PARA ARTISTAS
DES-INSTITUIDS

TEXTO-OBRA DE PAOLA ZORDAN

Professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora da Comissão de Graduação em Artes Visuais de junho de 2016 a maio de 2018.

RESUMO

Fragmentos textuais em torno da série AMARRAS, desenvolvida junto ao projeto Aparelhos Disciplinares, o qual problematiza a relação entre a arte e as instituições. Uma corda de sisal desenvolve a problemática da punição implícita no serviço prestado, o qual mesmo quando ligado a atividades artísticas e intelectuais, uma vez instituído como obrigação, prende quem o precisa cumprir. Objeto de múltiplos usos, a corda também é estudada em outras obras de arte, tais como a proposição A’CORDA de Dione Veiga Vieira, com a qual dialoga. Com o grupo de pesquisa Arte, Corpo enSigno, o cacófato inspirou manifestações perfomáticas na cidade de Porto Alegre. O material foi adquirido por mim, coordenadora e articuladora de alunos de graduação, mestrado e doutorado, para a realização das ações coletivas. As imagens e aforismos aqui apresentados se desenvolvem como expurgo de um cotidiano de mais de quinze horas de trabalho diário. Em espaço fechado, como corpo obrigado a assumir encargos que me impedem de fazer o que seria escolha própria, performo solitariamente, sob o olho de quem me ampara, sofrimentos maiores que os meus, os quais não cabem nestas palavras e imagens.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.5, Nº14, JUL., ANO 2018
PENSAMENTO E AÇÃO DE SUBSISTÊNCIA

Acontecimentos
Subsistir. Desistir. Resistir.

Maneira
Coloco pontos em infinitivos, apesar de nada ser definitivo. Porque o que um dia fui, deixei de ser, mas é possível voltar. O problema implica entender como.

De que modo?
Entre listas, chamadas, mensagens, telefonemas, cadastros, atas, contratos, seguros, autenticações. Prestação de contas. Resoluções. Relatórios.

Caso
E de repente, quando você está ali no setor, atendendo aluns, chega aquele cara, visivelmente mais velho, perguntando como ser aluno do Instituto de Artes. Ele vem dizendo que quer ser artista e expor o seu trabalho e o mandaram ali. Mostra seus desenhos numa pasta, você fica pasma, explicando que antes de mais nada há um vestibular, há reserva de vagas, há muita chance. De quê? Você sabe que as chances são poucas, que fazer e criar e fazer não é o suficiente, que trabalhar incansavelmente não significa conseguir alguma coisa.

Crença
Uma formação, um grau, em respeitável Instituto dentro de um curso reconhecido pelas instâncias legítimas, há de ser algo, nem que sejam apenas créditos cursados. Um vale “superior”. Por isso é que se acredita, apesar de muitas e muitas vezes, ninguém lhe dar os devidos créditos.

Bastidores
Alguém tem que assumir encargos. Redigir a documentação. Arrumar as pastas. Chegam processos. Queixas na ouvidoria, solicitações para reverter perdas de vaga, acusações graves, liberações, requerimentos vários, despachos a serem feitos, demandas a serem respondidas. Correr atrás de portarias. Achar as chaves. Afugentar os fantasmas que vivem nas frestas. Espantar escorpiões venenosos e as baratas que os alimentam.

Insanidade
Amparar desvalidos, mediar conflitos, responder a depressões dos que carregam inúmeros insucessos. Ajudar na luta para o mínimo êxito de terminar um curso, se formar e fazer, pelo menos, uma mísera exposição.

Sério
Desafio não reclamar quando se trata de se viver de arte, especialmente se vivendo no Brasil, pior ainda vendo em torno de cem pessoas, todo ano, entrando em cursos de Artes Visuais com todas expectativas de que serão artistas ou agentes relevantes do mundo das artes. Arcar com frustrações em rodo. Quem responde pela insatisfação generalizada?

Processando
Quero fazer um depoimento cru, de finada coordenadora responsável por processos de mais de seiscentos alunos. Preciso contar o que sei sobre os que, envolvidos com arte, formados em arte, simplesmente não existem. Pessimista, vejo que somente a cada cinco anos ou menos, temos um ou outro artista cujo nome será reconhecido nacionalmente. Os próprios professores, em grande parte dos casos, têm pouco impacto com seus trabalhos. O que sobra para tantos e tantos que nem professores chegarão a ser? Só produzir não basta.

