UMA ALEGORIA DA DECOLONIALIDADE:
A PINTURA “SE CONHECEM, SE APOIAM, SE ORGANIZAM” DE CAMILA SOATO
ARTIGO
Gabriela de Andrade Rodrigues
Gabriela Rodrigues é doutoranda em História da Arte, mestra em Filosofia, licenciada em Artes Visuais, bacharel em Direito e especialista em Gestão Cultural. É escritora, artista, curadora independente e pesquisadora nas áreas de História da Arte, Estética, Gênero e Anarquismo. Possui dois livros publicados: Launa e Educação anarquista em cultura visual, além de ter organizado o livro Uma possível poética da Fuleragem, da artista Camila Soato.
RESUMO
Durante o ano de 2022, quem passou pela entrada da biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, pôde se deparar com a pintura monumental da artista brasiliense Camila Soato (1985-). Entre diversas referências e releituras, o protagonismo da cena é reservado à (con)vivência negra enquanto um autorretrato da pintora ocupa a posição coadjuvante num processo de aprendizado explícito. Em suas mãos segura o livro Quem tem medo do feminismo negro? de Djamila Ribeiro. Numa postura decolonial, Soato referencia saberes de grupos deslegitimados como produtores de conhecimento, não só pela citação do feminismo negro, mas também pela representação das soluções precárias estabelecidas corriqueiramente pela população periférica. A complexa operação realizada também retoma a obra Abaporu, de Tarsila do Amaral, e a pintura A redenção de Cam de Modesto Brocos. Além de subverter o caráter eugenista da pintura de Brocos, pretendo demonstrar que Soato inverte a lógica modernista de deglutição da cultura europeia e referencia conhecimentos deslegitimados de grupos historicamente colonizados para pautar a própria criação artística.
PALAVRAS-CHAVE
Pintura contemporânea brasileira. Camila Soato. Decolonialidade. Modernismo. Feminismo negro.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.8, Nº19, MAIO, ANO 2024
PERSPECTIVAS PARA ALÉM DA VISÃO
Introdução
Ao final de 2021, a artista brasiliense Camila Soato1 foi contemplada com o prêmio Funarte Circulação das Artes – Edição Centro-oeste que objetivava promover diversidade, democratização e acessibilidade cultural por meio do financiamento de intervenções artísticas urbanas nas capitais do Centro-oeste. Nesse momento, nasce o projeto do mural Se conhecem, se apoiam, se organizam, que deveria ser realizado na cidade de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Após algumas tentativas frustradas, a Subsecretaria de Políticas Públicas LGBT do Estado aceita receber o mural e, no início do carnaval de 2022, a artista e sua produtora seguem para a capital pantaneira. Contudo, os percalços não foram poucos. O prédio que abrigava a subsecretaria e outras repartições públicas de cultura e cidadania do Estado era uma edificação tombada e não poderia sofrer qualquer modificação em sua fachada.
A solução encontrada foi comprar cinco metros de tecido, realizar uma imprimação2 e pintar o mural no curto prazo de cinco dias. O único local disponível e seguro para a preparação e realização da pintura seria o pátio dos fundos da secretaria, tendo em vista a necessidade do trabalho diurno e noturno ininterrupto para o cumprimento de tal feito. Em condições precárias, o auxílio dos vigilantes, quase os únicos ocupantes do prédio durante o feriado, foi essencial para a realização do trabalho. A pintura carrega as marcas desse processo e, mesmo não tendo sido produzida diretamente sobre uma parede, foi exposta na fachaada do prédio que abriga a secretaria de cultura do Estado.
Em seguida, ao final do mês de abril, o mural segue para o hall de entrada da Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo. Esta, oficialmente instituída em 1925, com o nome de Biblioteca Municipal de São Paulo, teve seu prestígio consolidado após a criação do Departamento de Cultura da Municipalidade Paulistana em 1935. Este órgão foi concebido por intelectuais que protagonizaram e apoiaram a Semana de Arte Moderna, como Sérgio Milliet, Paulo Duarte e Mário de Andrade. Este último foi seu primeiro diretor (PREFEITURA, 2023). A intenção foi transformar a biblioteca no maior acervo histórico-cultural da cidade de São Paulo e do Brasil – atualmente, a instituição só perde em tamanho para a Biblioteca Nacional.
Após Mário de Andrade, a gestão da biblioteca é assumida por Rubens Borba de Moraes em 1935. Posteriormente, por Sérgio Milliet, de 1943 a 1959, que amplia consideravelmente sua atuação social e insere o espaço no contexto de efervescência cultural da cidade à época (PREFEITURA, 2022). Em 1946, a biblioteca Mário de Andrade abriga o primeiro acervo de arte moderna do país. Deste modo, ao ser coordenada por nomes de destaque da Semana de Arte Moderna de 1922 em seus anos iniciais, a instituição guarda uma profunda relação simbólica e histórica com o modernismo brasileiro, fato que não passou desapercebido por Camila Soato.
Aliás, mesmo que a obra da artista não tenha ficado exposta permanentemente em nenhum dos dois locais, a natureza pública desses ambientes carrega o trabalho da mesma potência ativista do muralismo. Este termo se refere à pintura produzida no México com características realistas e monumentais, na primeira metade do século 20. Com forte apelo social devido ao contexto pós-revolucionário, as obras deveriam educar a população histórica e politicamente, além de retomar a cultura das antigas civilizações pré-colombianas (MURALISMO, 2023). Além disso, houve o mesmo desejo de modernização através do rompimento com as escolas clássicas de arte. Os artistas do México também aliaram influências estéticas europeias à cultura nacional, influenciando fortemente o modernismo brasileiro por meio de artistas como Candido Portinari, por exemplo (CANDIDO, 2024).
É notável que o mural da artista tenha realizado todo esse trajeto de produção e exposição no ano do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, numa inversão da suposta centralidade paulista em relação ao que há de moderno no país. Além de criada e exibida em Campo Grande, a pintura faz referência à desconhecida cultura local, que é fruto da conjunção de influências europeias e nativas indígenas, causadas tanto pela colonização quanto pela ocupação forçada de sudestinos ambiciosos.
Se conhecem
A complexa operação pictórica realizada por Soato retoma a obra Abaporu, de Tarsila do Amaral3, que motivou o grupo modernista de São Paulo a criar o movimento antropofágico. “O homem que come”4 é representado com uma cabeça pequena e enormes membros, o que se acredita fazer referência ao trabalho braçal da realidade latifundiária brasileira. O título foi dado por Oswald de Andrade, que, ao se deparar com a tela, afirmou: “É o homem, plantado na terra” (AMARAL, 2003). Deste modo, apesar de ter inspirado o movimento antropofágico, a figura solitária se alimentaria da terra verde, ideia que faz referência à necessidade de um reencontro com as raízes culturais do país.
O manifesto antropofágico foi redigido como uma continuação dos propósitos alarmados na Semana de Arte Moderna de 1922 e também como uma reação ao nacionalismo ufanista que vinha se estabelecendo há alguns anos. Esse movimento criticava a perspectiva moderna paulista por ainda estar fortemente atrelada às correntes estéticas europeias. Apesar da temática do canibalismo já aparecer na literatura europeia de vanguarda da década de 20, o movimento antropofágico surge como um desejo de redescobrir um Brasil profundo para se alcançar uma síntese mais genuína da cultura nacional. Ao mesmo tempo, houve uma deglutição da cultura europeia para a modernização dessa produção artística, ideia bem demonstrada pela frase “Tupy or not tupy, that is the question” (ANDRADE, 1928. In: AMARAL, 2003. p. 278).
Oswald de Andrade pretendia inverter a tradicional representação do indígena brasileiro, construída pelo romantismo e pela produção estética do Segundo Império, assim como pelos então recentes movimentos Verde-amarelo e Anta, do nativo ingênuo e naturalmente bondoso – o bom selvagem rousseauniano. A figura antropofágica se aproximaria da ideia de força, vingança e violência, do indígena que se alimentou do corpo do conquistador à época das invasões. Dessa forma, exploravam-se as tradições e os costumes da cultura originária pouco conhecida5, sufocada pela colonização e influências burguesas posteriores à semana de 22, ao mesmo tempo em que se eximia de uma dependência estética das vertentes europeias, tendo em vista que estas seriam assimiladas para a construção de uma arte efetivamente brasileira (BAGOLIN, 2022).
