“Em algumas tardes, levava comigo um romance, mas preferia os livros de poemas, porque me permitiam mais pausas para espiar”.
– Alejandro Zambra – Formas de Voltar para Casa
Uma escrita em que olhamos para os lados e nos desconcentramos-. Uma experiência que mais se constrói em suas pausas do que durante a elaboração em si. Regras tanto automáticas e instantâneas quanto desestabilizadoras: pairar e parar o olho em tudo o que há ao redor. Ativar os sentidos e captar o todo. Transformar, em seguida, esse todo em escrito, sem censuras e com busca nula por qualquer coerência: deixar que as palavras comuniquem sua força e esgarcem suas fragilidades, independente de formato ou gênero. Deixar-se levar pelo instante e fazer dele o máximo que se pode fazer até que se torne passado. Ser rápido, não deixar que o medo invada; nem o receio. Despreocupar-se entre o certo e o errado. Aliás, procurar pelos erros, mas não de forma que este se torne falso. Escancarar as imperfeições e precariedades do funcionamento da máquina humana. O corpo em exercício dos atos falhos. O corpo que não irá reparar nas elaborações de observação dessa escrita atenta, ativadora de novos modos de fazer.
[…] uma subjetividade que não se desejava fingida, produto de um malabarismo verbal artificioso, mas sim deslocada da vida para a escrita sem retóricas, verdadeira na sua escassez semântica e na sua fragilidade lírica: poética da experiência, em suma. (ALVES, 2008, p. 126).
Escrever para testar a própria atenção nos detalhes que nos cercam, formam e entremeiam. Montar um diário de possíveis que ultrapasse seu formato e, além de relato e memória afetiva, traga as anotações e o descompromisso de nosso íntimo para uma linguagem universal. Escrever para criar identificações com o outro, ter a gentileza de compartilhar indagações, banalidades e cotidianidades. Exercitar o quanto podemos retirar e recortar de um pequeno espaço-tempo registrado. Recriarmos experiências através de colagens desatreladas de um formato fixo. Experimentar o experimentar.
Uma escrita que desengesse e acorde o sujeito e seu corpo vibrátil em coma (ROLNIK, 2003). Mesmo falando de coisas ou de outros, que esse reflita muito mais a respeito de nossa intimidade e modo de operar. Aproveitar o percalço rumo à transformação. “Intuir a urgência de se fabular um procedimento de investigação da existência, que acolha nossos estranhamentos, nossos esgarçamentos identitários, nossos balbucios. ” (PRECIOSA, 2010, p.37).
Menos uma busca por querer saber escrever: ir, somente — a indistinção assim no pelo, sem honrarias, sombra de lanterna no breu. Desguiar-se. Embebido pelas referências, destilar pequenas frases que se iniciam tímidas e vão dar em algo maior. Ou até mesmo criar uma poética da timidez, fragmentada e mínima, extremamente íntima, fechada, grãos de areia sobressalentes em pérolas imperfeitas — mas, ainda assim, pérolas.
Um escrever alinhavado em pautas que se coloca em aprendizado constante, empírico, sem ignorar quem já foi grande e abriu alas para novos formatos e que existem formas arraigadas, linhas safas, já aclamadas de como produzir. Saber que também é labor. Aproveitando-me da eloquência de Alejandro Zambra (2014, p. 146) acerca do devaneio aqui tratado, que nos deixemos derivar por estranhos experimentares: “A prosa sai estranha. Não encontro o humor, a textura. Mas solto alguns versos e de repente me deixo invadir por esse ritmo. Movo os versos, confirmo e transgrido a cadência, passo horas trabalhando no poema.”.
Escrever esse que se engendra por linhas maleáveis, por linhas de fuga e acaba por formar uma escrita indistinta que não convém definir em cânones. Como construir castelos de cartas ligados uns aos outros pela fragilidade majestosa que sincroniza a respiração com cada elemento; disponibiliza-se a fadar ao fracasso, mas persegue um objetivo que cresce em confiança a cada fileira, andar ao observar as alturas que alcança — sempre ciente do perigo. Na ruína, o movimento bonito da queda, ao menos procurou chegar lá. A potência das forças de criação e a resistência que promovem (ROLNIK, 2003). Seja o que for, que desponte ações não anunciadas, espontâneas e efêmeras, que transformam nosso cotidiano, quebrando hábitos duvidosos para que nasçam novos modos de viver a vida. Atravessando o pensamento de Rosane Preciosa:
Inicia seu projeto, decidido a se deixar transportar pelas sensações, por registros informes, desmemórias, e por seu faro animal, que permitira ser sufocado. Decide registrar esse acontecimento, guiado por uma tosca escritura. Inquieto, pergunta-se o tempo todo o que a vida afinal quer com ele. Desempanturrado de si, libera-se para expressar todos e ninguém em especial. É apenas um alguém mutante convocado a recitar sua humanidade. (2010, p. 20).
A escrita indistinta traça-se em detalhes instantâneos observados através da lente de nossos humores volúveis e voláteis, alimenta-se do que nos move, da necessidade de fazer. Sai porque tem de sair. Indistingue-se porque é nossa, seres em constante formação e na busca da tal maturidade ilógica, obscura, crescimento que vai indo. Que quer que signifique isso, não vamos parar tão cedo. E, ao mesmo tempo, o fato de que um dia vamos parar é nossa única certeza.