HIPOCAMPO: A FRASE COMO PLANO

ARTIGO DE Maria Paula Recena

Professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo Mestrado Associado UniRitter-Mackenzie, com estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS entre 2014 e 2016; doutora em Teoria, História e Crítica de Arquitetura no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da UFRGS (2013), mestre em Poéticas Visuais no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS (2005). Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRGS entre 2014 e 2015.

RESUMO

Este artigo analisa o trabalho Hipocampo, em que a relação entre frases curtas e imagens lembradas é problematizada no encontro entre a escrita e as artes visuais. O artigo faz analogia à montagem cinematográfica, todavia feita com base em frases curtas vistas como planos. Por sua vez, Hipocampo, como dispositivo de memória, traça uma segunda relação entre as frases que se atualizam no espaço e no tempo presentes. Originalmente, essa análise foi desenvolvida no âmbito de um mestrado em Poéticas Visuais, finalizado em 2005, no Programa de Pós-Gradução em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

PALAVRAS-CHAVE

Memória, Escrita, Montagem, Planos, Espaço

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.5, Nº13, JUL., ANO 2017
DEIXA O TEXTO MANCHAR

Uma memória espacial

Lembro de uma noite quente de verão (é estranho como as sensações físicas são presentes) em que estávamos sob uma parreira. Pouca luz, para espantar o calor. Eu e dois primos brincando no chão e minha mãe e minha tia sentadas a conversar. O rádio estava ligado. Não lembro com o que brincávamos no chão e nem se tínhamos alguma proteção, mas imagino que fosse um tapete de chenille, que às vezes permitiam que eu e meus primos lavássemos com muito sabão e muita espuma. Escorregávamos nele… mas essa já é uma outra imagem. Lembro das folhas da parreira, quando o rádio transmitiu a notícia de que Leila Diniz havia morrido num acidente de avião.

Quando Leila Diniz morreu, estávamos sob a parreira. (RECENA, 2005).

A narrativa que abre este artigo está resumida em sua última frase: “Quando Leila Diniz1 morreu, estávamos sob a parreira”. Essa frase, que faz parte do trabalho Hipocampo, pode ser vista como a anotação correspondente a um plano cinematográfico que, ao ser descrito, desenvolve-se em detalhes. Alguns dados são muito vívidos, como o calor, a noite, a parreira. Mas quantos detalhes de fato ocorreram e como teriam sido compostos nessa ordem que lhes confere uma sucessão temporal de acontecimentos? Investigando um pouco sobre a morte de Leila Diniz, constato que seu acidente aconteceu em 14 de junho de 1972. Era, portanto, a estação de inverno no local descrito, o que impossibilita “uma noite quente de verão”, como nos diz o texto. Seriam, então, planos sobrepostos de várias situações que estariam condensadas nessa narrativa? O trabalho Hipocampo, que será analisado, utiliza frases que descrevem imagens referentes a planos de minha memória, o que faz dele uma narrativa em que caráter pessoal e acadêmico se entrelaçam.

Hipocampo

O trabalho Hipocampo2 utiliza fios de luz ligados à rede elétrica nos quais, ao longo de sua extensão, um texto se inscreve. Hipocampo (figura 1) deve ser exposto diretamente no chão, utilizando um plano horizontal,3 sugerindo que o trabalho seja visto ao caminhar sobre ele, entre seus fios. Cada ponta de fio, um total de doze, tem uma lâmpada incandescente. Essas lâmpadas, em dois grupos de seis, estão ligadas a duas fontes com temporizadores que fazem com que sua luz pulse de forma ritmada. O ritmo em que a luz é emitida pelas lâmpadas faz uma alusão à nossa própria pulsação: o dilatar-se e contrair-se do sistema circulatório, em um ritmo mais forte ou mais fraco, de acordo com nosso estado. Esse ritmo é mais acelerado ao estarmos despertos ou mais relaxado ao estarmos propícios ao sono. Muitas vezes, nos momentos de relaxamento anteriores ao cairmos no sono, nosso pensamento é invadido por lembranças que passam a nos perturbar e a partir das quais estabelecemos um monólogo interior. Despertos, nossa pulsação se acelera até que se restabeleça um ritmo possível para o sono e para o sonho, em uma alteração de espaços de tempo entre uma pulsação e outra que se afastam, possibilitando um ritmo mais lento quando estamos tranquilos.