Contudo, a inspiração temática de Tarsila do Amaral da mesma época estaria mais afinada com pesquisas sobre a magia e o inconsciente, o que acabaria por aproximar o movimento brasileiro ao surrealismo europeu, enquanto suas opções estéticas ainda possuíam forte influência cubista (AMARAL, 2003). A artista conta que as pinturas dessa fase foram inspiradas por histórias contadas pelas mulheres negras que trabalhavam na fazenda de sua infância. Deste modo, a concepção moderna paulista foi construída pelo viés de uma classe elitizada e branca. Ademais, a cultura a ser valorizada foi eleita por uma perspectiva ainda fundamentalmente eurocêntrica.
Diferentemente do caráter zombeteiro da Semana de Arte Moderna, o movimento antropofágico possuía o foco vanguardista de colocar a arte brasileira em condições de igualdade com a produção internacional. Para além da vontade de síntese de todas as pesquisas intentadas desde os primeiros passos do modernismo brasileiro, havia um desejo de universalização estética ao se deglutirem diferentes realidades em uma nova produção artística nacional. Para Simioni (2014), as obras produzidas nesse período adquiriram o status de símbolo identitário com valores artísticos, culturais e políticos de notabilidade nacional e internacional.
Consagrado como o primeiro movimento estético genuinamente brasileiro, ao se apropriar de estruturas formais e culturais consideradas primitivas de origem nacional, o Modernismo no Brasil conseguiu universalizar o discurso da modernidade internamente e conquistar prestígio externamente. “As periferias tornaram-se, enfim, partícipes dos movimentos culturais centrais, mas a partir de valores e estratégias que lhe eram próprios” (SIMIONI, 2014. p. 5). Contudo, destaca-se que para autores como Ronaldo Brito, Rodrigo Naves e Tadeu Chiarelli, a missão nacionalista do modernismo brasileiro constituiria sua própria deficiência, tendo em vista a necessidade de uma pesquisa formal auto-referencial para que ela se inserisse na narrativa da modernidade autônoma e teleológica de Clement Greenberg. Ainda assim, tal perspectiva é norteada pelo desenvolvimento dos campos artísticos francês e norte-americano, atribuindo a esses fenômenos uma lógica de modelos universais.
Deste modo, compreende-se que o próprio conceito de “modernismo” se encontra em disputa. Também é questionada a centralidade do movimento paulista em relação ao processo de modernização estética no resto do país, pois contesta-se a concepção de que São Paulo seria o epicentro que irradiou o modernismo nacionalmente a partir da Semana de Arte de Moderna de 1922. Na tela em pauta, Soato dialoga com esse debate ao figurar a musicista pantaneira Helena Meirelles6.
A região do Pantanal é marcada por uma longa trajetória de disputas entre portugueses, espanhóis e indígenas, além de uma realidade natural instável, influenciada pelas cheias dos rios. Na década de 40, Getúlio Vargas estimulou a ocupação das áreas centrais do Brasil por meio da campanha Marcha para o Oeste. Com o intuito de “civilizar” e “povoar” a região mediante a formação de cidades e a circulação de periódicos que divulgavam condutas modernas (NICHNIG, 2019), o ditador ignorou as populações indígenas7 que habitavam o local e estimulou massacres que transformaram amplas extensões de terra em pastos.
Diferente dos protagonistas do movimento modernista paulista, em sua maioria integrantes da elite brasileira, que primeiramente sofreram uma influência europeia para depois partirem em busca do Brasil profundo, Helena Meirelles, que possuía ascendência indígena, paraguaia, mineira e paulista conservava o chamamé como seu principal estilo musical, um ritmo nascido da mistura entre a cultura europeia e guarani, além da polca paraguaia e a guarânia. Apesar de solista instrumental, destaca-se que existem registros musicais da sua voz em guarani (GONZALEZ, 2020). A falta de reconhecimento da cultura do Brasil central é assinalada na imagem produzida por Camila Soato por figurar exatamente a capa do primeiro LP gravado pela violeira somente em 1994, já aos setenta anos, apesar de possuir mais de 60 anos de carreira à época.
A miscigenação e a multiplicidade cultural de Helena Meirelles estabelece um diálogo com a própria história da arte e suas consequências epistemológicas a partir do momento em que Soato referencia a pintura A redenção de Cam de Modesto Brocos8. Premiada com a medalha de ouro na Exposição Geral de Belas Artes de 1895, a tela do pintor espanhol retrata o repouso de uma família que representa um processo de embranquecimento racial. A avó de pele negra retinta, a mãe de tez moreno claro, o pai e um bebê com peles brancas.
A pintura também traz elementos de cunho civilizatório, pois a imagem é repartida em dois polos: o espaço à direita, apresenta o interior da casa, roupas brancas e um piso calçado que abriga o homem branco; enquanto no outro lado, observa-se um chão de terra batida, a parede da casa de pau-a-pique, vegetações e as duas mulheres não-brancas. A criança ocupa exatamente a fronteira entre os dois polos, sua pequena cabeça dá continuidade ao limiar construído pelo batente da porta e pelo xale azul da mulher. Em sua mão esquerda, o bebê carrega uma fruta laranja e direciona o olhar para o lado “incivilizado” da tela e para as palmas das mãos das mulheres que ressaltam a negritude de suas linhagens. Além de dividir espaços e concepções, o umbral apresenta a fusão da coloração familiar, mas é contrastado pela brancura intencional da criança.
Em 1911, ocorre o primeiro Congresso Universal de Raças na Inglaterra. João Batista de Lacerda é o representante escolhido pelo governo brasileiro para esse evento no qual apresenta uma teoria que exalta o embranquecimento populacional por meio da inserção de imigrantes europeus. Sua tese seria ilustrada pela tela de Modesto Brocos, com a seguinte legenda: “O negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças” (apud LOTIERZO, 2013). O antropólogo e médico carioca contradizia o pensamento determinista científico e cultural corrente de que miscigenação levaria à degeneração humana.
Tanto pela composição, quanto pelo título, a pintura de Brocos faz referência à religiosidade católica. O Genesis 9 conta do momento em que Cam, ao expor a nudez de seu pai, Noé, é condenado à escravidão junto de seu filho, Canaã. Com a expansão do catolicismo rumo aos projetos coloniais, os escritos bíblicos póstumos transformam em negra a pele de Cam e seus descendentes para naturalizar o sequestro e a servidão dos povos colonizados. Contudo, a tela de Modesto Brocos realiza o caminho inverso ao apresentar o embranquecimento sucessório como a solução para um país desejoso do republicanismo e uma escravatura recentemente revogada.
Lotierzo (2013) compreende que Brocos, além de representar uma divisão racial e civilizatória, estabelece uma diferenciação generificada ao estabelecer a masculinidade como a potência purificante. Se por um lado o pintor espanhol não reproduz a perspectiva exótica e subalterna, ou patologicamente sexualizada que os pintores das tendências orientalistas e deterministas atribuíam às mulheres não-brancas, por outro ainda as posiciona como danos a serem sanados. O tratamento diferenciado que Brocos dispensou às figuras femininas de sua tela, representadas abundantemente vestidas, à maneira ocidental, com gestualidades próximas às imagens santificadas, corresponde ao projeto político da tela. Contudo, suas mulheres representam uma raça a ser exterminada e parecem agradecer por isso, participando voluntariamente desse processo.
De maneira singular, o pintor retrata as mulheres não-brancas em um contexto de afetividade formal. O retrato familiar é ressaltado pela aliança que a mãe carrega na mão esquerda, assim como sua pose faz referência à virgem Maria. Tal tratamento afasta a personagem da comum representação de sexualidade desenfreada da mulher negra e do discurso científico corrente da época de que as mulatas seriam inférteis. Assim, Modesto Brocos se utilizou de um esquema triangular em que aproximou determinadas dimensões do feminino, do religioso e do utópico para defender sua visão política de futuro (REIS, 2021)9.
