TEXTO-PARTITURA: A ARQUEOLOGIA MUSICAL DE CERTAS PRÁTICAS ARTÍSTICAS CONTEMPORÂNEAS

ARTIGO DE MIGUEL DE ÁVILA DUARTE

Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada, com a tese “Nocagions: relações entre escrita e notação em John Cage e Hélio Oiticica”, mestre em Teoria da Literatura e graduado em História, sempre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sob o pseudônimo Miguel Javaral, publicou os livros de artista 100 Perguntas Difáceis ou o Triângulo Amoroso e Formas Totalitárias, desenvolve o projeto de colagem sonora Hanslicking Stick, faz trilhas sonoras para cinema, entre outros trabalhos com palavras, sons e imagens

RESUMO

Dentre as múltiplas formas de utilização da escrita e do texto no âmbito da arte contemporânea, o texto-partitura se destaca pela sua trajetória ligada aos desenvolvimentos da música experimental dos anos 1950 e à emergência do campo da performance no contexto do movimento Fluxus nos anos 1960. Ao promover a indeterminação por meio do recurso ao viés conotativo da interpretação, o texto-partitura possibilita a generalização do princípio da partitura, transformando a obra em um dispositivo ficcional passível de execuções radicalmente diversas, borrando as fronteiras entre música, artes plásticas e literatura.

PALAVRAS-CHAVE

Texto-partitura, John Cage, Fluxus, Performance, Arte Inespecífica

Revista ArteContexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.5, Nº13, JUL., ANO 2017
DEIXA O TEXTO MANCHAR

Instruções, proposições, word events: desde os anos 1960, parte da produção artística contemporânea tem utilizado o texto e a escrita de maneira bastante peculiar. Como se sabe, existe toda uma tradição, dentro da arte do século XX, de ativação visual da escrita no espaço expositivo, que vai das colagens cubistas e das pinturas de palavras futuristas até os letterings de Barbara Kruger e a street art, passando pela estética da neutralidade burocrática de certa arte conceitual e pelas múltiplas variantes da poesia visual e concreta. As práticas que nos interessam aqui, no entanto, se caracterizam pelo fato da escrita funcionar como um dispositivo que propõe e orienta múltiplas execuções de algo — por exemplo, certa instalação ou performance —, não destinando necessariamente o próprio texto à exibição. Entre os exemplos já canônicos, poderíamos elencar as coletâneas Grapefruit, de Yoko Ono, e Water Yam, de George Brecht, ou ainda as Cosmococas, de Hélio Oiticica e Neville D’Almeida. A difusão e a centralidade de tal procedimento no âmbito da arte contemporânea contrastam, porém, com o desconhecimento quase generalizado das suas relações fundamentais com a reconfiguração das práticas de notação musical no âmbito da música experimental de concerto dos anos 1950, em especial na obra de John Cage e demais compositores da chamada escola nova-iorquina de composição, um vínculo sublinhado pela designação aqui adotada: o texto-partitura, índice de um território artístico fronteiriço no qual questões provenientes das artes plásticas, da música e da literatura se encontram e se recontextualizam mutuamente, antecipando talvez o que Florencia Garramuño (2014) tem denominado de arte inespecífica.

No seu contexto original, o texto-partitura substitui a partitura enquanto diagrama específico, de natureza basicamente gráfica/visual, por um texto em escrita corrente, que compreende, em geral, a totalidade das instruções necessárias para a execução de uma determinada peça. Trata-se de uma resposta à crise do conceito de notação musical e, em especial, do caráter supostamente universal da partitura utilizada no Ocidente. Se, com a gravação, o caráter de registro da partitura se vê erodido e o caráter de prescrição precisa se faz redundante (como na música para tape do pós-guerra — de um Karlheinz Stockhausen ou de um Pierre Schaeffer — na qual o compositor tem controle quase total sobre quais sons o ouvinte irá escutar), a abertura para a leitura e a interpretação se tornam elementos da composição. A inclusão cada vez mais intensa dos sons considerados até então “não musicais” (afinações microtonais, instrumentos de percussão, ruídos instrumentais, vocais e eletrônicos, etc.) somada à natureza cada vez mais especulativa da música de concerto de vanguarda do período (serial, aleatória, indeterminada, etc.) significava que cada peça demandava algo como uma teoria musical própria. Tal tendência levava à multiplicação de indicações de performance e bulas variadas acopladas às partituras e a um aumento considerável da produção teórica da parte dos compositores. O texto-partitura elimina a “parte principal” da partitura, trocando-a por instruções e ideias, e substitui as estratégias tipicamente denotativas do modelo codificação/decodificação implícitas na partitura tradicional pelo viés conotativo da interpretação, fazendo da partitura o lugar do conceito e da metáfora. Música (e performance e instalação, etc.) concebida paradoxalmente como ficção.