 

O ritmo lento do pulsar das lâmpadas colocadas sobre o chão e ligadas ao emaranhado de fios com texto lembra o estado de sonolência, um estado hipnótico que percebemos pouco antes de dormir e em que estamos sozinhos com nossos pensamentos. Essa sensação é reforçada pela forma que os fios tomam ao se espalharem, soltos sobre o chão, e pela luz rebaixada do ambiente onde o trabalho deve ser instalado. Os fios tornam-se mais pesados pela colocação dos marcadores sobre eles e, dispostos sobre o chão, lembram músculos que se afrouxam quando caímos no sono. Por tudo isso, o trabalho adquire um caráter de lassidão ou ócio que acentua uma aproximação ao estado de sonolência (figura 2).

 

Hipocampo e a questão da escrita

O texto de Hipocampo é composto de frases que se referem, cada uma, a uma breve lembrança. Trechos de texto inscritos sobre partes de fio estão ligados a outros trechos de texto localizados em outro setor de fio, escolhidos e ligados aleatoriamente, o que faz com que a disposição do trabalho sobre o chão monte uma trama que lembra uma raiz ou rizoma, isto é, uma trama cujas ramificações se estendem em todas as direções. Como são utilizadas duas fontes elétricas, duas ramificações se sobrepõem e se entrecruzam, reforçando a ideia e a imagem tanto de um rizoma quanto de uma musculatura relaxada. Como cada ponta de fio corresponde a uma lâmpada, a ideia que o trabalho propõe é a de fluxo de pensamento, como se o texto — as breves lembranças ali inscritas aleatoriamente — estivesse em movimento.

O título que dei ao trabalho é também o nome de uma das principais regiões do cérebro responsáveis pela memória. Essa região funciona associada ao sistema límbico, que, por sua vez, é onde se processam as emoções.4 O trabalho lida com lembranças que permanecem claras devido à carga emocional que as cercou, mas não necessariamente lembranças de fatos muito fortes. Por vezes, são momentos que apresentam uma sensação (um calor, uma saudade, o medo) de maneira muito clara, por meio de imagens que se condensam de maneira simplificada e eficiente em nossa memória.

Hipocampo pretende evidenciar um ambiente de memória ou fluxo de consciência, atualizando-o ao presente no espaço físico em que o trabalho é exposto. Há um tempo específico de execução do trabalho que desqualifica o sentido5 das frases que foram inscritas no fio. A repetição tanto das frases quanto da colocação mecânica dos marcadores no fio, muitas e muitas vezes, durante dias, desmembra os sentidos, a lógica e a ordem das palavras, pois essa ordem tem que ser várias vezes retomada para que sua sequência seja razoavelmente garantida.

Nesse texto, não há espaçamentos entre palavras nem entre frases. Durante sua execução, os lapsos entre uma frase e outra, a desistência de alguma frase ou o erro dos plurais com a subtração acidental de algum “s” foram alterando a construção das imagens a que elas se referiam, em uma teia intrincada, montada entre fragmentos de uma frase unidos a fragmentos6 de outra. A base original do texto é:

a memória é uma prateleira cheia de caixas numeradas•

caixas fechadas•caixas abertas•caixas dentro de caixas•

todos os exames•a primeira noite•a primeira tentativa•

aquela noite•aquele dia•ouvimos a

respiração•torniquete•

gravata•acidente•dente•todos os cartões que caíram no asfalto•

pulei a janela quando ele ia saindo pelo portão•notre dame•

pan con tomate•os primeiros neons foram em buenos aires•

o quarto de alguém que estava preso•filé a tartar•un deux trois•

casal garcia•vinho tinto e whiskie com rolling stones•

quando leila diniz morreu estávamos sob a parreira• tudo era

verde amarelo branco azul anil até a nuvem de gafanhotos•
botei os lençóis bordados no lixo e fui fazer a maquete