De todo modo, A redenção de Cam pressupõe o perdão divino e a libertação concedida ao povo negro escravizado por meio da possibilidade do embranquecimento racial concedido pelo homem, regeneração louvada pela senhora negra retinta que não por acaso é a única que figura descalça na tela. Na pintura de Camila Soato, a simbologia civilizatória desaparece. O limiar da porta possui a mesma tonalidade da senhora que dá graças por uma família formada por duas mulheres e um casal de crianças negras que celebram e demonstram grande afetividade. A criança posicionada no batente da porta apresenta a pele mais retinta e a postura mais altiva. O sujeito masculino branco da redenção desaparece e a porta se abre para um vazio que parece ser motivo de escárnio para as mulheres da mesa ao fundo.
Se apoiam
Se conhecem, se apoiam, se organizam contrasta a dimensão muralista com o típico tratamento rústico que Soato dispensa a suas obras. O enorme tecido de três por cinco metros não aparenta remendos ou telas modulares, evidencia a preparação pictórica que poderia receber grossas camadas de tinta e figurações, mas exibe amplos espaços de tela nua que revelam manchas, escorridos e rastros de produção. Não há costuras mas um vinco que corta a parte superior da tela. Apesar do tratamento gradual e escorrido da imprimação sobre a marca, o que primeiro atrai o olhar é a dobra. Um envelope que se abre e exibe o espetáculo abaixo. As características listras da pintora reforçam o tom teatral da obra, como cortinas que descobrem um palco. Depara-se com um panorama, um tanto quanto caótico. Vários personagens e situações que acontecem ao mesmo tempo, e quase se pode ouvir a sonoridade da imagem.
À esquerda, a senhora negra levanta os olhos e as palmas das mãos aos céus, num gesto de agradecimento sob uma rala palmeira, que se mistura a um muro de grossos tijolos de barro. O muro inacabado é cortado por um tronco de madeira, ou o que seria um portal, e leva nosso olhar para a família negra, duas mulheres e um casal de crianças. Peles e tronco marrons, solidez da madeira e do grupo que se apresenta. Uma família que posa sorridente e amorosa. A criança de blusa branca levanta o queixo orgulhosa ou satisfeita com o abraço. A senhora agradece a abundância afetiva da cena que se passa à sua frente e a reparação histórica que Soato estabelece com sua releitura.
Na retaguarda, um grupo de mulheres observa a situação sentadas numa mesa de bar. A mulher de branco e óculos escuros realiza um gesto parecido com o da senhora, mas algo entre a interrogação e a galhofa. Contudo, a turma parece interagir amistosamente com a velha mulher. No geral, os dois grupos demonstram intimidade e reciprocidade. O clima descontraído é ressaltado pelas manchas que Soato realiza ao limpar seus pincéis sobre a própria tela – provoca movimento, rastros, gestos que relembram realidade e processo. As caixas ou engradados de cerveja vazios criam a estrutura mambembe que sustenta a mesa do bar. Ainda que precária, a imagem não parece surreal, talvez pelo amarelo das caixas se aproximar da tonalidade do robusto muro à esquerda ou, possivelmente, porque poderíamos nos deparar com essa cena em qualquer bar periférico do país.
A musicista, alheia ao que acontece em seu entorno, dedilha algo na viola. A desconexão com a cena é reforçada pelo tratamento em preto e branco. Sua face carrancuda e andrógina fixa algum ponto fora da tela, como se nada daquela algazarra lhe dissesse respeito. Por fim, no canto direito da tela, sob um disco de Sol e embaixo de um Mandacaru, a pintora estuda. Se autorretrata com cabelos presos e fisionomia séria. Em suas mãos, segura a fotocópia da capa do livro Quem tem medo do feminismo negro? (RIBEIRO, 2018) em tamanho real, colada sobre a tela.
Se organizam
O título do livro de Djamila Ribeiro10 faz referência ao fato do feminismo negro ainda ser acusado de criar separações em movimentos sociais, concepção que se fundamenta numa suposta hierarquia de opressões, em que se privilegia o aspecto econômico e impõe universalidade ao humano. Contudo, para a autora, nomear necessidades e vivências, significa permitir a fala e descolonizar o discurso. Soato faz referência a sua identidade branca, estabelecendo interlocuções com o contexto à sua volta. O protagonismo da cena é reservado à vivência negra enquanto Camila Soato ocupa a posição coadjuvante num processo de aprendizado explícito, denotando o desejo de abertura para a escuta e, talvez, compreensão do outro.
A tela aqui discutida se difere do restante da produção da artista. Parte de sua produção é dedicada às releituras de pinturas icônicas da história arte, nas quais se retrata em posição de destaque, frequentemente nua, realizando gestos cotidianos, cômicos ou inserindo situações que ironizam o contexto (Figura 4). Nessas pinturas, Soato parte do próprio referencial para compreender a imagem da mulher na história da arte, onde dificilmente é representada como intelectual e produtora de arte – mais que isso, onde geralmente existe a reiteração de um modelo de feminilidade, muitas vezes, erotizado. Deste modo, seus trabalhos pretendem questionar o universalismo de uma concepção masculina, branca, cisgenero e heteronormativa11.
Já em Se conhecem, se apoiam, se organizam, Camila Soato questiona a suposta universalidade de um feminismo que não se entende interseccionado pelos diversos filtros de identidade que acompanham uma existência. Desde o discurso proferido por Sojouner Truth na Convenção dos Direitos da Mulher (Akron-Ohio, EUA), em 1843, denominado E eu não sou uma mulher?, intelectuais e ativistas negras denunciam o padrão excludente que fundamenta o feminismo branco (RIBEIRO, 2017). Ainda que há tempos historiadoras da arte feministas denunciem a posição de modelo e musa que, geralmente as mulheres ocupam na pintura, o que contribuiu para a construção de um determinado ideal de feminilidade, essas categorias não se aplicam à realidade de uma mulher negra, pois esta não possui o mesmo status de padrão de beleza, fragilidade ou domesticidade que uma mulher branca (CARNEIRO, 2003).
A posição adotada nesse quadro subverte a hierarquia que também se estabelece na epistemologia, em que o conhecimento ocidental eurocêntrico toma preponderância sobre outros saberes e cria as próprias narrativas que fundamentam o racismo. Numa postura decolonial, Soato referencia saberes de grupos deslegitimados como produtores de conhecimento, não só pela citação do feminismo negro12, mas também pela representação das soluções precárias estabelecidas corriqueiramente pela população periférica: a gambiarra construída para sustentar a mesa de bar13.
Nesse mesmo sentido, o conceito “lugar de fala” foi concebido como uma possibilidade de reconhecimento para discursos realizados fora dos campos de conhecimento consagrados pelo poder. Apesar de origem indeterminada, geralmente vincula-se o termo ao debate em torno do feminist stand point (ponto de vista feminista), teoria racial crítica e pensamento decolonial, construções teóricas que questionam a universalidade de um único sujeito para o discurso legitimado, ao mesmo tempo em que se valoriza a fala de grupos sociais minorizados política e epistemologicamente.
Destaca-se que o “lugar de fala” não se refere a experiências individuais mas a vivências historicamente compartilhadas por determinados grupos. Uma mesma pessoa pode partilhar diferentes percepções a partir da vivência com diversas realidades sociais, sem que haja uma hierarquia entre as dimensões que formam sua existência. O conceito acaba por permitir que se compreendam também as condições que ensejam a formação de cada grupo social e, por isso, as dinâmicas de poder que os acompanha. Assim, não se trata de uma descrição pura e simples de características identitárias individuais, mas o entendimento de categorias sociais. “Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência. Absolutamente não tem a ver com uma visão essencialista de que somente o negro pode falar sobre racismo, por exemplo” (RIBEIRO, 2017. p. 64).
