TESTANDO UM PERCURSO POR ESCRITAS INDISTINTAS

TEXTO CURTO DE PEDRO FONSECA

Pedro Fonseca (Juiz de Fora, MG, 1992) é mestrando em Artes, Cultura e Linguagens pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Bacharel em Artes Visuais pela mesma instituição. Investiga atravessamentos entre palavra escrita, imagem e fotografia como dispositivos poéticos que ativam corpos de sujeitos que são tanto processo artístico quanto processos de si.

RESUMO

Este texto aborda possibilidades para uma escrita “desatenta” e atravessada por nossos percursos diários. Sugestões para desengessar escritas de si. Que replica, edita e se insere em ficções de si, anotações, registros de um instante. Um fluxo de escrita que aponte novas formas de produção de sentido, sempre em processo, maleabilizando modos de vida, apresentando recursos de fuga de uma linearidade narrativa que ameaça a padronização do cotidiano.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.5, Nº13, JUL., ANO 2017
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“Em algumas tardes, levava comigo um romance, mas preferia os livros de poemas, porque me permitiam mais pausas para espiar”.

Alejandro Zambra – Formas de Voltar para Casa

Uma escrita em que olhamos para os lados e nos desconcentramos-. Uma experiência que mais se constrói em suas pausas do que durante a elaboração em si. Regras tanto automáticas e instantâneas quanto desestabilizadoras: pairar e parar o olho em tudo o que há ao redor. Ativar os sentidos e captar o todo. Transformar, em seguida, esse todo em escrito, sem censuras e com busca nula por qualquer coerência: deixar que as palavras comuniquem sua força e esgarcem suas fragilidades, independente de formato ou gênero. Deixar-se levar pelo instante e fazer dele o máximo que se pode fazer até que se torne passado. Ser rápido, não deixar que o medo invada; nem o receio. Despreocupar-se entre o certo e o errado. Aliás, procurar pelos erros, mas não de forma que este se torne falso. Escancarar as imperfeições e precariedades do funcionamento da máquina humana. O corpo em exercício dos atos falhos. O corpo que não irá reparar nas elaborações de observação dessa escrita atenta, ativadora de novos modos de fazer.

[…] uma subjetividade que não se desejava fingida, produto de um malabarismo verbal artificioso, mas sim deslocada da vida para a escrita sem retóricas, verdadeira na sua escassez semântica e na sua fragilidade lírica: poética da experiência, em suma. (ALVES, 2008, p. 126).

Escrever para testar a própria atenção nos detalhes que nos cercam, formam e entremeiam. Montar um diário de possíveis que ultrapasse seu formato e, além de relato e memória afetiva, traga as anotações e o descompromisso de nosso íntimo para uma linguagem universal. Escrever para criar identificações com o outro, ter a gentileza de compartilhar indagações, banalidades e cotidianidades. Exercitar o quanto podemos retirar e recortar de um pequeno espaço-tempo registrado. Recriarmos experiências através de colagens desatreladas de um formato fixo. Experimentar o experimentar.

Uma escrita que desengesse e acorde o sujeito e seu corpo vibrátil em coma (ROLNIK, 2003). Mesmo falando de coisas ou de outros, que esse reflita muito mais a respeito de nossa intimidade e modo de operar. Aproveitar o percalço rumo à transformação. “Intuir a urgência de se fabular um procedimento de investigação da existência, que acolha nossos estranhamentos, nossos esgarçamentos identitários, nossos balbucios. ” (PRECIOSA, 2010, p.37).


Menos uma busca por querer saber escrever: ir, somente — a indistinção assim no pelo, sem honrarias, sombra de lanterna no breu. Desguiar-se. Embebido pelas referências, destilar pequenas frases que se iniciam tímidas e vão dar em algo maior. Ou até mesmo criar uma poética da timidez, fragmentada e mínima, extremamente íntima, fechada, grãos de areia sobressalentes em pérolas imperfeitas — mas, ainda assim, pérolas.

Um escrever alinhavado em pautas que se coloca em aprendizado constante, empírico, sem ignorar quem já foi grande e abriu alas para novos formatos e que existem formas arraigadas, linhas safas, já aclamadas de como produzir. Saber que também é labor. Aproveitando-me da eloquência de Alejandro Zambra (2014, p. 146) acerca do devaneio aqui tratado, que nos deixemos derivar por estranhos experimentares: “A prosa sai estranha. Não encontro o humor, a textura. Mas solto alguns versos e de repente me deixo invadir por esse ritmo. Movo os versos, confirmo e transgrido a cadência, passo horas trabalhando no poema.”.

Escrever esse que se engendra por linhas maleáveis, por linhas de fuga e acaba por formar uma escrita indistinta que não convém definir em cânones. Como construir castelos de cartas ligados uns aos outros pela fragilidade majestosa que sincroniza a respiração com cada elemento; disponibiliza-se a fadar ao fracasso, mas persegue um objetivo que cresce em confiança a cada fileira, andar ao observar as alturas que alcança — sempre ciente do perigo. Na ruína, o movimento bonito da queda, ao menos procurou chegar . A potência das forças de criação e a resistência que promovem (ROLNIK, 2003). Seja o que for, que desponte ações não anunciadas, espontâneas e efêmeras, que transformam nosso cotidiano, quebrando hábitos duvidosos para que nasçam novos modos de viver a vida. Atravessando o pensamento de Rosane Preciosa:

Inicia seu projeto, decidido a se deixar transportar pelas sensações, por registros informes, desmemórias, e por seu faro animal, que permitira ser sufocado. Decide registrar esse acontecimento, guiado por uma tosca escritura. Inquieto, pergunta-se o tempo todo o que a vida afinal quer com ele. Desempanturrado de si, libera-se para expressar todos e ninguém em especial. É apenas um alguém mutante convocado a recitar sua humanidade. (2010, p. 20).

A escrita indistinta traça-se em detalhes instantâneos observados através da lente de nossos humores volúveis e voláteis, alimenta-se do que nos move, da necessidade de fazer. Sai porque tem de sair. Indistingue-se porque é nossa, seres em constante formação e na busca da tal maturidade ilógica, obscura, crescimento que vai indo. Que quer que signifique isso, não vamos parar tão cedo. E, ao mesmo tempo, o fato de que um dia vamos parar é nossa única certeza.

Referências Bibliográficas

PEDROSA, Celia; ALVES, Ida. Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7 letras, 2008.

PRECIOSA, Rosane. Rumores discretos da subjetividade: sujeito e escritura em processo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010.

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental, transformações contemporâneas do desejo. Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989.

______. “Fale com ele” ou como tratar o corpo vibrátil em coma. 2003. Disponível em: http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/falecomele.pdf. Acesso: 12 jun. 2017.

ZAMBRA, Alejandro. Formas de voltar para casa. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

Lista de Imagens

Pedro Fonseca, Marca-viva, desdobramento nº1, 2017, edição digital de textos datilografados e fotografias, 2686 x 1800 px. Fonte: acervo particular.

Pedro Fonseca, Marca-viva, desdobramento nº2, 2017, edição digital de textos datilografados e fotografias, 2686 x 1800 px. Fonte: acervo particular.

Pedro Fonseca, Marca-viva, desdobramento nº3, 2017, edição digital de textos datilografados e fotografias, 2686 x 1800 px. Fonte: acervo particular.