Antes de discutir a noção de texto-partitura, precisamos antes pensar: que espécie de “suporte” — para usarmos um termo caro às artes plásticas — seria a partitura tradicional? Seria a partitura música? Considerando que qualquer definição de música se relacionará de alguma forma a sons produzidos, escutados e/ou imaginados, a resposta será não. Porém, ainda que se defina a notação como mapa e não como território, o mapeamento acaba por transformar a relação estabelecida com um determinado território. Na tradição musical erudita de matriz europeia, a partitura assumiu, de fato, funções bem mais complexas do que o mapeamento ou ainda a “écfrase visual” de uma determinada sucessão de sons. A escrita musical transforma a própria concepção de música especialmente a partir do momento — em torno do ano 1500 — em que se torna possível fazer a distinção entre a composição como objeto e a improvisação como prática. A música até então era concebida mais como evento do que como objeto. Segundo Valério Fiel da Costa:

A autonomização da obra musical pela via da sua transformação num bem de consumo, passível de reprodução e distribuição em grande escala, se dá concomitantemente ao estabelecimento da coincidência definitiva entre a obra musical e um texto que lhe seria correlato; […]. A partir do século 18, a obra musical pôde, sem prejuízo algum a uma praxis performática, transitar em formato de partitura. A premissa dessa autonomia é que o autor poderia fixar-lhe, de direito, uma representação fiel da ideia composicional que, por sua vez, seria programada para ressurgir diante do fruidor, graças à execução disciplinada de intérpretes. (COSTA, 2016, p. 2).

Tal relação tradicional com a ideia de notação musical será definitivamente transformada pela escola nova-iorquina de composição — John Cage, Morton Feldman, Earle Brown e Christian Wolff. Em oposição à direção principal do desenvolvimento da escrita musical desde a Idade Média no sentido de uma maior definição de cada um dos parâmetros musicais (instrumentação, andamento, dinâmica, etc.), tais compositores desenvolveram, a partir do começo dos anos 1950, métodos de notação, incluindo partituras gráficas, que colocavam cada vez mais escolhas que seriam anteriormente concebidas como composicionais na mão dos intérpretes, avançando o programa cageano de “deixar os sons serem sons” e abrindo a música a situações de indeterminação.

A ideia de usar o mecanismo da partitura não como um recurso de codificação/decodificação, capaz de garantir certa estabilidade para uma peça musical, mas como mecanismo de proliferação de resultados sonoros — mesmo os não previstos pelo próprio compositor —, tem como pressuposto a existência de um novo e poderoso mecanismo de registro/memória: a gravação. Pode-se afirmar que a gravação acústica — que emerge a partir dos anos 1870, impactando hábitos principalmente depois da virada do século 20 — se distanciava mais radicalmente da escrita musical do que a fotografia se distinguia do desenho, da pintura e da gravura. Ambas as técnicas dividem — além de uma cronologia próxima — o caráter indiciário enquanto registros físicos de ondas mecânicas, no caso do som, e eletromagnéticas, no caso da imagem. No entanto, os antecedentes da foto já eram imagens, signos icônicos, enquanto a escrita musical mantinha uma relação simbólica com os sons que pretendia representar. Friedrich Kittler explica a relação entre escrita, notação musical e gravação, no momento de aparecimento do fonógrafo, da seguinte forma:

Para registrar as sequências sonoras da fala, a literatura precisa confiná-las em um sistema de 26 letras, excluindo assim todas as sequências de ruído. Não é coincidência que tal sistema possua um subsistema de sete notas, a diatonia — de A [nota lá] a G [nota sol] — que forma a base da música ocidental. […]

Textos e partituras — a Europa não possuía outras formas de armazenar a temporalidade. Ambos têm por base um sistema de escrita cujo tempo é (em termos lacanianos) simbólico. Usando projeções e recuperações, tal tempo memoriza a si mesmo – como em uma cadeia de cadeias. No entanto, o que quer que acontecesse no plano físico ou (de novo seguindo o termo de Lacan) real, cega e imprevisivelmente, não poderia ser codificado de forma alguma. Logo, todo o fluxo de dados, desde que fossem efetivamente dados, precisava passar pelo gargalo do significante.  (KITTLER, 1999, p. 3-4, tradução nossa.)