Ainda que seja evidente a necessidade de se reivindicar a identidade da mulher negra como sujeito político e histórico, é necessário se atentar para heterogeneidade e fluidez que compõem as categorias identitárias,assim como, utilizar o mesmo hibridismo e mutabilidade como metodologia de análise e compreensão dessas dinâmicas sociais. A descolonização do conhecimento perpassa, portanto, pela desconstrução das ficções universais de verdade criadas pela retórica da modernidade, por meio de uma desobediência epistemológica. Trata-se de “desvincular-se para reexistir, o que implica em revincular-se com os legados que se quer preservar, a fim de engajar-se em modos de existência com os quais as pessoas querem se engajar” (MIGNOLO, 2016. p. 6).
Contudo, antes de se vincular é necessário conhecer. Escutar se torna essencial para aquele que sempre deteve a possibilidade de falar. Nesse sentido, a imagem construída por Camila Soato dialoga diretamente com os conceitos que embasam a teoria a que ela faz referência. Djamila Ribeiro afirma que escutar as narrativas do sujeito forçado a ocupar o lugar do Outro geram conflitos necessários para a transformação social, retirando o sujeito de poder de uma posição confortável que continuamente falou em nome daquele que pretendia silenciar. O gesto de Soato representa, portanto, a vontade de alinhamento a outros tipos de conhecimento e a própria reflexão sobre o lugar de privilégio e sujeição que a artista ocupa. Não por acaso, a artista fez questão de figurar a frase presente na contracapa do livro de Ribeiro: “Ao perder o medo do feminismo negro, as pessoas privilegiadas perceberão que nossa luta é essencial e urgente, pois enquanto nós, mulheres negras, seguirmos sendo alvo de constantes ataques, a humanidade toda corre perigo” (Ribeiro, 2018).
Lugar de fala não se refere à representatividade, mas à possibilidade de se interromper o discurso contínuo das vozes dominantes para a emergência de narrativas historicamente não ouvidas. Quando o lugar de fala desautoriza a narrativa hegemônica, ao mesmo tempo, questiona a própria soberania de um discurso que se estabeleceu por meio do epistemicídio de diversas culturas e da ficção que existe igual acesso ao poder de comunicação (RIBEIRO, 2017). Esse tipo de ação difere de uma postura contra-hegemônica, que ainda estabelece a norma como um parâmetro norteador para o conhecimento, e é exatamente o que Camila Soato pretende na tela Se conhecem, se apoiam, se organizam.
Considerações finais
A perspectiva proposta por Camila Soato relembra a necessidade da compreensão real da cultura produzida pelo ativismo brasileiro que, neste caso, faz referência ao feminismo negro. Os pés do autorretrato produzido pela artista continuam em destaque, como no Abaporu, mas se aproximam mais da realidade atual e circundante, como que firmemente fincados no chão. Não tocam as raízes de um cacto estilizado, que facilmente se confundiria com uma planta de outra nacionalidade, mas do nativo e popular Mandacaru. Soato realiza o que Mignolo (2016) denomina como “conservadorismo desobediente decolonial”, em que se preserva o necessário de cada comunidade que reexiste para não corroborar a transmutação ficcional produzida pela modernidade ocidental.
Assim, se a hierarquização epistemológica fundamentou e perpetuou mecanismos coloniais, Camila Soato inverte a lógica modernista de deglutição da cultura eurocêntrica e visibiliza conhecimentos deslegitimados de grupos historicamente colonizados para pautar a própria criação artística. Ademais, sua referência não é realizada por meio de uma interpretação elitizada, mas traz a menção direta de pensadoras do feminismo negro ou protagonistas culturais do Brasil profundo. Retoma uma imagem marco para a manutenção da ficção colonial, mesmo após a abolição da escravatura e às portas da primeira república, e representa a necessidade de uma compreensão interseccional da realidade ao figurar categorias identitárias diversas, além de subverter o caráter eugenista da pintura de Brocos.
Por fim, o tratamento estético que a artista dispensa a suas obras nos impede de mergulhar acriticamente na própria ficção que Soato produz. Somos inundados pelos diálogos e disputas narrativas, mas os gestos e rastros nos relembram da precariedade histórica e política que nos circunda e também acompanha a artista que insiste em criar. Os elementos gráficos e as ausências nos empurram a todo momento para a realidade, nos forçam a voltar, para estabelecer efetivas reflexões estéticas, práticas de transformação e não somente mutações na retórica da modernidade.
UMA ALEGORIA DA DECOLONIALIDADE:
A PINTURA “SE CONHECEM, SE APOIAM, SE ORGANIZAM” DE CAMILA SOATO
ARTIGO
Gabriela de Andrade Rodrigues
Gabriela Rodrigues é doutoranda em História da Arte, mestra em Filosofia, licenciada em Artes Visuais, bacharel em Direito e especialista em Gestão Cultural. É escritora, artista, curadora independente e pesquisadora nas áreas de História da Arte, Estética, Gênero e Anarquismo. Possui dois livros publicados: Launa e Educação anarquista em cultura visual, além de ter organizado o livro Uma possível poética da Fuleragem, da artista Camila Soato.
RESUMO
Durante o ano de 2022, quem passou pela entrada da biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, pôde se deparar com a pintura monumental da artista brasiliense Camila Soato (1985-). Entre diversas referências e releituras, o protagonismo da cena é reservado à (con)vivência negra enquanto um autorretrato da pintora ocupa a posição coadjuvante num processo de aprendizado explícito. Em suas mãos segura o livro Quem tem medo do feminismo negro? de Djamila Ribeiro. Numa postura decolonial, Soato referencia saberes de grupos deslegitimados como produtores de conhecimento, não só pela citação do feminismo negro, mas também pela representação das soluções precárias estabelecidas corriqueiramente pela população periférica. A complexa operação realizada também retoma a obra Abaporu, de Tarsila do Amaral, e a pintura A redenção de Cam de Modesto Brocos. Além de subverter o caráter eugenista da pintura de Brocos, pretendo demonstrar que Soato inverte a lógica modernista de deglutição da cultura europeia e referencia conhecimentos deslegitimados de grupos historicamente colonizados para pautar a própria criação artística.
PALAVRAS-CHAVE
Pintura contemporânea brasileira. Camila Soato. Decolonialidade. Modernismo. Feminismo negro.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.8, Nº19, MAIO, ANO 2024
PERSPECTIVAS PARA ALÉM DA VISÃO
Introdução
Ao final de 2021, a artista brasiliense Camila Soato1 foi contemplada com o prêmio Funarte Circulação das Artes – Edição Centro-oeste que objetivava promover diversidade, democratização e acessibilidade cultural por meio do financiamento de intervenções artísticas urbanas nas capitais do Centro-oeste. Nesse momento, nasce o projeto do mural Se conhecem, se apoiam, se organizam, que deveria ser realizado na cidade de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Após algumas tentativas frustradas, a Subsecretaria de Políticas Públicas LGBT do Estado aceita receber o mural e, no início do carnaval de 2022, a artista e sua produtora seguem para a capital pantaneira. Contudo, os percalços não foram poucos. O prédio que abrigava a subsecretaria e outras repartições públicas de cultura e cidadania do Estado era uma edificação tombada e não poderia sofrer qualquer modificação em sua fachada.
A solução encontrada foi comprar cinco metros de tecido, realizar uma imprimação2 e pintar o mural no curto prazo de cinco dias. O único local disponível e seguro para a preparação e realização da pintura seria o pátio dos fundos da secretaria, tendo em vista a necessidade do trabalho diurno e noturno ininterrupto para o cumprimento de tal feito. Em condições precárias, o auxílio dos vigilantes, quase os únicos ocupantes do prédio durante o feriado, foi essencial para a realização do trabalho. A pintura carrega as marcas desse processo e, mesmo não tendo sido produzida diretamente sobre uma parede, foi exposta na fachaada do prédio que abriga a secretaria de cultura do Estado.
Em seguida, ao final do mês de abril, o mural segue para o hall de entrada da Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo. Esta, oficialmente instituída em 1925, com o nome de Biblioteca Municipal de São Paulo, teve seu prestígio consolidado após a criação do Departamento de Cultura da Municipalidade Paulistana em 1935. Este órgão foi concebido por intelectuais que protagonizaram e apoiaram a Semana de Arte Moderna, como Sérgio Milliet, Paulo Duarte e Mário de Andrade. Este último foi seu primeiro diretor (PREFEITURA, 2023). A intenção foi transformar a biblioteca no maior acervo histórico-cultural da cidade de São Paulo e do Brasil – atualmente, a instituição só perde em tamanho para a Biblioteca Nacional.
