CINEMAS PERIFÉRICOS – OLHAR O OUTRO A PARTIR DE SEU CONTEXTO
TEXTO CURTO
Ivonete Pinto
Doutora pela ECA/USP com tese sobre cinema iraniano. Professora Associada no curso de Cinema e Audiovisual e Cinema de Animação da UFPel, e crítica de cinema. Cobriu e foi jurada em festivais de cinema como Locarno, Toronto, Havana, Teerã, San Sebastian e Rio de Janeiro. Autora de Cinemas periféricos: estéticas e contextos não hegemônicos; coorganizadora de Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro e Ismail Xavier: um pensador do cinema brasileiro.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.8, Nº19, MAIO, ANO 2024
PERSPECTIVAS PARA ALÉM DA VISÃO
O texto aborda as diferentes nomenclaturas em torno do cinema periférico, buscando compreender como se apresentam os filmes de países de culturas distantes a partir de suas estruturas de produção.
Um filme periférico costuma ser visto como aquele que tem origem em algum país fora do centro de produção hegemônico. Tanto a crítica, quanto a academia e o público, lidam com a noção de que filmes norte-americanos e europeus não estão à margem porque são distribuídos de forma mais ampla em salas de cinema e streaming. Logo, o cinema brasileiro seria um cinema periférico. Mas periférico para quem? Trata-se de uma percepção de dentro para fora; a definição do que é periférico precisa de outras perspectivas, preferencialmente a partir de um ponto de vista afastado, de forma a contemplar múltiplos ângulos. Porém, deixemos o cinema brasileiro para análise em outra oportunidade.
Em Cinemas periféricos: estéticas e contextos não hegemônicos, de Ivonete Pinto (2021), buscamos um entendimento preliminar sobre o tema, que localizou em Octavio Getino e Fernando Solanas a defesa do Terceiro Cinema. Os cineastas e pensadores argentinos propunham que deixássemos de ser colonizados e encontrássemos nossa própria expressão.1 Um cinema revolucionário para combater a ocupação da indústria norte-americana. Embora sem investir no componente ideológico, essa defesa está em franco diálogo com as ideias de Paulo Emilio Salles Gomes e sua teoria do “ocupado e ocupante”, que configura a identidade nacional tendo como ponto de partida nossa condição subdesenvolvida.2
Questões ligadas à dependência econômica e cultural de países desenvolvidos também emergem quando colocamos em foco outros conceitos, como o de world cinema. Nesse caso, encontramos um juízo estendido em World Cinema: as novas cartografias do cinema mundial, organizado por Stephanie Dennison (2013). Nele é explorada a proposta de equivalências entre world cinema e cinema de arte. Também é descrito o surgimento das coproduções com a Europa, sobretudo com a França, que passou a ser uma constante a partir da década de 1980.
Em nossa pesquisa, este é um aspecto fundamental para perfilar filmes periféricos/world cinema, em que um título surge como paradigmático: Luna Papa (1999). Com investimentos da Alemanha, Japão, Uzbequistão, Áustria, Suíça, França e Rússia, há ainda um oitavo país envolvido, o Tajiquistão, que abrigou parte das locações, e cujo diretor, Bakhtyar Khudojnazarov, é tajique. O argumento de Luna Papa foi tirado do folclore da Geórgia (outra ex-república soviética). Com elenco multiétnico, a protagonista é vivida por Chulpan Khamatova, atriz de etnia russa-tártara. O irmão dessa personagem é interpretado pelo ator alemão Moritz Bleibtreu. O pai deles é o ator uzbeque Ato Mukhamedzhanov. A língua falada no filme é a russa.