naquele projeto havia um triângulo

subterrâneo ligando os dois edifícios•janela

Destaquei algumas frases acima em negrito, para demonstrar como as frases se apresentam inicialmente, mas podem se compor de outra maneira ao se ligarem umas às outras formando novas frases. Isto é, sob a parreira é parte de uma frase que se refere a um determinado acontecimento, mas, ao se ligar ao trecho tudo era verde, passa a formar uma nova frase: sob a parreira tudo era verde. Na apresentação do trabalho, a leitura do texto acima é, então, dificultada de diversas maneiras: a posição do texto sobre o chão, a escrita em meio ao emaranhado de fios e a mistura entre as frases em consequência de uma montagem dissociada de seu sentido original. Portanto, minha intenção não era a de propor um texto para ser lido como usualmente o fazemos, mas de apresentar um texto que pudesse ser visto em seu contexto formal e, a partir dele, adensar seu valor e significado.

Dar densidade ao conteúdo de textos a partir de sua apresentação formal é chave para compreender o desenvolvimento de trabalhos anteriores que culminam em Hipocampo. Inicialmente, a escrita era mais clara, mas essa clareza não satisfazia a intenção de um certo jogo de falsificações ou deslocamentos que procurei propor por meio do trabalho. A escrita veio, então, se transformando em busca de meios que a tornassem parte constituinte da forma física dos trabalhos. A primeira forte transformação foi a passagem de uma situação plana — na qual carimbava palavras diretamente em pequenos tecidos que se assemelhavam a pergaminhos — para o uso das próprias matrizes que utilizava, aplicando-as diretamente no trabalho.7 Refiro-me aos tipos de chumbo, usuais em antigas tipografias, que utilizava para imprimir palavras e frases. A passagem do plano para a utilização dos próprios tipos em trabalhos tridimensionais propiciou-me uma escrita que só podia ser feita de forma espelhada,8 isto é, da direita para a esquerda, e esse foi o primeiro procedimento que tornava a leitura das palavras — legendas ou textos — dificultada.

Igualmente, os marcadores de fios elétricos utilizados nos trabalhos Insônia e Hipocampo fazem parte da mesma estratégia. Esses marcadores são anéis de plástico com letras impressas que se ajustam aos fios. Usualmente, são aplicados sobre fios em caixas de comandos elétricos, inscrevendo códigos para que posteriormente seja possível identificar a que rede pertencem tais fios quando encontrados em outras caixas de comando, instaladas em outros pontos de um edifício. Em Hipocampo, da mesma maneira, os marcadores são aplicados sobre fios, mas aqui com uma nova função: não mais marcam códigos de redes elétricas, mas sim as lembranças que, por meio da escrita feita com eles, passam a estar registradas ao longo dos fios em uma espécie de caligrama, em que a forma, difusa como o texto, se espalha pelo chão e está em consonância com seu conteúdo. A partir do uso dos marcadores, textos mais longos passam a ser utilizados, já que sua leitura permaneceria parcialmente escondida sob as dificuldades que o meio oferecia.

A artista americana Ann Hamilton utiliza procedimentos semelhantes aos aqui apontados. Em seu trabalho Lineament (1994), a artista retira linhas de texto de um livro, unindo-as e enrolando-as sobre si mesmas. Em vídeo sobre seu trabalho, a artista comenta que a manipulação das linhas de texto retiradas de um livro transforma o plano da página em um objeto tridimensional: uma bola. Aqui, a linha de texto é também a linha de um novelo de pensamentos ilhados que passa a ter uma sequência contínua dada por suas emendas. Ao contrário do que ocorre em Hipocampo, que oferece dificuldades, mas não impede a leitura do texto, em Lineament, a leitura vai se escondendo sob camadas e camadas de texto que se tornam ilegíveis. Esse trabalho, como outros de Hamilton, por se tratar de uma performance, incorpora seu tempo de execução, diferentemente de Hipocampo, no qual o tempo de execução da montagem das palavras sobre os fios é apenas indicado. Tempos semelhantes, mas que se diferenciam em sua forma de apresentação.