Após Mário de Andrade, a gestão da biblioteca é assumida por Rubens Borba de Moraes em 1935. Posteriormente, por Sérgio Milliet, de 1943 a 1959, que amplia consideravelmente sua atuação social e insere o espaço no contexto de efervescência cultural da cidade à época (PREFEITURA, 2022). Em 1946, a biblioteca Mário de Andrade abriga o primeiro acervo de arte moderna do país. Deste modo, ao ser coordenada por nomes de destaque da Semana de Arte Moderna de 1922 em seus anos iniciais, a instituição guarda uma profunda relação simbólica e histórica com o modernismo brasileiro, fato que não passou desapercebido por Camila Soato.
Aliás, mesmo que a obra da artista não tenha ficado exposta permanentemente em nenhum dos dois locais, a natureza pública desses ambientes carrega o trabalho da mesma potência ativista do muralismo. Este termo se refere à pintura produzida no México com características realistas e monumentais, na primeira metade do século 20. Com forte apelo social devido ao contexto pós-revolucionário, as obras deveriam educar a população histórica e politicamente, além de retomar a cultura das antigas civilizações pré-colombianas (MURALISMO, 2023). Além disso, houve o mesmo desejo de modernização através do rompimento com as escolas clássicas de arte. Os artistas do México também aliaram influências estéticas europeias à cultura nacional, influenciando fortemente o modernismo brasileiro por meio de artistas como Candido Portinari, por exemplo (CANDIDO, 2024).
É notável que o mural da artista tenha realizado todo esse trajeto de produção e exposição no ano do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, numa inversão da suposta centralidade paulista em relação ao que há de moderno no país. Além de criada e exibida em Campo Grande, a pintura faz referência à desconhecida cultura local, que é fruto da conjunção de influências europeias e nativas indígenas, causadas tanto pela colonização quanto pela ocupação forçada de sudestinos ambiciosos.
Se conhecem
A complexa operação pictórica realizada por Soato retoma a obra Abaporu, de Tarsila do Amaral3, que motivou o grupo modernista de São Paulo a criar o movimento antropofágico. “O homem que come”4 é representado com uma cabeça pequena e enormes membros, o que se acredita fazer referência ao trabalho braçal da realidade latifundiária brasileira. O título foi dado por Oswald de Andrade, que, ao se deparar com a tela, afirmou: “É o homem, plantado na terra” (AMARAL, 2003). Deste modo, apesar de ter inspirado o movimento antropofágico, a figura solitária se alimentaria da terra verde, ideia que faz referência à necessidade de um reencontro com as raízes culturais do país.
O manifesto antropofágico foi redigido como uma continuação dos propósitos alarmados na Semana de Arte Moderna de 1922 e também como uma reação ao nacionalismo ufanista que vinha se estabelecendo há alguns anos. Esse movimento criticava a perspectiva moderna paulista por ainda estar fortemente atrelada às correntes estéticas europeias. Apesar da temática do canibalismo já aparecer na literatura europeia de vanguarda da década de 20, o movimento antropofágico surge como um desejo de redescobrir um Brasil profundo para se alcançar uma síntese mais genuína da cultura nacional. Ao mesmo tempo, houve uma deglutição da cultura europeia para a modernização dessa produção artística, ideia bem demonstrada pela frase “Tupy or not tupy, that is the question” (ANDRADE, 1928. In: AMARAL, 2003. p. 278).
Oswald de Andrade pretendia inverter a tradicional representação do indígena brasileiro, construída pelo romantismo e pela produção estética do Segundo Império, assim como pelos então recentes movimentos Verde-amarelo e Anta, do nativo ingênuo e naturalmente bondoso – o bom selvagem rousseauniano. A figura antropofágica se aproximaria da ideia de força, vingança e violência, do indígena que se alimentou do corpo do conquistador à época das invasões. Dessa forma, exploravam-se as tradições e os costumes da cultura originária pouco conhecida5, sufocada pela colonização e influências burguesas posteriores à semana de 22, ao mesmo tempo em que se eximia de uma dependência estética das vertentes europeias, tendo em vista que estas seriam assimiladas para a construção de uma arte efetivamente brasileira (BAGOLIN, 2022).
Contudo, a inspiração temática de Tarsila do Amaral da mesma época estaria mais afinada com pesquisas sobre a magia e o inconsciente, o que acabaria por aproximar o movimento brasileiro ao surrealismo europeu, enquanto suas opções estéticas ainda possuíam forte influência cubista (AMARAL, 2003). A artista conta que as pinturas dessa fase foram inspiradas por histórias contadas pelas mulheres negras que trabalhavam na fazenda de sua infância. Deste modo, a concepção moderna paulista foi construída pelo viés de uma classe elitizada e branca. Ademais, a cultura a ser valorizada foi eleita por uma perspectiva ainda fundamentalmente eurocêntrica.
Diferentemente do caráter zombeteiro da Semana de Arte Moderna, o movimento antropofágico possuía o foco vanguardista de colocar a arte brasileira em condições de igualdade com a produção internacional. Para além da vontade de síntese de todas as pesquisas intentadas desde os primeiros passos do modernismo brasileiro, havia um desejo de universalização estética ao se deglutirem diferentes realidades em uma nova produção artística nacional. Para Simioni (2014), as obras produzidas nesse período adquiriram o status de símbolo identitário com valores artísticos, culturais e políticos de notabilidade nacional e internacional.
Consagrado como o primeiro movimento estético genuinamente brasileiro, ao se apropriar de estruturas formais e culturais consideradas primitivas de origem nacional, o Modernismo no Brasil conseguiu universalizar o discurso da modernidade internamente e conquistar prestígio externamente. “As periferias tornaram-se, enfim, partícipes dos movimentos culturais centrais, mas a partir de valores e estratégias que lhe eram próprios” (SIMIONI, 2014. p. 5). Contudo, destaca-se que para autores como Ronaldo Brito, Rodrigo Naves e Tadeu Chiarelli, a missão nacionalista do modernismo brasileiro constituiria sua própria deficiência, tendo em vista a necessidade de uma pesquisa formal auto-referencial para que ela se inserisse na narrativa da modernidade autônoma e teleológica de Clement Greenberg. Ainda assim, tal perspectiva é norteada pelo desenvolvimento dos campos artísticos francês e norte-americano, atribuindo a esses fenômenos uma lógica de modelos universais.
Deste modo, compreende-se que o próprio conceito de “modernismo” se encontra em disputa. Também é questionada a centralidade do movimento paulista em relação ao processo de modernização estética no resto do país, pois contesta-se a concepção de que São Paulo seria o epicentro que irradiou o modernismo nacionalmente a partir da Semana de Arte de Moderna de 1922. Na tela em pauta, Soato dialoga com esse debate ao figurar a musicista pantaneira Helena Meirelles6.
A região do Pantanal é marcada por uma longa trajetória de disputas entre portugueses, espanhóis e indígenas, além de uma realidade natural instável, influenciada pelas cheias dos rios. Na década de 40, Getúlio Vargas estimulou a ocupação das áreas centrais do Brasil por meio da campanha Marcha para o Oeste. Com o intuito de “civilizar” e “povoar” a região mediante a formação de cidades e a circulação de periódicos que divulgavam condutas modernas (NICHNIG, 2019), o ditador ignorou as populações indígenas7 que habitavam o local e estimulou massacres que transformaram amplas extensões de terra em pastos.
Diferente dos protagonistas do movimento modernista paulista, em sua maioria integrantes da elite brasileira, que primeiramente sofreram uma influência europeia para depois partirem em busca do Brasil profundo, Helena Meirelles, que possuía ascendência indígena, paraguaia, mineira e paulista conservava o chamamé como seu principal estilo musical, um ritmo nascido da mistura entre a cultura europeia e guarani, além da polca paraguaia e a guarânia. Apesar de solista instrumental, destaca-se que existem registros musicais da sua voz em guarani (GONZALEZ, 2020). A falta de reconhecimento da cultura do Brasil central é assinalada na imagem produzida por Camila Soato por figurar exatamente a capa do primeiro LP gravado pela violeira somente em 1994, já aos setenta anos, apesar de possuir mais de 60 anos de carreira à época.