Tal algaravia de culturas nos remete a outra noção, o transnational cinema. Robert Stam em World Literature, Transnational Cinema e Global Media (2019), sugere o periférico como variação do termo transnacional, oportunizando pensar filmes que de fato possuem uma engenharia na pluralidade de nações envolvidas e em como operam o cruzamento de fronteiras e culturas. No entanto, o sentido de “transnacional” não inclui necessariamente o sentido periférico. Transnacional pode ser um filme entre Inglaterra, França, Itália e Bélgica, por exemplo, mas não garante um cinema fora de sistemas de produção estabelecidos em altos patamares de orçamento. Ou seja, não tem o componente “Terceiro Cinema” que, nos parece, está ligado ao ser periférico.
Já Fronteiras (Frontières, dirigido por Apolline Traoré, França/Burkina Faso, 2017) adequa-se melhor ao escopo de periférico. Um roadmovie sobre a viagem de três mulheres em um ônibus que percorre Burkina Faso, Senegal, Mali, Benin e Nigéria. Contou com produtoras de Burkina Faso e Senegal, mais o aporte financeiro de 40 mil euros da Organisation internationale de la francophonie, da França. Para um público distante daquela realidade, cujo enredo inclui contrabando de mercadorias, os cenários e línguas se misturam, e enxergamos tudo como “um filme da África”. No entanto, essa pode ser uma percepção distorcida que não colabora para entendermos as necessidades particulares das personagens e de como enfrentam os desafios que surgem a cada passagem para outro país. Por outro lado, o cinéfilo, crítico e/ou pesquisador que se dispuser a adentrar nas camadas propostas, terá diante de si um painel de parte da África Ocidental, possível graças à transnacionalidade da produção. E terá um exemplar periférico, que dá visibilidade a uma cultura diversa em si.
Independentemente da nomenclatura, os títulos citados pressupõem um modo de produção fora do sistema dos grandes estúdios. E pressupõem traços estéticos e narrativos que, em princípio, fogem aos padrões aristotélicos hollywoodianos. A multiplicidade de conceitos que carregam diversas nomenclaturas nos faz indagar se existiria uma narrativa periférica. Esses filmes, que temos acesso predominantemente em festivais de cinema, possuem traços comuns de estilo? A origem e a circulação são periféricas, mas a narrativa pode ser convencional? Desde que o conteúdo exótico fique garantido através dos cenários de culturas distantes, a narrativa poderia ser a clássica hollywoodiana, numa espécie de contradição curatorial.
Claro está que, ao menos desde a década de 1920, o cinema estrangeiro, notadamente o norte-americano, ocupa as salas de cinema (e agora o streaming) de maneira inconteste praticamente no mundo todo. Porém, nos últimos anos, as cinematografias periféricas (world cinema/transnacional) vêm ganhando mais espaço, trazendo características de produção que requerem um olhar acurado. Compreender a cultura do outro a partir do modo como se apresenta é o primeiro passo em direção à empatia.
CINEMAS PERIFÉRICOS – OLHAR O OUTRO A PARTIR DE SEU CONTEXTO
TEXTO CURTO
Ivonete Pinto
Doutora pela ECA/USP com tese sobre cinema iraniano. Professora Associada no curso de Cinema e Audiovisual e Cinema de Animação da UFPel, e crítica de cinema. Cobriu e foi jurada em festivais de cinema como Locarno, Toronto, Havana, Teerã, San Sebastian e Rio de Janeiro. Autora de Cinemas periféricos: estéticas e contextos não hegemônicos; coorganizadora de Bernardet 80: impacto e influência no cinema brasileiro e Ismail Xavier: um pensador do cinema brasileiro.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.8, Nº19, MAIO, ANO 2024
PERSPECTIVAS PARA ALÉM DA VISÃO
O texto aborda as diferentes nomenclaturas em torno do cinema periférico, buscando compreender como se apresentam os filmes de países de culturas distantes a partir de suas estruturas de produção.
Um filme periférico costuma ser visto como aquele que tem origem em algum país fora do centro de produção hegemônico. Tanto a crítica, quanto a academia e o público, lidam com a noção de que filmes norte-americanos e europeus não estão à margem porque são distribuídos de forma mais ampla em salas de cinema e streaming. Logo, o cinema brasileiro seria um cinema periférico. Mas periférico para quem? Trata-se de uma percepção de dentro para fora; a definição do que é periférico precisa de outras perspectivas, preferencialmente a partir de um ponto de vista afastado, de forma a contemplar múltiplos ângulos. Porém, deixemos o cinema brasileiro para análise em outra oportunidade.