 

Tanto em Lineament, de Ann Hamilton, quanto em Hipocampo, os textos, ao serem lidos, são indissociáveis de sua forma. Neles, “a superposição dos modos discursivos e formais chega ao ponto onde o intercâmbio de um ao outro oferece a possibilidade de um processo de significação justificado, e que não é sem dúvida o fim da história de suas combinações.” (DOMINO, 1989, p. 67, tradução da autora).9

A memória distante

Hipocampo é um mecanismo que parodia10 o funcionamento de um tipo de memória constituída por pequenos trechos de vivências passadas que retornam em momentos diversos de nossa vida, em forma de sensações muito fortes. A construção do trabalho, transitando entre a construção formal da teia de fios e a elaboração das frases — além da experiência de manusear os fios e o texto, decidindo suas ligações e suas rupturas —, me permitiu compreender uma memória que está tão distante que já não está encadeada a uma narrativa cronológica. Uma memória que está fora de uma lógica que constitui usualmente a sequência dos fatos em nossa vida e, portanto, fora do tempo como o conhecemos. As lembranças inscritas ao longo dos fios são de alguns acontecimentos que posso lembrar, mas que estão comprometidos com aquilo que acredito ter vivido. A memória em questão é, então, uma memória que permite minhas falsificações e meus deslocamentos, e a forma do trabalho as aceitou naturalmente.

O tipo de memória a que me refiro é chamada de diversas maneiras por diferentes autores. Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, Volume 1, adotam a denominação de memória curta, contrapondo-a a uma memória longa:

Os neurólogos, os psicofisiólogos, distinguem uma memória longa e uma memória curta (da ordem de um minuto). Ora, a diferença não é somente quantitativa: a memória curta é de tipo rizoma, diagrama, enquanto que a longa é arborescente centralizada (impressão, engrama, decalque ou foto). A memória curta não é de forma alguma submetida a uma lei de contiguidade ou de imediatidade em relação a seu objeto; ela pode acontecer à distância, vir ou voltar muito tempo depois, mas sempre em condições de descontinuidade, de ruptura e de multiplicidade. […] A memória curta compreende o esquecimento como processo; ela não se confunde com o instante, mas com o rizoma coletivo, temporal e nervoso. (DELEUZE; GUATTARI, 1995. p. 25-26).

Prefiro chamar essa memória curta, a que Deleuze e Guattari se referem, de “memória distante”. Agregar a noção de distância à memória reforça seu conceito e permite deslocar a memória tanto do tempo quanto do espaço a que se refere.

À memória distante contrapõe-se uma memória recente: coisas, pessoas e acontecimentos que nos causam sentimentos que ainda reverberam em nós em consequência do recente momento em que os sentimos, como o mal-estar do acidente vivido ontem e que ainda perdura como dor em nosso corpo ou a alegria de uma bela notícia que ainda mantém em nós um resto de sorriso, delineando o otimismo que ainda sentimos. A memória recente refere-se a fatos que podemos descrever em forma de narrativa cronológica. O destino dessa narrativa será o de ser defasada por trechos apagados ou espaços vazios que nada mais são do que nossos esquecimentos, que terminam por reduzi-la a seus traços mais importantes e, finalmente, transformá-la em uma memória distante e descontínua.

Para compreender o funcionamento de uma memória distante por meio do espaço, é necessário evocar lugares que já não existem mais e apreensões de contextos construídos que marcaram momentos passados. Esses lugares e apreensões servem como estímulos que nada mais são do que deslocamentos de sensações retiradas do momento e do espaço em que as percebemos e que são reinseridas em espaços que vivemos no presente. Ao deslocarem-se, tais percepções encontram outros contextos e um outro sujeito, já que estamos em constante transformação. Por isso, se atualizam: já não são a mesma lembrança ou percepção apenas evocada, mas uma mesma lembrança que encontra um novo contexto, por sua vez gerando uma nova percepção no presente.

A relação estabelecida entre uma percepção espacial anterior e sua atualização no presente pressupõe que somos capazes de ter lembranças puramente acionadas pelo ambiente e pelo espaço. Percebemos o espaço e o ambiente (construído e natural) fundamentalmente por meio do sentido háptico,11 isto é, um sentido próximo do “tato”, mas que é percebido pelo corpo todo, não estando ligado a apenas um órgão, como os sentidos aristotélicos (visão, olfato, gosto, tato e audição). O sentido háptico leva em consideração sensações como pressão, calor, frio, dor e cinestesia. É esse sentido de percepção espacial que nos dá a sensação de orientação:

tratamos de ver a todo o momento um ponto de conexão entre as experiências da memória e as do corpo. Poderia dizer-se que nossa relação com as ideias do que está acima e abaixo, dentro e fora, à frente e atrás, como com os limites e as bordas coexiste em nossa memória com outros aspectos mais puramente visuais ou conceituais. […] Para nós a memória há de ser considerada como uma extensão da experiência, e nunca como uma negação desta. (BLOOMER; MOORE, 1982, p. 10).