A miscigenação e a multiplicidade cultural de Helena Meirelles estabelece um diálogo com a própria história da arte e suas consequências epistemológicas a partir do momento em que Soato referencia a pintura A redenção de Cam de Modesto Brocos8. Premiada com a medalha de ouro na Exposição Geral de Belas Artes de 1895, a tela do pintor espanhol retrata o repouso de uma família que representa um processo de embranquecimento racial. A avó de pele negra retinta, a mãe de tez moreno claro, o pai e um bebê com peles brancas.
A pintura também traz elementos de cunho civilizatório, pois a imagem é repartida em dois polos: o espaço à direita, apresenta o interior da casa, roupas brancas e um piso calçado que abriga o homem branco; enquanto no outro lado, observa-se um chão de terra batida, a parede da casa de pau-a-pique, vegetações e as duas mulheres não-brancas. A criança ocupa exatamente a fronteira entre os dois polos, sua pequena cabeça dá continuidade ao limiar construído pelo batente da porta e pelo xale azul da mulher. Em sua mão esquerda, o bebê carrega uma fruta laranja e direciona o olhar para o lado “incivilizado” da tela e para as palmas das mãos das mulheres que ressaltam a negritude de suas linhagens. Além de dividir espaços e concepções, o umbral apresenta a fusão da coloração familiar, mas é contrastado pela brancura intencional da criança.
Em 1911, ocorre o primeiro Congresso Universal de Raças na Inglaterra. João Batista de Lacerda é o representante escolhido pelo governo brasileiro para esse evento no qual apresenta uma teoria que exalta o embranquecimento populacional por meio da inserção de imigrantes europeus. Sua tese seria ilustrada pela tela de Modesto Brocos, com a seguinte legenda: “O negro passando a branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças” (apud LOTIERZO, 2013). O antropólogo e médico carioca contradizia o pensamento determinista científico e cultural corrente de que miscigenação levaria à degeneração humana.
Tanto pela composição, quanto pelo título, a pintura de Brocos faz referência à religiosidade católica. O Genesis 9 conta do momento em que Cam, ao expor a nudez de seu pai, Noé, é condenado à escravidão junto de seu filho, Canaã. Com a expansão do catolicismo rumo aos projetos coloniais, os escritos bíblicos póstumos transformam em negra a pele de Cam e seus descendentes para naturalizar o sequestro e a servidão dos povos colonizados. Contudo, a tela de Modesto Brocos realiza o caminho inverso ao apresentar o embranquecimento sucessório como a solução para um país desejoso do republicanismo e uma escravatura recentemente revogada.
Lotierzo (2013) compreende que Brocos, além de representar uma divisão racial e civilizatória, estabelece uma diferenciação generificada ao estabelecer a masculinidade como a potência purificante. Se por um lado o pintor espanhol não reproduz a perspectiva exótica e subalterna, ou patologicamente sexualizada que os pintores das tendências orientalistas e deterministas atribuíam às mulheres não-brancas, por outro ainda as posiciona como danos a serem sanados. O tratamento diferenciado que Brocos dispensou às figuras femininas de sua tela, representadas abundantemente vestidas, à maneira ocidental, com gestualidades próximas às imagens santificadas, corresponde ao projeto político da tela. Contudo, suas mulheres representam uma raça a ser exterminada e parecem agradecer por isso, participando voluntariamente desse processo.
De maneira singular, o pintor retrata as mulheres não-brancas em um contexto de afetividade formal. O retrato familiar é ressaltado pela aliança que a mãe carrega na mão esquerda, assim como sua pose faz referência à virgem Maria. Tal tratamento afasta a personagem da comum representação de sexualidade desenfreada da mulher negra e do discurso científico corrente da época de que as mulatas seriam inférteis. Assim, Modesto Brocos se utilizou de um esquema triangular em que aproximou determinadas dimensões do feminino, do religioso e do utópico para defender sua visão política de futuro (REIS, 2021)9.
De todo modo, A redenção de Cam pressupõe o perdão divino e a libertação concedida ao povo negro escravizado por meio da possibilidade do embranquecimento racial concedido pelo homem, regeneração louvada pela senhora negra retinta que não por acaso é a única que figura descalça na tela. Na pintura de Camila Soato, a simbologia civilizatória desaparece. O limiar da porta possui a mesma tonalidade da senhora que dá graças por uma família formada por duas mulheres e um casal de crianças negras que celebram e demonstram grande afetividade. A criança posicionada no batente da porta apresenta a pele mais retinta e a postura mais altiva. O sujeito masculino branco da redenção desaparece e a porta se abre para um vazio que parece ser motivo de escárnio para as mulheres da mesa ao fundo.
Se apoiam
Se conhecem, se apoiam, se organizam contrasta a dimensão muralista com o típico tratamento rústico que Soato dispensa a suas obras. O enorme tecido de três por cinco metros não aparenta remendos ou telas modulares, evidencia a preparação pictórica que poderia receber grossas camadas de tinta e figurações, mas exibe amplos espaços de tela nua que revelam manchas, escorridos e rastros de produção. Não há costuras mas um vinco que corta a parte superior da tela. Apesar do tratamento gradual e escorrido da imprimação sobre a marca, o que primeiro atrai o olhar é a dobra. Um envelope que se abre e exibe o espetáculo abaixo. As características listras da pintora reforçam o tom teatral da obra, como cortinas que descobrem um palco. Depara-se com um panorama, um tanto quanto caótico. Vários personagens e situações que acontecem ao mesmo tempo, e quase se pode ouvir a sonoridade da imagem.
À esquerda, a senhora negra levanta os olhos e as palmas das mãos aos céus, num gesto de agradecimento sob uma rala palmeira, que se mistura a um muro de grossos tijolos de barro. O muro inacabado é cortado por um tronco de madeira, ou o que seria um portal, e leva nosso olhar para a família negra, duas mulheres e um casal de crianças. Peles e tronco marrons, solidez da madeira e do grupo que se apresenta. Uma família que posa sorridente e amorosa. A criança de blusa branca levanta o queixo orgulhosa ou satisfeita com o abraço. A senhora agradece a abundância afetiva da cena que se passa à sua frente e a reparação histórica que Soato estabelece com sua releitura.
Na retaguarda, um grupo de mulheres observa a situação sentadas numa mesa de bar. A mulher de branco e óculos escuros realiza um gesto parecido com o da senhora, mas algo entre a interrogação e a galhofa. Contudo, a turma parece interagir amistosamente com a velha mulher. No geral, os dois grupos demonstram intimidade e reciprocidade. O clima descontraído é ressaltado pelas manchas que Soato realiza ao limpar seus pincéis sobre a própria tela – provoca movimento, rastros, gestos que relembram realidade e processo. As caixas ou engradados de cerveja vazios criam a estrutura mambembe que sustenta a mesa do bar. Ainda que precária, a imagem não parece surreal, talvez pelo amarelo das caixas se aproximar da tonalidade do robusto muro à esquerda ou, possivelmente, porque poderíamos nos deparar com essa cena em qualquer bar periférico do país.
A musicista, alheia ao que acontece em seu entorno, dedilha algo na viola. A desconexão com a cena é reforçada pelo tratamento em preto e branco. Sua face carrancuda e andrógina fixa algum ponto fora da tela, como se nada daquela algazarra lhe dissesse respeito. Por fim, no canto direito da tela, sob um disco de Sol e embaixo de um Mandacaru, a pintora estuda. Se autorretrata com cabelos presos e fisionomia séria. Em suas mãos, segura a fotocópia da capa do livro Quem tem medo do feminismo negro? (RIBEIRO, 2018) em tamanho real, colada sobre a tela.