O posicionamento de John Cage a respeito da gravação de áudio é, na verdade, bastante peculiar. Segundo Yasunao Tone (2003), sua oposição à gravação dificilmente é sem precedentes no âmbito da música erudita — basta pensar no regente Sergiu Celibidache —, mas, ao contrário do maestro romeno que acreditava que as gravações não eram capazes de recriar a “experiência transcendental” da sala de concerto, Cage era completamente aberto a tal tecnologia, compondo peças nas quais eram utilizados toca-discos e, posteriormente, fitas magnéticas. Para Tone, o que Cage não desejava é que gravações fixassem as variáveis que sua forma de composição tão explicitamente colocava como indeterminadas.

O texto-partitura nasce exatamente desse processo. Segundo Liz Kotz (2010), sua origem seria a versão textual da partitura de 4’33”, peça de John Cage composta inteiramente de silêncio, para a qual o compositor construiu três versões: uma em notação musical tradicional (pentagramas vazios) (fig. 1), uma gráfica (uma linha indicando a duração do que de resto é uma página em branco) (fig. 2) e uma textual (os numerais romanos de I a III, indicando os movimentos, sobre a palavra tacet, latim para “silencioso”, seguida de uma nota que descreve a estreia da peça) (fig. 3). Trata-se, para Kotz, de uma espécie de grau zero da notação, consistindo praticamente em um título, um autor e uma estrutura temporal, sendo a própria opção por efetivamente escrever partituras para a peça justificada apenas pelo desejo de inseri-la em uma certa tradição. O fato é que a ideia de que uma partitura poderia ser inteiramente escrita em linguagem comum se mostrou produtiva. Kotz propõe que

ao tornar aberta a relação regulatória entre signo e execução, a indeterminação cageana reposiciona a escrita como uma espécie de mecanismo produtivo, atribuindo, assim, à notação uma autonomia tanto estética quanto funcional — autonomia que abre as portas para que partituras, instruções, ou fragmentos de linguagem constituam a própria obra, enquanto realizações específicas apareçam como “casos”, “amostras” ou “exemplos” dela. (KOTZ, 2010, p. 48, tradução nossa).

Um dos desenvolvimentos mais importantes da lógica do texto-partitura foi o tipo de trabalho que começa a aparecer no âmbito da avant-garde nova-iorquina por volta do ano de 1960. Exemplo significativo seria o de George Brecht — artista fundador do Fluxus1 e aluno de Cage no final dos anos 1950. Junto com Yoko Ono e La Monte Young, ele foi um dos pioneiros, além de um dos exploradores mais sistemáticos, desses “textos pequenos e enigmáticos que ele chamava de partituras de eventos (event scores), inicialmente escritos como instruções para performances, e que começou a enviar por correio para amigos e conhecidos” (KOTZ, 2010, p. 61). Tendo exposto algumas vezes esses textos em galerias, Brecht publicou, em 1963, 55 deles no livro de artista Water Yam (fig. 4), composto de uma caixa com plaquetas soltas. O artista explica essa série de trabalhos da seguinte forma: “eu queria fazer música que não fosse apenas para os ouvidos. Música não é apenas o que se ouve ou o que se escuta intencionalmente, mas tudo o que acontece… Os eventos são uma extensão da música” (apud KOTZ, 2010, p. 76, tradução nossa).

Ainda que o foco de George Brecht fosse o processo como um todo e não apenas o texto que o propunha, é interessante notar como sua escrita evoluiu. O texto de uma das mais conhecidas peças de Brecht exemplifica tal evolução, incluindo duas versões para o mesmo trabalho:

DRIP MUSIC (DRIP EVENT)

For single or multiple performance

A source of dripping water and an empty vessel are arranged so that the water fall into the vessel.

Second version: Dripping. (apud KOTZ, 2010, p. 78).