Em Hipocampo, a descontinuidade do texto do trabalho torna-o um texto que não encontra foco, sendo essa, talvez, a maior dificuldade apresentada para sua leitura, pois, mesmo que as dificuldades apresentadas fisicamente pela forma de apresentação do texto fossem todas vencidas, sua leitura ainda fugiria devido a seu caráter de descontinuidade e ruptura. O texto propõe um exercício da impossibilidade da lembrança total e de suas lacunas.

Afinal, a que percepções se referem essas frases curtas? Se não há um foco possível, a narrativa a partir delas só poderá existir atualizando-as no presente? Walter Benjamin, em O Narrador, associa a narrativa ao dado oral de passagem de experiências de uma pessoa a outra. Segundo Benjamin, para que tal narrativa prossiga sendo transmitida de maneira eficiente, é necessário que essa seja o mais concisa possível. Benjamin transpõe para o texto uma narrativa de Heródoto, tomando-a como exemplo e destacando que Heródoto “não esclarece nada. O seu relato é o mais árido possível” (BENJAMIN, 1992, p. 36). Benjamin (1992, p. 36) sugere, com essa ideia, que a memorização pressupõe uma síntese narrativa que a torna secamente descritiva e requer um ambiente propício para sua assimilação:

Aquilo que nos leva a fixar as histórias na memória é, sobretudo, a sua sóbria concisão, que dispensa uma análise psicológica. E quanto mais o narrador renunciar a vertente psicológica, tanto mais facilmente a narrativa se gravará na memória do ouvinte, tanto mais perfeitamente se integrará na sua experiência, e o ouvinte desejará recontá-la mais cedo ou mais tarde. Este processo de assimilação, que se dá a um nível profundo do indivíduo, precisa de um estado de descontração que é cada vez mais raro. Se o sono é o ponto alto da descontração física, o tédio é o da psíquica.

Nessa passagem de Benjamin, encontro a razão para o ambiente de sonolência apresentado no trabalho Hipocampo, pois é nesse estado de descontração física e mental que as frases apresentadas no texto do trabalho surgem em minha memória. Cada uma delas refere-se a uma espécie de narrativa árida, que pode ser vista como um breve plano. Mas esses planos que coincidem com a síntese apontada por Benjamin não são o fim do movimento a que meu pensamento está atrelado. Há tanto um movimento de retração em que passagens ou experiências se condensam no tempo e no espaço, consolidando-se em uma narrativa pessoal que é transmitida dia a dia em um monólogo interior, quanto um movimento de expansão no momento em que tais memórias se reapresentam, embaralhando-se umas às outras e unindo-se em novas narrativas, em uma constante recriação. A ligação de uma imagem à outra lembra a forma da montagem cinematográfica que, em sua estrutura, é uma “reconstrução das leis do processo de pensamento” (EISENSTEIN, 2002, p. 105).

A frase como plano

Para escrever o texto de Hipocampo, parei alguns momentos e deixei que passagens de minha vida fossem lembradas livremente em meu pensamento. Para cada uma delas, anotei frases curtas que as descreviam rapidamente. Algumas frases se referem a acontecimentos que lembro com maior nitidez, outras se referem a fatos que, embora claros, apresentam contradições, como se fossem dois acontecimentos unidos em um só ou, até mesmo, invenções: imagens coladas a partir de outras fontes que não a minha própria experiência. Mas como tratá-lo como um texto, visto que sua apresentação formal propõe tantas dificuldades de leitura? Qual o estatuto desse texto que nada mais era do que anotações desconexas? Segundo Deleuze, em sua análise sobre o cinema, “as sucessões de imagens, e até mesmo cada imagem, um único plano, são assimiladas a proposições, ou melhor, a enunciados orais: o plano como o menor enunciado narrativo” (DELEUZE, 1990, p. 37). Com base nessa afirmação, passei a tratar o texto de Hipocampo como anotações descritivas de planos de memória, o que me permitiu analisá-lo não mais como texto, mas como descrição de imagens. Afinal, nosso processo de memória e pensamento lida com diversas linguagens, inclusive, e fortemente, com a imagem. Nesse momento, meu interesse voltou-se para a composição do plano cinematográfico e para a imagem em si, pois esses eram, essencialmente, os elementos que compunham esse monólogo interior.