Se organizam
O título do livro de Djamila Ribeiro10 faz referência ao fato do feminismo negro ainda ser acusado de criar separações em movimentos sociais, concepção que se fundamenta numa suposta hierarquia de opressões, em que se privilegia o aspecto econômico e impõe universalidade ao humano. Contudo, para a autora, nomear necessidades e vivências, significa permitir a fala e descolonizar o discurso. Soato faz referência a sua identidade branca, estabelecendo interlocuções com o contexto à sua volta. O protagonismo da cena é reservado à vivência negra enquanto Camila Soato ocupa a posição coadjuvante num processo de aprendizado explícito, denotando o desejo de abertura para a escuta e, talvez, compreensão do outro.
A tela aqui discutida se difere do restante da produção da artista. Parte de sua produção é dedicada às releituras de pinturas icônicas da história arte, nas quais se retrata em posição de destaque, frequentemente nua, realizando gestos cotidianos, cômicos ou inserindo situações que ironizam o contexto (Figura 4). Nessas pinturas, Soato parte do próprio referencial para compreender a imagem da mulher na história da arte, onde dificilmente é representada como intelectual e produtora de arte – mais que isso, onde geralmente existe a reiteração de um modelo de feminilidade, muitas vezes, erotizado. Deste modo, seus trabalhos pretendem questionar o universalismo de uma concepção masculina, branca, cisgenero e heteronormativa11.
Já em Se conhecem, se apoiam, se organizam, Camila Soato questiona a suposta universalidade de um feminismo que não se entende interseccionado pelos diversos filtros de identidade que acompanham uma existência. Desde o discurso proferido por Sojouner Truth na Convenção dos Direitos da Mulher (Akron-Ohio, EUA), em 1843, denominado E eu não sou uma mulher?, intelectuais e ativistas negras denunciam o padrão excludente que fundamenta o feminismo branco (RIBEIRO, 2017). Ainda que há tempos historiadoras da arte feministas denunciem a posição de modelo e musa que, geralmente as mulheres ocupam na pintura, o que contribuiu para a construção de um determinado ideal de feminilidade, essas categorias não se aplicam à realidade de uma mulher negra, pois esta não possui o mesmo status de padrão de beleza, fragilidade ou domesticidade que uma mulher branca (CARNEIRO, 2003).
A posição adotada nesse quadro subverte a hierarquia que também se estabelece na epistemologia, em que o conhecimento ocidental eurocêntrico toma preponderância sobre outros saberes e cria as próprias narrativas que fundamentam o racismo. Numa postura decolonial, Soato referencia saberes de grupos deslegitimados como produtores de conhecimento, não só pela citação do feminismo negro12, mas também pela representação das soluções precárias estabelecidas corriqueiramente pela população periférica: a gambiarra construída para sustentar a mesa de bar13.
Nesse mesmo sentido, o conceito “lugar de fala” foi concebido como uma possibilidade de reconhecimento para discursos realizados fora dos campos de conhecimento consagrados pelo poder. Apesar de origem indeterminada, geralmente vincula-se o termo ao debate em torno do feminist stand point (ponto de vista feminista), teoria racial crítica e pensamento decolonial, construções teóricas que questionam a universalidade de um único sujeito para o discurso legitimado, ao mesmo tempo em que se valoriza a fala de grupos sociais minorizados política e epistemologicamente.
Destaca-se que o “lugar de fala” não se refere a experiências individuais mas a vivências historicamente compartilhadas por determinados grupos. Uma mesma pessoa pode partilhar diferentes percepções a partir da vivência com diversas realidades sociais, sem que haja uma hierarquia entre as dimensões que formam sua existência. O conceito acaba por permitir que se compreendam também as condições que ensejam a formação de cada grupo social e, por isso, as dinâmicas de poder que os acompanha. Assim, não se trata de uma descrição pura e simples de características identitárias individuais, mas o entendimento de categorias sociais. “Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência. Absolutamente não tem a ver com uma visão essencialista de que somente o negro pode falar sobre racismo, por exemplo” (RIBEIRO, 2017. p. 64).
Ainda que seja evidente a necessidade de se reivindicar a identidade da mulher negra como sujeito político e histórico, é necessário se atentar para heterogeneidade e fluidez que compõem as categorias identitárias,assim como, utilizar o mesmo hibridismo e mutabilidade como metodologia de análise e compreensão dessas dinâmicas sociais. A descolonização do conhecimento perpassa, portanto, pela desconstrução das ficções universais de verdade criadas pela retórica da modernidade, por meio de uma desobediência epistemológica. Trata-se de “desvincular-se para reexistir, o que implica em revincular-se com os legados que se quer preservar, a fim de engajar-se em modos de existência com os quais as pessoas querem se engajar” (MIGNOLO, 2016. p. 6).
Contudo, antes de se vincular é necessário conhecer. Escutar se torna essencial para aquele que sempre deteve a possibilidade de falar. Nesse sentido, a imagem construída por Camila Soato dialoga diretamente com os conceitos que embasam a teoria a que ela faz referência. Djamila Ribeiro afirma que escutar as narrativas do sujeito forçado a ocupar o lugar do Outro geram conflitos necessários para a transformação social, retirando o sujeito de poder de uma posição confortável que continuamente falou em nome daquele que pretendia silenciar. O gesto de Soato representa, portanto, a vontade de alinhamento a outros tipos de conhecimento e a própria reflexão sobre o lugar de privilégio e sujeição que a artista ocupa. Não por acaso, a artista fez questão de figurar a frase presente na contracapa do livro de Ribeiro: “Ao perder o medo do feminismo negro, as pessoas privilegiadas perceberão que nossa luta é essencial e urgente, pois enquanto nós, mulheres negras, seguirmos sendo alvo de constantes ataques, a humanidade toda corre perigo” (Ribeiro, 2018).
Lugar de fala não se refere à representatividade, mas à possibilidade de se interromper o discurso contínuo das vozes dominantes para a emergência de narrativas historicamente não ouvidas. Quando o lugar de fala desautoriza a narrativa hegemônica, ao mesmo tempo, questiona a própria soberania de um discurso que se estabeleceu por meio do epistemicídio de diversas culturas e da ficção que existe igual acesso ao poder de comunicação (RIBEIRO, 2017). Esse tipo de ação difere de uma postura contra-hegemônica, que ainda estabelece a norma como um parâmetro norteador para o conhecimento, e é exatamente o que Camila Soato pretende na tela Se conhecem, se apoiam, se organizam.
Considerações finais
A perspectiva proposta por Camila Soato relembra a necessidade da compreensão real da cultura produzida pelo ativismo brasileiro que, neste caso, faz referência ao feminismo negro. Os pés do autorretrato produzido pela artista continuam em destaque, como no Abaporu, mas se aproximam mais da realidade atual e circundante, como que firmemente fincados no chão. Não tocam as raízes de um cacto estilizado, que facilmente se confundiria com uma planta de outra nacionalidade, mas do nativo e popular Mandacaru. Soato realiza o que Mignolo (2016) denomina como “conservadorismo desobediente decolonial”, em que se preserva o necessário de cada comunidade que reexiste para não corroborar a transmutação ficcional produzida pela modernidade ocidental.
Assim, se a hierarquização epistemológica fundamentou e perpetuou mecanismos coloniais, Camila Soato inverte a lógica modernista de deglutição da cultura eurocêntrica e visibiliza conhecimentos deslegitimados de grupos historicamente colonizados para pautar a própria criação artística. Ademais, sua referência não é realizada por meio de uma interpretação elitizada, mas traz a menção direta de pensadoras do feminismo negro ou protagonistas culturais do Brasil profundo. Retoma uma imagem marco para a manutenção da ficção colonial, mesmo após a abolição da escravatura e às portas da primeira república, e representa a necessidade de uma compreensão interseccional da realidade ao figurar categorias identitárias diversas, além de subverter o caráter eugenista da pintura de Brocos.
Por fim, o tratamento estético que a artista dispensa a suas obras nos impede de mergulhar acriticamente na própria ficção que Soato produz. Somos inundados pelos diálogos e disputas narrativas, mas os gestos e rastros nos relembram da precariedade histórica e política que nos circunda e também acompanha a artista que insiste em criar. Os elementos gráficos e as ausências nos empurram a todo momento para a realidade, nos forçam a voltar, para estabelecer efetivas reflexões estéticas, práticas de transformação e não somente mutações na retórica da modernidade.