Existir
Não sei se consigo. Saber pode acabar em presunção. Poucos aguentam quem só fala de si. Porém, escutar a tantos acaba aniquilando quem não se promove. Continuo me movendo, mas para onde ninguém pergunta. Melhor sumir do que presumir.

Servir
Nunca foi fácil. Quanto mais garantias, maior a institucionalização e quanto mais a Instituição lhe cabe, menos tempo para arte a pessoa tem. Projetos pessoais são adiados em prol de necessidades institucionais, que visam o bem comum e não a realização de um ou outro artista, de um grupo ou nome. Assim, o tempo do outro toma a vida do eu. Esse eu que se perde na responsabilidade em atender o outro, eu que deixa de existir, eu que não me sustento senão assumindo responsabilidades que nunca quis. Uma arte que se vê em horas e horas de atendimento. A arte nunca foi servil, por mais que o poder dela se sirva.

Pagamentos
E ela, que dá vida ao traço, suspende seus desenhos em razão de horas de mediação, em grande mostra que ignora a força do que ela cria, para conseguir uns trocos no ganho básico da vida.

Insuportável
Os gritos são tantos, essas solicitações todas, pedidos de socorro, ajudas que por mais sinceras que sejam sempre serão pífias, que nenhum deus consegue ouvir e sem deuses a pessoa humana, ser que sente, sofre. Socos em si. Surro a mim para colocar em meu próprio corpo a violência que tudo isso traz. Bato em meu próprio rosto até não sentir mais dor. Porque a ferida aberta dessa aniquilação em muitos nunca consegue ser purgada. Só choro de horas e horas consegue lavar.

Apreciação
Já escrevemos, junts, a infâmia. Quase nos enforcamos. Dobrads, virads, obscurs, sem nos importar com o que acham. Nunca procuramos saber quem era importante. Mas não digam, por favor, que isso é o fim. Cansamos da brincadeira antes de começar a jogar. Basta de nomes, de números, de nojos. Quem nos deprecia perde seu preço. Não viemos para mercado e sim para rasgar os sonhos com nossas mãos marcadas das matérias da qual jamais nos apartaremos.

Insistir
Ninguém se importará. O que vale é a pressão que alguém exerce. Você que gosta de flutuar livre e não pressionar ninguém, esqueça. Deixe de lado. Limpe o que os outros sujaram. Ninguém sabe o que você faz e isso lhe trará uma liberdade ímpar. Especialmente porque há multidões na mesma situação. Não acontecer torna as coisas mais nítidas.

E quando te pedirem o pior
Não vou deixar aviso. Nenhum ressentimento. Impossível ver tudo. Ao que alcançamos damos atenção. Cuidar de mil singularidades é arte que não cria objetos atestáveis.

Inteireza
Atiro uns baldes. Mudo superfícies com as mãos. Sinto materiais. Faço do meu corpo puro instrumento. Entrego minha alma a cada cor.

Telas
Estão pintadas e não requerem grandes textos.

Quadros
Não são tudo o que existe numa parede.

Frágil
Ponho no corpo o que seria apenas o invólucro. Vejo em Dias o que concebi na minha noite. Rio das coincidências. Inventario em outros tudo o que já fiz e pensei e guardo. Um arquivo desmorona. Almas cantam pela eternidade.

Tudo exige espaço
Se uma imagem fica é porque resiste. Rastros de sensações atravessando tempos. O que existe nem sempre acontece no olho. A desistência ocorre pela falta de logística. Espaço só se compra com trabalho. Veículos requerem condução. Quando se ocupa o espaço de todos é possível experimentar o quanto a instituição ocorre pelas pessoas. Um por si não ajuda os outros. Há fontes demais para serem elencadas. E verbos de toda estirpe para cada um escolher seu mantra.

Lista de Imagens

1  Paola Zordan, Uma dobra entre muitas, 2018, fotografia de corda de sisal, dimensões variáveis.

2   Paola Zordan, Enrolada, 2017, autorretrato com corda de sisal, dimensões variáveis.

3   Paola Zordan, Amarrada, 2017, performance com algodão cru e corda de sisal, fotografia de Ricardo Zordan, dimensões variáveis.

4   Paola Zordan, Ensacada, 2017, algodão cru e corda de sisal, dimensões variáveis.

5   Paola Zordan, Enroscos, 2018, algodão cru e corda de sisal, dimensões variáveis.