Como não poderia deixar de ser, me interessei pelos escritos deixados por Sergei Eisenstein, cineasta russo que desenvolveu amplamente as teorias de montagem no cinema. Em um dado momento, seu interesse recai sobre a montagem do próprio plano, e não apenas do encadeamento entre planos. Essa mudança de enfoque de Eisenstein me pareceu essencial para compreender o conceito de memória presente no trabalho Hipocampo. Ao descrever os planos de montagem, Eisenstein faz uma comparação entre a passagem de uma narrativa convencional, que gera um pensamento “lógico-informativo”, para uma narrativa feita a partir de uma linguagem primitiva e que teria, de acordo com ele, um efeito emocional-sensorial. Para Eisenstein, “o discurso interior está exatamente no estágio da estrutura sensorial da imagem, não tendo ainda a formulação lógica com a qual o discurso se reveste antes de sair para o mundo”(1985, p.125). As frases curtas e desconexas de Hipocampo estão exatamente nesse estágio.

A estrutura de monólogo interior vista como linguagem primitiva fica mais clara com o exemplo dado por Eisenstein, de uma cena de fuga noturna do romance Poltava, de Pushkin. Eisenstein transpõe a narrativa literária com padrão “lógico-informativo” para a composição de anotações referentes a planos.

O original literário é:

Mas ninguém sabia como e quando
Ela sumira. Um pescador solitário
Ouviu naquela noite o galope de cavalos,
Vozes de cossacos e sussurros de uma mulher…

E os planos são assim decupados:

1. Galope de cavalos
2. Vozes de cossacos
3. O sussurro de uma mulher.13

Ao justapormos as imagens referentes aos planos descritos acima, temos a sensação de uma fuga, de um crime, mas em um plano sensorial-emocional como Eisenstein se refere, pois, embora com emoção, são dados simplesmente apresentados, nunca interpretados. Da mesma maneira, a concisão das descrições de imagens de Hipocampo nos indica planos de memória:

1. gravata
2. acidente
3. dente
4. todos os cartões que caíram no asfalto
5. pulei a janela quando ele ia saindo pelo portão

Frases tão curtas — eventualmente vistas como primeiros planos — atestam que existem mais informações além do que está sendo dado a ver. Para Deleuze (1983, p. 27), o extracampo seria o que, “embora perfeitamente presente, não se ouve nem se vê”, o que estaria sugerido além da imagem vista. 14

Encerro essa associação das frases do trabalho Hipocampo à ideia de planos cinematográficos com uma reflexão sobre o trabalho de Bill Viola. Em seus vídeos, Viola justapõe imagens aparentemente desconexas, para simular uma situação de sonho ou de imagens associadas à memória e a estados de pensamento mais próximos do inconsciente.

 

Muitas vezes, utiliza o próprio sono agitado ou a falta de sono como um meio de acesso a tais estados. Dentre suas imagens, uma das que considero mais impressionantes é a de seu vídeo I Do Not Know What It Is I Am Like (1986). Essa imagem mostra um elefante entrando dentro de um aposento como se isso fosse algo corriqueiro ou algo que, ao menos no vídeo de Bill Viola, não causasse surpresa. Essa imagem é muito potente, pois nos remete à forma como os deslocamentos e as condensações de nosso pensamento se apresentam: colados coesamente a partir de uma lógica aleatória, mas que constitui a realidade interna de cada indivíduo. Marie Luise Syring faz o seguinte comentário sobre o vídeo I Do Not Know What It Is I Am Like, no qual sua descrição dos planos de Bill Viola assemelha-se à construção do texto de meu trabalho Hipocampo:

Um elefante entra na habitação. É de noite. Um cachorro que mostra suas mandíbulas ameaçadoras se lança. Ataque. O animal do inferno. Um cataclisma de imagens se assalta, imagens de esperança, de medo, de decomposição. Árvore. Relâmpago. Água. Coração. Acidente. Pés. Fogo. Vela. Flor. Carro. Montanha. Mirante. A manivela do relógio faz ruído anormal e acompanha o ritmo estrepitoso das imagens. Tormento e purificação. (SYRING, 1993, p. 20, tradução da autora).15

A descrição do vídeo de Viola por meio de frases faz a ligação com o que busquei propor até aqui como a frase vista como plano em Hipocampo. Tanto as imagens de Viola quanto as frases desse meu trabalho referem-se a imagens de planos de memória, ou melhor, a imagens de memória distante, que acessamos quando vamos em direção a um estado mais inconsciente, o qual encontro no estado de insônia ou sonolência.

Conclusão

No contexto de uma pesquisa em poéticas visuais, falar de um conjunto de trabalhos incide em alguns denominadores comuns que são característicos do trabalho de um artista. Percebo, mais de uma década depois, que essas características permanecem ponto de interesse central em minha produção, especialmente questões quanto a um certo desfocamento que é possível trazer também para o universo da arquitetura. Falar separadamente sobre um trabalho, todavia, repropõe questões que lhe são próprias. Assim, vejo a escrita como um procedimento que permite imprimir um certo desfocamento às questões de memória implicadas no trabalho Hipocampo. Essa intenção tanto parece ser mais importante do que a escrita como um fim em si mesmo quanto parece trazer novo interesse para a palavra no contexto das artes visuais, como demonstram trabalhos de artistas como Ann Hamilton e Jenny Holzer, entre outros.

No universo abordado neste artigo, entender a frase como plano permite operar novas relações além das convencionais entre escrita e linguagem. Argumento, então, que esse procedimento possa ser visto em perspectiva, abarcando também procedimentos com a imagem, o movimento, a fotografia, a montagem e a arquitetura, utilizados com o mesmo propósito.

Notas de Rodapé

1  Leila Diniz, atriz e personalidade brasileira que marcou a década de 1960 e o início da década de 1970 por sua irreverência, espontaneidade e atitude libertária. Ficou nacionalmente conhecida a partir de sua atuação no filme Todas as Mulheres do Mundo (1966), de Domingos de Oliveira. Entre fatos de sua vida, são conhecidas sua entrevista ao Jornal Pasquim, em 1969, que motivou a lei de censura prévia durante o regime militar, e suas fotos grávida, com a barriga exposta na praia de Ipanema.

Hipocampo foi exposto na Pinacoteca da Feevale, na exposição Primeiro Plano, em 2003, associado ao trabalho Memória. Posteriormente, foi exposto na Pinacoteca Barão de Santo ngelo, em exposição coletiva dos alunos do mestrado em Poéticas Visuais.

3  Um plano horizontal para manipulação, assim como a mesa onde se instala Insônia e a mesa onde se manipulam as caixas de Uma Mesa, 4 Caixas e 4 Colunas, trabalhos anteriores da autora, que poderão ser vistos ao consultar a dissertação Espaço e Memória: Geometrias Desfocadas, 2005. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/4662. Acesso em: 17 de junho de 2017.

4  “A atividade do sistema límbico (as emoções) vincula os fragmentos ambíguos da ‘memória’ em todos mais coerentes, que podem ser relacionados com o contexto imediato. Não existem símbolos no cérebro; existem padrões de atividade, fragmentos, que adquirem sentidos diferentes nos diferentes contextos”. (ROSENFIELD, 1994. p. 181).