Em Cinemas periféricos: estéticas e contextos não hegemônicos, de Ivonete Pinto (2021), buscamos um entendimento preliminar sobre o tema, que localizou em Octavio Getino e Fernando Solanas a defesa do Terceiro Cinema. Os cineastas e pensadores argentinos propunham que deixássemos de ser colonizados e encontrássemos nossa própria expressão.1 Um cinema revolucionário para combater a ocupação da indústria norte-americana. Embora sem investir no componente ideológico, essa defesa está em franco diálogo com as ideias de Paulo Emilio Salles Gomes e sua teoria do “ocupado e ocupante”, que configura a identidade nacional tendo como ponto de partida nossa condição subdesenvolvida.2
Questões ligadas à dependência econômica e cultural de países desenvolvidos também emergem quando colocamos em foco outros conceitos, como o de world cinema. Nesse caso, encontramos um juízo estendido em World Cinema: as novas cartografias do cinema mundial, organizado por Stephanie Dennison (2013). Nele é explorada a proposta de equivalências entre world cinema e cinema de arte. Também é descrito o surgimento das coproduções com a Europa, sobretudo com a França, que passou a ser uma constante a partir da década de 1980.
Em nossa pesquisa, este é um aspecto fundamental para perfilar filmes periféricos/world cinema, em que um título surge como paradigmático: Luna Papa (1999). Com investimentos da Alemanha, Japão, Uzbequistão, Áustria, Suíça, França e Rússia, há ainda um oitavo país envolvido, o Tajiquistão, que abrigou parte das locações, e cujo diretor, Bakhtyar Khudojnazarov, é tajique. O argumento de Luna Papa foi tirado do folclore da Geórgia (outra ex-república soviética). Com elenco multiétnico, a protagonista é vivida por Chulpan Khamatova, atriz de etnia russa-tártara. O irmão dessa personagem é interpretado pelo ator alemão Moritz Bleibtreu. O pai deles é o ator uzbeque Ato Mukhamedzhanov. A língua falada no filme é a russa.
Tal algaravia de culturas nos remete a outra noção, o transnational cinema. Robert Stam em World Literature, Transnational Cinema e Global Media (2019), sugere o periférico como variação do termo transnacional, oportunizando pensar filmes que de fato possuem uma engenharia na pluralidade de nações envolvidas e em como operam o cruzamento de fronteiras e culturas. No entanto, o sentido de “transnacional” não inclui necessariamente o sentido periférico. Transnacional pode ser um filme entre Inglaterra, França, Itália e Bélgica, por exemplo, mas não garante um cinema fora de sistemas de produção estabelecidos em altos patamares de orçamento. Ou seja, não tem o componente “Terceiro Cinema” que, nos parece, está ligado ao ser periférico.
Já Fronteiras (Frontières, dirigido por Apolline Traoré, França/Burkina Faso, 2017) adequa-se melhor ao escopo de periférico. Um roadmovie sobre a viagem de três mulheres em um ônibus que percorre Burkina Faso, Senegal, Mali, Benin e Nigéria. Contou com produtoras de Burkina Faso e Senegal, mais o aporte financeiro de 40 mil euros da Organisation internationale de la francophonie, da França. Para um público distante daquela realidade, cujo enredo inclui contrabando de mercadorias, os cenários e línguas se misturam, e enxergamos tudo como “um filme da África”. No entanto, essa pode ser uma percepção distorcida que não colabora para entendermos as necessidades particulares das personagens e de como enfrentam os desafios que surgem a cada passagem para outro país. Por outro lado, o cinéfilo, crítico e/ou pesquisador que se dispuser a adentrar nas camadas propostas, terá diante de si um painel de parte da África Ocidental, possível graças à transnacionalidade da produção. E terá um exemplar periférico, que dá visibilidade a uma cultura diversa em si.