Vemos aí a redução de um texto curto e objetivo, que descreve a performance proposta mantendo algo das convenções da partitura musical (a designação de qual formação pode executar a peça, por exemplo), a uma segunda versão, que consiste apenas em uma palavra: “dripping”, ambiguamente traduzível pelo gerúndio “gotejando”, pelo adjetivo “gotejante” ou pelo substantivo “gotejamento”. O caráter ambíguo e elíptico da segunda versão nos coloca em um terreno textual similar àquele da poesia moderna, notadamente em textos nos quais nenhuma ação parece ser proposta. Em Three Gap Events (Três Eventos de Intervalo), por exemplo, uma analogia que poderia ser considerada poética é construída pela justaposição de três fatos/situações onde ocorre um intervalo — uma placa na qual faltam letras, o silêncio entre dois sons e um reencontro:

THREE GAP EVENTS

  • missing-letter sign
  • between two sounds
  • meeting again

(apud KOTZ, 2010, p. 97).

Apesar de surgido no âmbito da música, o texto-partitura se tornou um ponto central de práticas como a performance e certa modalidade de arte conceitual. Tal processo encontra-se amplamente documentado no livro Word Events, de John Lely e James Saunders (2012), que reúne tanto trabalhos históricos, dos anos 1960 e 1970, quanto trabalhos mais recentes. Saunders e Lely (2012, p. XIX) destacam o fato de o texto-partitura possuir relações com “outros gêneros de escrita, como o poema, livros de regras, instruções, receitas e koans, […] poder expressar ideias e conceitos, além de fornecer prescrições para a ação”. Dentro da tradição do texto-partitura, Gavin Bryars observa que existem

dois tipos de notação textual. Em primeiro lugar, aquelas cuja forma textual é um bocado misteriosa, enigmática e algumas vezes bastante condensada. Eu colocaria Water Yam, de George Brecht, nessa categoria, […] George era um artista plástico e assim ele se envolveu com esse tipo de trabalho através do Fluxus e do território pós-happening da arte e da performance. […] Com eles [os artistas ligados ao Fluxus] havia esse amor pelo enigma e várias dessas pessoas eram muito interessadas, […] na ideia do koan, a charada inexplicável para qual você precisa ter um súbito insight, com o objetivo de alcançar um certo patamar de iluminação. Havia esse aspecto e alguns deles [dos textos-partitura] eram deliberadamente atordoantes — e eu sempre os considerei incrivelmente ricos e gratificantes por isso.

O segundo tipo se aproxima, como forma, da instrução, como é o caso com um compositor como Christian Wolff. Aqui uma situação é articulada para que, mesmo com as habilidades mais rudimentares, você consiga fazer alguma coisa e daí se dirija a uma certa esfera de improvisação. Penso em peças como Stones (fig. 5) ou Sticks, aquelas peças nas quais você tem os recursos e a maneira como você molda a peça se resume ao que acontece com o material. (apud LELY; SAUNDERS, 2012, p. 125).

Tais polos do texto-partitura podem ser associados a gêneros literários tradicionais: a coletânea dos trabalhos de Wolff chama-se Prose Collection, distinta, portanto, do caráter mais poético que caracteriza os textos ligados ao Fluxus. Yoko Ono (apud LELY; SAUNDERS, 2012, p. 303), por exemplo, fala da conexão entre essa vertente do seu trabalho e a tradição poética, mencionando a influência do haiku nos seus textos-partitura. Já o compositor Michael Pisaro (apud LELY; SAUNDERS, 2012, p. 318) comenta sobre o texto-partitura de seu colega Antoine Beuger — L’Horizon Unanime (1997-1998) —, que, mostrando sinais da influência de Hölderlin e Mallarmé, consistiria em “poesia pura (ainda que com um função mecânica)”.

Quanto à expansão do âmbito da notação para além da música, cabe também mencionar Lawrence Halprin. Seu livro de 1969, RSVP Cycles, inclui a notação (score) entre os quatro elementos que, segundo ele, podem compor os mais diversos tipos de processos criativos: “partituras são simbolizações de processos que se prolongam no tempo. O tipo mais comum de ‘partitura’ é a musical, mas alargo seu sentido a ponto de incluir ‘partituras’ em todos os campos da ação humana. Mesmo uma lista de compras ou um calendário […] são partituras.” (apud KOTZ, 2010, p. 49). Ou seja, no mesmo momento em que praticantes das mais diversas atividades passam a se interessar pelo processo de notação, para os músicos “instruções se tornaram importantes porque não era mais possível simbolizar o que você deveria fazer”, como sintetiza Robert Ashley (apud LELY; SAUNDERS, 2012, p. 89). Para Kotz:

Se […] o colapso das práticas baseadas em um meio específico fornece um modelo histórico da mudança de formas artísticas “específicas” para formas “gerais”, outra lógica se desenrola de maneira paralela, na qual um modelo geral ou sistemas de notação — seja uma partitura musical, instruções de fabricação, plantas ou diagramas arquitetônicos ou representações esquemáticas — geram realizações “específicas” em diferentes contextos. […]

Diferentemente da lógica fotográfica de original e cópia, a relação entre um sistema de notação e sua realização não se dá sob a forma de representação ou reprodução, mas sim de especificação: o modelo, esquema ou partitura não é considerado normalmente o lócus do trabalho, mas simplesmente uma ferramenta para produzi-lo; e, ainda que o trabalho deva se enquadrar em certas especificações ou configurações, sua produção difere necessariamente de execução em execução. (KOTZ, 2010, p. 193-194, tradução nossa).

Os Wall Drawings (fig. 6), série iniciada em 1970, de Sol LeWitt (apud LELY; SAUNDERS, 2012, p. 247) são um exemplo de tal generalização do princípio da partitura. Ao invés do desenho ser ali o resultado do “traço” pessoal do artista, ele apenas “concebe e planeja o desenho de parede” que é realizado por terceiros, seguindo apenas suas instruções, que serão necessariamente compreendidas de formas diferentes a cada execução. Cabe notar que, nesse caso, as instruções servem também como um certificado de autenticidade: se a obra não pode mais ser concebida em termos de objeto único, ela se torna uma ficção legal capaz de ser validada como “original” por alguma documentação suplementar.

Certa dimensão ficcional é inerente ao texto-partitura. De maneira análoga às narrativas de ficção, temos ali uma descrição, em escrita corrente, de situações concebidas através da modalidade do “como se”, da possiblidade da sua ocorrência. A relação dos textos-partitura com os eventos concretos que prescrevem — ou seja, sua performance ou execução — também não os separa de maneira inequívoca da narrativa literária que, como se sabe, pode trabalhar inclusive com ficcionalizações de acontecimentos verídicos. Tal conexão se torna mais intensa pelo fato de que, como lembra Eric Andersen (2012, p. 80), no caso do Fluxus “a maioria das partituras era escrita depois das performances. Como um registro de uma ocorrência sensível a ser distribuída entre os amigos pelo correio”.

Um passo adiante na dimensão ficcional é dado por aqueles textos-partitura que, para John Lely (2012, p. 17), “se aproveitam do fato de que, ao ler uma partitura, o leitor está necessariamente executando um processo mental”. Um exemplo seria Mandatory Happening (1966) (fig.7), de Ken Friedman, no qual se exige do performer apenas que decida se lerá ou não as instruções, o que resulta sempre em uma execução, independente da vontade do insuspeito performer. A série de composições de 1961 (fig. 8) de Tony Conrad também se baseia em uma lógica autorreferencial próxima à tautologia ou ao paradoxo. Segundo ele:

Parecia-me na época que as tendências dissociativas que as partituras de palavras traziam para o processo de composição, e consequentemente para o papel social e cultural do próprio compositor, implicavam em uma abertura para que a partitura se separasse totalmente do processo de performance musical ou escuta. Na minha This Piece Is Its Name [Esta Peça É o Próprio Título], por exemplo, não existe mais nenhuma estrutura de comando ou paradoxo para o ouvinte.

As peças curtas de palavras que escrevi em 1961, desviando as capacidades referenciais da partitura de palavras para o título ou o próprio texto da peça, antecipam o poema-palavra de [Vito] Acconci, Here, que se referia ao seu próprio lugar na página. As minhas eram, no entanto, “música”, porque devem ser compreendidas como partituras — elas ocupam o lugar cultural da escrita que propõe ações. O texto de Acconci, por outro lado, é “poesia”, já que ocupa o lugar cultural que propõe leituras. De todo jeito, minhas peças curtas, que demonstram certo fechamento hermético, fundamentalmente eliminam a sua possibilidade de performance e, naturalmente, de escuta. (apud LELY; SAUNDERS, 2012, p. 164, tradução nossa).