5  Em Hipocampo, há uma repetição do procedimento de inserir os marcadores de fio elétrico, um a um, ao longo de metros e metros de fio, o que desqualifica o sentido das frases; vale lembrar a passagem de Paul Valéry no qual ele desafia o sentido das palavras ao afirmar que há um estranhamento ao deslocar-se uma palavra para uma situação de isolamento ou falta do contexto da linguagem normal: “é quase cômico perguntar-se o que significa ao certo um termo que se utiliza a todo instante e obter satisfação total. Por exemplo: escolhi durante o voo a palavra Tempo. Essa palavra era totalmente límpida precisa, honesta e fiel em seu serviço, enquanto desempenhava sua parte em um propósito e era pronunciada por alguém que queria dizer alguma coisa. Mas ei-la sozinha, presa pelas asas. […] Permuta-se em enigma, em abismo, em tormento para o pensamento…” (VALÉRY, 1991-1999, p. 194-195). Em relação mais distante, mas não menos potente, Francis Ponge busca “retornar ‘às coisas mesmas’, o primado da descrição, em detrimento da reflexão e da análise. E não só: que se fale ainda na reabilitação de certas palavras essenciais, de certo estado da língua (no caso, a francesa) que Ponge faz falar e que ilumina o ser das coisas, da reabilitação do banal, dentre tantos outros pontos”. (ANTONIO, 2011).

6  Freud explicou a fragmentação da memória em termos de condensação e deslocamento, evidenciados no sonho ou em processo de análise. Israel Rosenfeld (1994, p. 78) explica as recriações da memória, ao relacioná-las ao contexto presente: “os fragmentos são tudo o que resta de nossas memórias no estado de sono, são ‘condensações’ de muitas imagens que se referem a muitas coisas diferentes, adquirindo um sentido específico num contexto, assim como as letras ganham significação no contexto das palavras”.

7  Ver: Muro (RECENA, 2001). Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa248743/maria-paula-recena. Acessado em: 17 de junho de 2017.

8  Os principais trabalhos nos quais utilizei os tipos de chumbo são Muro, Mesa e Caixinhas. A escrita com esses tipos é feita da esquerda para a direita, pois essa é a forma necessária para montar as palavras e as frases que, ao serem impressas no papel, adquirem a sua leitura convencional.

“Ainsi la superposition des modes discursifs et formels est parvenue à ce point où le rapport de l’un à l’autre offre la possibilité d’un procès de signification motivé, et qui n’est sans doute pas au bout de l’histoire de ses combinaisons”.

10  A ideia de “mecanismos que parodiam o funcionamento da memória” foi retirada do texto escrito pelo artista plástico Jailton Moreira, para o convite de minha exposição intitulada Primeiro Plano, na Pinacoteca da Feevale (Novo Hamburgo), em abril de 2003: “A exposição se compõe de duas obras: Hipocampo e Memória. A primeira eu vi na Pinacoteca Barão de Santo ngelo do Instituto de Artes da UFRGS. A segunda, só conheço o projeto. Ambas são engenhos que parodiam os mecanismos de funcionamento da memória”.

11  O sentido háptico foi definido pelo psicólogo ambiental James J. Gibson, na primeira metade do século 20. Ver: BLOOMER, Kent; MOORE, Charles. Cuerpo, Memoria y Arquitectura. Barcelona: H. Blume Ediciones, 1982, p. 46-47.

12  EISENSTEIN, Sergei. O Sentido do Filme. Editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2002. p. 37. (edição original: Harcourt Brace Jovanovich, Inc., 1949). Citado de Alexander Sergeievitch Puchkin, Polnoye Sobraniyev Sochinenil, Leningrado, 1936.

13  Idem.

14  Sob o ponto de vista que interessa a esta argumentação, Deleuze volta a questão do extracampo em A Imagem-Tempo, ao debruçar-se sobre o corte ou o falso raccord e os interstícios entre imagens. Ver A Imagem-Tempo, páginas 217 e 218.

15  “Un elefante entra en la habitación. Es de noche. Un perro que muestra sus mandíbulas con expresión amenazante se abalanza. Ataque. El animal del infierno. Un cataclismo de imágenes se asalta, imágenes de esperanza, de miedo, de descomposición. Árbol. Relámpago. Agua. Corazón. Accidente. Pez. Fuego. Vela. Flor. Coche. Montaña. Mirada. La manecilla del reloj hace ruido anormal, y acompaña el ritmo estrepitoso de las imágenes. Tormento y purificación.”

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D’água editores Ltda, 1992. (Tradução a partir da edição da Suhrkamp Verlag, 1980).

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Lista de Imagens

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Maria Paula Recena, Hipocampo e Memória. Exposição Primeiro Plano, Feevale, 2003. Fonte: Foto da autora.

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