Independentemente da nomenclatura, os títulos citados pressupõem um modo de produção fora do sistema dos grandes estúdios. E pressupõem traços estéticos e narrativos que, em princípio, fogem aos padrões aristotélicos hollywoodianos. A multiplicidade de conceitos que carregam diversas nomenclaturas nos faz indagar se existiria uma narrativa periférica. Esses filmes, que temos acesso predominantemente em festivais de cinema, possuem traços comuns de estilo? A origem e a circulação são periféricas, mas a narrativa pode ser convencional? Desde que o conteúdo exótico fique garantido através dos cenários de culturas distantes, a narrativa poderia ser a clássica hollywoodiana, numa espécie de contradição curatorial.
Claro está que, ao menos desde a década de 1920, o cinema estrangeiro, notadamente o norte-americano, ocupa as salas de cinema (e agora o streaming) de maneira inconteste praticamente no mundo todo. Porém, nos últimos anos, as cinematografias periféricas (world cinema/transnacional) vêm ganhando mais espaço, trazendo características de produção que requerem um olhar acurado. Compreender a cultura do outro a partir do modo como se apresenta é o primeiro passo em direção à empatia.
Notas de Rodapé
1. Trata-se do manifesto “Para um terceiro cinema” (1969), cujo teor é aprofundado no livro Cine, Cultura y Descolonización (1973), por sua vez analisado HENNEBELLE (1978).
2. O conceito de “ocupado e ocupante” foi desenvolvido inicialmente no artigo “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, publicado na revista Argumento (1973), e foi desdobrado em outros textos. Para mais detalhes, ver Paulo Emílio: um intelectual na linha de frente, de Carlos Augusto Calil e Maria Teresa Machado (Org.).
Notas de Rodapé
1. Trata-se do manifesto “Para um terceiro cinema” (1969), cujo teor é aprofundado no livro Cine, Cultura y Descolonización (1973), por sua vez analisado HENNEBELLE (1978).
2. O conceito de “ocupado e ocupante” foi desenvolvido inicialmente no artigo “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, publicado na revista Argumento (1973), e foi desdobrado em outros textos. Para mais detalhes, ver Paulo Emílio: um intelectual na linha de frente, de Carlos Augusto Calil e Maria Teresa Machado (Org.).
Referências Bibliográficas
DENNISON, Stephanie (org.). World Cinema: as novas cartografias do cinema mundial. Campinas: Papirus/Socine, 2013.
HENNEBELLE, Guy. Os cinemas nacionais contra Hollywood. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
PINTO, Ivonete. Cinemas periféricos: estéticas e contextos não hegemônicos. Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2021.
STAM, Robert. World Literature, Transnational Cinema e Global Media: Towards a Transartistic Commons. Londres. Nova Iorque: Routledge, 2019.
Referências Bibliográficas
DENNISON, Stephanie (org.). World Cinema: as novas cartografias do cinema mundial. Campinas: Papirus/Socine, 2013.
HENNEBELLE, Guy. Os cinemas nacionais contra Hollywood. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
PINTO, Ivonete. Cinemas periféricos: estéticas e contextos não hegemônicos. Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2021.
STAM, Robert. World Literature, Transnational Cinema e Global Media: Towards a Transartistic Commons. Londres. Nova Iorque: Routledge, 2019.
Lista de Imagens
Capa – Fronteiras, de Apolline Traoré, um road-movie de Burkina Faso.
Figura 1 – Foto de cena do filme Luna Papa (1999).
Figura 2 – Foto de cena do filme Fronteiras (2017).
Lista de Imagens
Capa – Fronteiras, de Apolline Traoré, um road-movie de Burkina Faso.
Figura 1 – Foto de cena do filme Luna Papa (1999).
Figura 2 – Foto de cena do filme Fronteiras (2017).