Já para Amnon Wolman (apud LELY; SAUNDERS, 2012, p. 420) o fato de uma peça não soar — ou seja, não implicar na produção ou escuta de sons físicos, vibrações mecânicas em um espaço específico — não quer dizer que ela não seja performada. Em um trabalho como February 26, 2000 (fig. 9), os sons descritos devem soar na imaginação do leitor, que se torna, assim, o intérprete totalmente privado da composição. Em outras palavras, ele escreve microcontos que giram em torno de sons hipotéticos, ocupando o lugar do compositor através de uma prática indiferenciável — enquanto narrativa ficcional escrita — daquela de um escritor.

A ideia de que um texto — esse artefato de escrita caracterizado por uma extrema reprodutibilidade, passível de ser não apenas copiado, como traduzido, na sua paradoxal (i)materialidade — possa constituir o disparador único de uma obra musical, uma performance, uma instalação, entre outros, tem também outras consequências interessantes. Se já nos anos 1960 algumas exposições de arte conceitual consistiam apenas no respectivo catálogo, no megaprojeto Do It — cuja primeira publicação data de 1995 e a mais recente, com contribuições de mais de 300 artistas do mundo inteiro, de 2013 — o curador suíço Hans Ulrich Obrist (2013) leva o conceito de catálogo como exposição às últimas consequências. Todos os trabalhos reunidos ali são apenas instruções ou, como temos usado o termo, textos-partituras. A partir deles, qualquer instituição ou mesmo qualquer pessoa — posto que uma subdivisão do projeto, Do it (home), como também as Cosmococas, permite execuções privadas — pode executar as obras sem o auxílio do artista, “criando um tipo de exposição aberta que se ‘desdobra’ e leva em consideração estruturas e demandas locais ao mesmo tempo que atende uma demanda internacional” que, como um filme, “pode ser exibida e assistida simultaneamente em vários lugares” (OBRIST, 2013, p. 16-17). A própria exposição possui, por sua vez, suas instruções:

1) Cada museu seleciona pelo menos 15 obras, 2) as instruções devem ser realizadas por uma equipe do museu ou pela comunidade, nada será feito pela curadoria ou pelos artistas, não haverá original, 3) a ideia de interpretação livre presidirá a execução, as obras não devem chegar a ter um caráter estático ou “assinatura”, 4) as obras devem ser destruídas ao final da exibição, exceto nos casos listados em 6, 5) os componentes das obras devem retornar a seu contexto original, 6) alguns artistas autorizam a incorporação das obras ao acervo das instituições ou a compra por visitantes mediante pagamento, 7) cada artista participante receberá a documentação fotográfica completa (OBRIST, 2013, p. 18, tradução nossa).

Tal generalização da lógica textual e ficcional que anteriormente caracterizava a literatura contrasta ainda, porém, com certo ensimesmamento do mundo das “belas letras”. Em contraste com o campo das artes plásticas, que já não se define há muito tempo mais com base em mídias ou suportes específicos — compreendendo trabalhos que se manifestam sob a forma de objetos, imagens, ações, textos, sons, etc. —, a literatura segue praticada e interpretada, na ampla maioria dos casos, como texto escrito categorizável nos tradicionais gêneros do poema, do conto e do romance, se expandindo, quando muito, para o território da dramaturgia, da crônica, do diário, das cartas, da historiografia e da crítica. No entanto, a redefinição — ou, para retomarmos o termo oswaldiano, a descoberta da obra enquanto ficção, que Hans Belting (2012, p. 189) localiza para as artes plásticas ainda em Marcel Duchamp e que, no caso da música, poderia ser atribuída a Cage — coloca o conjunto das possibilidades pós-disciplinares das artes em terreno bastante familiar para a teoria da literatura, especialmente quando tal ficção se vê articulada em um texto, como no caso dos textos-partitura. Qualquer que seja seu meio original, a “obra” — ou o que resta dessa concepção no paradigma atual — é também um mito a ser narrado, circulando como linguagem, escrita, falada ou gravada, descrita na língua de todo dia do público eventual ou no jargão teórico dos críticos. Ainda que visando os olhos, os ouvidos, o corpo e/ou a mente, toda criação contemporânea passa também necessariamente pela língua.

