Na silhueta desenhada na calçada ou nos muros, a superfície usualmente utilizada para pisar ou dividir é considerada em todas as suas nuances pelo toque das minhas mãos.
No trabalho, há também a intenção de me abster da autoria da criação da obra, ao mesmo tempo em que me coloco como a pessoa que torna ela possível pela instrução e pelo trabalho manual. A arte por instrução tem como origem as experiências do grupo Fluxus e dos situacionistas. Com base na escrita ou na palavra e dependente da resposta do participante, por meio da instrução, a obra se torna um pedido, um convite a um diálogo com o outro, que, por sua vez, torna-se também autor. Por colocar em xeque o valor da obra de arte e da autoria, a arte por instrução também pode ser considerada um elemento da contracultura.
Enquanto o meu amigo tem a autoria da forma da silhueta, a instrução, a escolha da pessoa representada, a técnica e o contexto em que o trabalho é feito são indicados por mim, a partir de critérios subjetivos. Há um pequeno jogo em que meus amigos são convidados a participar. Ao fim da operação, a silhueta anônima na superfície urbana não tem a autoria reivindicada. A ação se inscreve discreta e brevemente em pontos distantes da cidade.
A escolha pela intervenção no espaço público teve origem no situacionismo. O nome do movimento, por sua vez, origina-se na crença de que os indivíduos devem construir as situações de sua vida no cotidiano, de maneira que cada um possa explorar seu potencial de modo a romper com a alienação e obter prazer próprio, sem depender da indústria cultural. Para isso, práticas como a “deriva”, a “psicogeografia” e o “desvio” incentivam caminhadas ao acaso pela cidade como estratégias de inspirar interpretações do espaço. Foi por meio da prática da deriva e da possibilidade de sugerir novas interpretações do espaço que me propus à criação desses desenhos.
Na instrução que cria uma breve encenação e no seu rastro, meus amigos se tornam representantes de outros tantos que passaram por ali e que, por acaso, não registraram sua passagem, mas poderiam tê-lo feito. Quem sabe na próxima esquina?
Referências Bibliográficas
ANTIN, David. Foreword: Allan Working. In: Childsplay: the Art of Allan Kaprow. Jeff Kelley. Los Angeles. Califórnia Press, 2004.
BISMARK, Mário. Contornando a origem do desenho. PSIAX, Estudos e reflexões sobre desenho e imagem. Porto, n. 3 (série I), 2004.
BLOCKER, Jane. Where is Ana Mendieta: Identity, Performativity, and Exile. Durham and Londres. Duke University Press, 1990.
HANTELMANN, Dorothea von. 2019. The Experiential Turn. Disponível em: https://walkerart.org/collections/publications/performativity/experiential-turn/. Acesso em: 20 de agosto de 2019.
Marcelino, Américo. Três idades da imagem: sombra, figura, desenho. In: António Pedro Marques (coord.). As Idades do Desenho. Lisboa: FBAUL, 2015, p. 177-190. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/20282/4/ULFBA_AS%20idades%20do%20desenho_AmericoMarcelino.pdf
Referências Bibliográficas
ANTIN, David. Foreword: Allan Working. In: Childsplay: the Art of Allan Kaprow. Jeff Kelley. Los Angeles. Califórnia Press, 2004.
BISMARK, Mário. Contornando a origem do desenho. PSIAX, Estudos e reflexões sobre desenho e imagem. Porto, n. 3 (série I), 2004.
BLOCKER, Jane. Where is Ana Mendieta: Identity, Performativity, and Exile. Durham and Londres. Duke University Press, 1990.
HANTELMANN, Dorothea von. 2019. The Experiential Turn. Disponível em: https://walkerart.org/collections/publications/performativity/experiential-turn/. Acesso em: 20 de agosto de 2019.
Marcelino, Américo. Três idades da imagem: sombra, figura, desenho. In: António Pedro Marques (coord.). As Idades do Desenho. Lisboa: FBAUL, 2015, p. 177-190. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/20282/4/ULFBA_AS%20idades%20do%20desenho_AmericoMarcelino.pdf
Lista de Imagens
1 Louise Kanefuku, Cadu, Retratos de Giz, Intervenção urbana na cidade do Porto, 2017.
2 Louise Kanefuku, Registro do processo de Merz, Retratos de Giz, Intervenção urbana na cidade do Porto, 2017.
3 Louise Kanefuku, Merz, Retratos de Giz, Intervenção urbana na cidade do Porto, 2017.
4 Louise Kanefuku, Registro do processo de Diego, Retratos de Giz, 2017.
5 Louise Kanefuku, Diego, Retratos de Giz, Intervenção urbana na cidade do Porto, 2017.
Lista de Imagens
1 Louise Kanefuku, Cadu, Retratos de Giz, Intervenção urbana na cidade do Porto, 2017.
2 Louise Kanefuku, Registro do processo de Merz, Retratos de Giz, Intervenção urbana na cidade do Porto, 2017.
3 Louise Kanefuku, Merz, Retratos de Giz, Intervenção urbana na cidade do Porto, 2017.
4 Louise Kanefuku, Registro do processo de Diego, Retratos de Giz, 2017.
5 Louise Kanefuku, Diego, Retratos de Giz, Intervenção urbana na cidade do Porto, 2017.