PERECÍVEL

VERBETE DE JULIA ARBEX

Julia Arbex é artista e mestre em Processos artísticos pela Universidade Federal Fluminense com a dissertação intitulada Divagações sobre o perecível (2018)

RESUMO

O texto aborda duas possíveis definições para o termo perecível: uma se relaciona com a finitude, outra a ultrapassa

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.6, Nº15, MAR., ANO 2019
VERBETES DA ARTE

Que está sujeito a perecer, deteriorável.
Toda obra artística carrega algo de um estado de transformação, de impermanência, de perecível. Obras antigas são mantidas sob constante preservação e restauração, mas a estabilidade não é real, pois elas estão em constante troca com o meio externo e suas intempéries. Algumas esculturas situadas em ambientes externos sofrem de um efeito corrosivo em contato com a chuva ácida; é como se a água comesse a pedra, devorasse o mármore e outros calcários, fazendo com que elas se dissolvam lentamente (Figura 1).

A condição perecível também pode ser observada, por exemplo, em um pentimento1, como em Retrato equestre do Rei Philip IV (1636, Figura 2), de Velázquez. Como é possível observar, os “arrependimentos” só se tornam visíveis muitos anos após a execução do trabalho. No quadro, as camadas superiores de tinta, adicionadas posteriormente pelo pintor, ganharam transparência ao longo dos anos e deixaram visível a “versão anterior” das patas do cavalo. As duas imagens sobrepostas no quadro evidenciam uma desordem ou subversão temporal, assim como seu estado de perpétua mudança.

Perire
No entanto, existe outra dimensão do perecível, a qual podemos aproximar do conceito de estado metaestável, do filósofo francês Gilbert Simondon2. Segundo o autor, o metaestável não é um estado de equilíbrio nem de esgotamento, não é estável nem instável. Trata-se de um estado sujeito à mutação, à transformação. Um sistema metaestável é dinâmico, contém energia e informação; a partir de um disparo, é capaz de produzir uma interação onde previamente não havia comunicação, possibilitando a troca entre energia e informação. (GROSZ, 2017) Ou seja, tal sistema é sempre mais do que ele próprio, pois contém, além de suas próprias potências, um potencial de autotransformação e mutação. São potenciais contrários, incompatíveis, que requerem a criação de uma nova estrutura.

Assim, o perecível pode ser entendido não no sentido de deterioração e finitude, mas a partir de sua origem etimológica, derivada do latim “perire”: PER = através + IRE = ir. “Ir através” é algo além do deixar de existir, que pode ultrapassar, transpor a morte de alguma forma. O perecível, nesse sentido, não é aquilo que somente acaba, mas é o que traz a dimensão processual, carregando em si a energia potencial da criação.

Em Condensation cube (1965, Figura 3), de Hans Haacke, a diferença de temperaturas faz a água dentro do cubo de acrílico se condensar em gotas de vapor e escorrer para fora. A obra reage a seus arredores, e a imagem da condensação muda livremente. O cubo depende da presença física dos espectadores que, por sua proximidade, respiração e temperatura corporal, afetam o entorno e, consequentemente, o trabalho.

Fruto de interações também é o Grande Bhudda (1985, Figura 4), de Nelson Felix, no qual uma muda de mogno plantada em uma floresta, no Acre, cresce incorporando seis garras de metal fixadas em seu entorno. A árvore, como todo vegetal, carrega energia potencial, a condição metaestável que, a partir de um disparador — garras — possibilita que ambos se engendrem numa relação e estabeleçam um estado de equilíbrio próprio.

A metaestabilidade proporciona às obras um fluxo constante entre um estado de equilíbrio e desequilíbrio, e um realinhamento de suas estruturas, permanecendo perecíveis e ativos. Assim é a vida, viva.

Notas de Rodapé

1  “Pentimento” em uma pintura é uma alteração encoberta pela versão final de um quadro e que aparece com o passar do tempo. Pentimento vem do italiano pentimenti que significa arrependimento.

2  Gilbert Simondon (2 de outubro de 1924 – 7 de fevereiro de 1989) foi um filósofo francês mais conhecido por sua teoria da individuação, uma importante fonte de inspiração para autores como Gilles Deleuze e Bernard Stiegler.

Referências Bibliográficas

GROSZ, Elizabeth. The incorporeal: ontology, ethics, and the limits of materialism. Nova Iorque: Columbia University Press, 2017.

Lista de Imagens

1   Escultura em Westphalia, Alemanha, fotografada em 1908 e em 1968. Foto: Herr Schimdt-Thomsen.

2   Velázquez, Retrato equestre do Rei Philip IV (detalhe), 1636, óleo sobre tela, 303 x 317 cm. Museu do Prado, Espanha.

3   Hans Haacke, Cubo de condensação, 1965, acrílico e água, 76 x 76 x 76 cm. MACBA, Espanha.

4   Nelson Felix, Grande Buddha, 1985, dimensões variáveis. Fonte: Nelson Felix.com