Notas de Rodapé

1  Régis Debray em Morte e Vida da Imagem distingue a paisagem in visu da paisagem in situ. A primeira seria a representação criada pelos artistas, a segunda, o território contemplado por um transeunte ou por quem o habitasse. Debray (1993, p. 190) afirma que a invenção da paisagem teria ocorrido primeiro in visu para depois ser reconhecida in situ.

2  No sentido etimológico da palavra, fascinum, que significa ao mesmo tempo encanto e malefício. (BRUNEL, 1998).

3  De ascendência chinesa e italiana, o artista estudou comunicação visual, passando depois a cursar Belas Artes na École Régionale Supérieure d’Expression Plastique (ERSEP), situada em Tourcoing, uma pequena cidade próxima a Lille. Aprendeu a fotografar de forma autodidata. Utiliza a internet como plataforma para mostrar seus trabalhos e também vendê-los. Para ver mais de suas fotografias, pode-se acessar: http://eyetoyporfolio.tumblr.com

4  As declarações atribuídas ao artista são conteúdo de conversas realizadas por e-mail a respeito de seu processo de criação.

5  Em A vida sensível, Emilie Coccia define o estatuto da imagem com essa expressão. A imagem proviria de um referente como um duplo deste e, no entanto, se constituiria como imagem ao passo que aquela forma semelhante se alienasse do referente, tornando-se corpo inextenso, pura aparência. Forma fora do lugar: forma que se despega do referente.

6  O artista realizou parte de sua formação na Espanha, residindo em Barcelona entre 1913 e 1915. O contato com os movimentos artísticos europeus impactou sua pintura, de modo que, nos anos que se seguiram, o artista empregava muitos azuis procurando retratar uma atmosfera onírica, como a que vira nos pós-impressionistas. Liscano (1994, p. 15-16) registra a mudança de sua pintura na medida que deixa o referencial atmosférico europeu e atenta para a luminosidade caribenha.

Referências Bibliográficas

BAUDRILLARD, J. A arte da desaparição. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

BRUNEL, P. Dicionário de mitos literários. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

CHENG, F. Vacío y plenitud: el lenguaje de la pintura china. 5ª ed. Madrid: Siruela, 2012.

COCCIA, EA vida sensível. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.

DEBRAY, R. Vida e morte da imagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

GALERIA DE ARTE NACIONAL. Armando Reverón (1889-1954). Caracas: Fundación Galería de Arte Nacional, 1998.

LISCANO, J. El erotismo creador de Armando Reverón. Caracas: Fundación Galería de Arte Nacional, 1994.

MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

REYNOLDS, G. Turner. Lisboa: Editorial Verbo, 1972.

Lista de Imagens

 Sebastien Chou, Sem título, sem data, fotografia digital, acervo do artista.

 Sebastien Chou, Sem título, sem data, fotografia digital, acervo do artista.

 Sebastien Chou, Sem título, sem data, fotografia digital, acervo do artista.

 Armando Reverón, A árvore, 1933, óleo e têmpera s/ tela, 106 x 91 cm. Fonte: https://lfranbarc.wordpress.com/

 Armando Reverón, Rancho com árvores, 1927, óleo sobre tela, 58,5 x 73 cm. Coleção particular. Fonte: https://lfranbarc.wordpress.com/

 Armando Reverón, Luz atrás da minha ramada, 1926, óleo sobre tela, 48 x 64 cm. Coleção Jorge Yebaile, Caracas. Fonte: https://lfranbarc.wordpress.com/

 JMW Turner, Manhã nas quedas d´água de Coniston, 1798, óleo sobre tela, 123 x 90 cm. Galeria Tate, Londres. Fonte: http://www.wga.hu

 JMW Turner, Tempestade de neve, 1842, óleo sobre tela, 91,5 x 122 cm. Galeria Tate, Londres. Fonte: http://www.wga.hu

 JMW Turner, Manhã após o Dilúvio, c. 1843. Óleo sobre tela, 78,5 x 78,5 cm. Galeria Tate, Londres. Fonte: http://www.wga.hu

10  Sebastien Chou, Sem título, sem data, fotografia digital. Acervo do artista.

11  Sebastien Chou, Sem título, sem data, fotografia digital. Acervo do artista.

12  Sebastien Chou, Sem título, sem data, fotografia digital. Acervo do artista.

13  Sebastien Chou, Sem título, sem data, fotografia digital. Acervo do artista.

14  Sebastien Chou, Sem título, sem data, fotografia digital. Acervo do artista.