Notas de Rodapé
1. Camila Soato (Brasília-DF, 1985-) é uma artista plástica que trabalha principalmente com pintura e a temática da fuleragem poética. É doutora em poéticas contemporâneas pela Universidade de São Paulo. Participou da 11ª Bienal de Artes do Mercosul e da XXII Bienal Internacional de Arte de Cerveira (Portugal). Recebeu diversos prêmios, entre eles: Salão de Pequenos Formatos de Britânia-GO; Funarte Circulação das Artes – Edição Centro-Oeste; Prêmio PIPA Voto Popular de melhor exposição – Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e Bolsa Funarte Estímulo à Produção em Artes Visuais.
2. Imprimatura é o preparo do tecido da tela para o recebimento posterior das camadas de tinta. A técnica protege as fibras do tecido, confere uniformidade à superfície e, no caso da tinta a óleo, impede que seus ácidos fiquem em contato direto com as fibras, proporcionando maior durabilidade às pinturas. Deste modo, a imprimação consiste numa primeira fina camada que cobre a superfície da tela, geralmente composta por gesso crê, cola, água e, eventualmente, pigmento.
3. Tarsila de Aguiar do Amaral (1886-1973) foi uma importante pintora e desenhista brasileira. É considerada uma das principais artistas modernistas latino-americanas, uma referência do movimento no país.
4. Tradução apresentada por Aracy Amaral como aba: homem, poru: que come. Contudo, de acordo com o Dicionário Tupi(antigo)-português (1987) de Moacyr Ribeiro de Carvalho, aba consiste num sufixo verbal que leva o sentido do verbo adicionado à composição. E por-ú, como verbo intransitivo, possui o significado de “comer carne humana”. Nesse sentido, Abaporu significa o ato de comer carne humana. De acordo com o mesmo dicionário, “abá panema. Substantivo: 1. índio comedor de gente, antropófago. 2. O homem que espia, espião” (CARVALHO, 1987)
5. Destaca-se certa ingenuidade no pensamento oswaldiano, tendo em vista que nem todos os indígenas brasileiros foram antropófagos. Além disso há relatos de que o ritual antropofágico também fora realizado por conquistadores espanhóis que se alimentaram de indígenas da região do rio Prata e venderam as partes não consumidas (BAGOLIN, 2022).
6. Nascida em 1924 (-2005), em Bataguassu (atual Mato Grosso do Sul), tocava viola desde os nove anos de idade, mas só obteve reconhecimento aos sessenta e nove anos, quando foi escolhida uma das cem melhores guitarristas do mundo pelo voto decisivo de Eric Clapton na revista estadunidense Guitar Player. Com uma história de vida conturbada, permeada por mistérios e contradições, Meirelles cresceu em meio aos peões e violeiros das comitivas. Apesar da proibição de sua família, aprendeu a tocar o instrumento sozinha. Aos dezessete anos foi forçada a se casar, mas abandonou seu primeiro marido para se dedicar à música. Teve outros relacionamentos e onze filhos, os quais afirma ter parido por conta própria. Criou somente dois deles até o fim da vida. Os outros, deixou com sua família para tocar em festas, bordéis e bares de beira de estrada – sua grande paixão. Em 2012, foi incluída na lista “30 maiores ícones brasileiros da guitarra e do violão” (Categoria: Raízes Brasileiras), da revista Rolling Stone Brasil (NICHNIG, 2019).
7. Em 2019, o estado do Mato Grosso do Sul concentrava a segunda maior população indígena do país, reunindo onze diferentes etnias: Terena, Kinikinau, Kaiowa e Guarani, Kadiwéu, Ofaié, Guató, Chamacoco, Ayoreo, Atikum e Camba (NICHNIG, 2019).
8. Modesto Brocos y Gómez (1852-1936) foi pintor, escritor e gravurista. Nasce em Santiago de Compostela (Espanha) mas, aos vinte anos, se estabelece no Brasil e frequenta as aulas de Victor Meirelles e Zeferino da Costa. Posteriormente, frequenta ateliês e academias de arte em Paris, Roma e Madrid, onde recebe influências filosóficas e estéticas de movimentos como o determinismo, realismo, naturalismo, orientalismo, romantismo e impressionismo.
9. Miguel Lúcio dos Reis (2021) faz interessante aproximação entre a pintura A redenção de Cam (1895), de Modesto Brocos, e Viaje a Marte (1930), novela utópica do mesmo autor que traduz as concepções morais e políticas do artista e localiza as mulheres numa posição de assistência sexual e abnegação servil à humanidade. “Em Marte, três décadas depois, ao reutilizar futuro, feminino e religião, Brocos se assegurou de coordenar os corpos femininos com o propósito do progresso, bem como na pintura” (REIS, 2021. p. 9). Ainda assim, seu livro é considerado progressista para o contexto de seu tempo, beirando ao socialismo e ao anarquismo.
10. Djamila Taís Ribeiro dos Santos (1980-) é uma escritora, filósofa e acadêmica brasileira que realiza pesquisas no âmbito feminismo e negritude. Tornou-se conhecida pelo seu intenso ativismo na internet e foi responsável pela popularização do termo “lugar de fala” no Brasil. Em 2022, foi integrada à Academia Paulista de Letras.
11. Consultar RODRIGUES, Gabriela de Andrade. Manet e Mané: Visões da diferença. In: SÁ, Alexandre; VIEIRA, Marco Antônio. Dossiê Devires Decoloniais: Resistências, Impasses, Estratégias. Revista ouvirOUver. Uberlândia: PPGIARTE-UFU, jan./jun. 2024. v. 20, n. 1, p. 157-176.
Disponível em: <https://seer.ufu.br/index.php/ouvirouver/article/view/67272/37818>. Acesso em 12 mar. 2024.
12. Destaca-se que o livro Quem tem medo do feminismo negro? consiste num compilado de artigos publicados na revista Carta Capital, acompanhado de um prefácio em que a autora realiza um ensaio autobiográfico. Conferir Collins (2016) para se aprofundar sobre a importância da oralidade e autodefinição para o feminismo negro e a produção de conhecimento.
13. Camila Soato afirma que é influenciada pela atmosfera mambembe da infância vivida em Planaltina-GO e define sua pesquisa estética como a poética da fuleragem (SOATO, 2022).
Referências Bibliográficas
AMARAL, Aracy A. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Ed. 34; Edusp, 2003.
BAGOLIN, Luiz Armando; REINER, Fabrício. Era uma vez o moderno [1910-1944]: uma breve história do modernismo brasileiro. São Paulo: SESI-SP, 2022.
CANDIDO, Portinari. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2024. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10686/candido-portinari>. Acesso em 08 mar. 2024. Verbete da Enciclopédia.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDEDORES SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003. [Coleção valores e atitudes, série Valores; n. 1. Não discriminação]
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SOATO, Camila; Rodrigues, Gabriela de A.; Medeiros, Maria Beatriz de. Uma possível poética da fuleragem. Brasília: Óia Arte Contemporânea, 2022.
Lista de Imagens
1. (Capa) – Camila Soato. Se conhecem, se apoiam, se organizam, 2022. Acrílica sobre tela. 300 x 500 cm. Biblioteca Mário de Andrade. Fonte: registro da autora.
2. Fachada da Secretaria de Estado de Cidadania e Cultura do Mato Grosso do Sul. Campo Grande-MS, 2022. Fonte: registro da autora.
3. Saguão da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo-SP, 2022. Fonte: registro da autora.
4. Tarsila do Amaral. Abaporu, 1929. Óleo sobre tela. 85 x 72 cm. Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires (MALBA). Fonte: https://coleccion.malba.org.ar/abaporu/
5. Modesto Brocos. A redenção de Cam, 1895. Óleo sobre tela. 199 x 166 cm. Museu Nacional de Belas Artes. Fonte: https://artsandculture.google.com
6. Camila Soato. Cafajestes, 2015. Óleo sobre tela. 180 x 130 cm. Fotografia da Zipper galeria.