QUEBRANTO
TEXTO-OBRA Juliana Camila da Silva
Artista, educadora e pesquisadora graduada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Londrina. É integrante do Coletivo Negro Prata, onde compõe uma pesquisa conjunta sobre arte afro-brasileira. Fez parte de algumas exposições pelo norte do Paraná, entre elas Mesclada (2018) e No fim do mundo, o começo (2021), ambas promovidas pela Divisão de Artes Plásticas de Londrina. Investiga atualmente as intersecções entre memória, materialidade e escrita no campo da arte contemporânea.
RESUMO
Este pequeno texto-obra resulta do exercício de pensar-se na escrita e na visualidade, interseccionando ambos os meios de fabulação e suas possibilidades. Todo o processo esteve em direta conversação com o trabalho de Tracey Emin e a escrita Clariceana (especificamente Sad Shower in New York, 1995, e A Via Crucis do corpo, 1974, respectivamente), levando em consideração os modos de gerenciar a angústia e a lida com a intimidade. A narrativa gerada tenciona, através da ficção, lançar um olhar cuidadoso sobre corpo, memória e vulnerabilidade. Do mesmo modo busca-se, através da aquarela, emprestar certa plasticidade para aquilo de íntimo que o texto intenta evocar.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº17, MAR., ANO 2022
TRABALHO EM ARTE E CUIDADO
Não sei se por crença ou por angústia, decidi que tomaria um banho de sal grosso. No pensamento me vinha a receita de uma velha e boa amiga: sal grosso para limpar o miolo, romã para proteger a casca. Já era tarde da noite quando fui até o quintal apanhar uma fruta do pé e, tornando à cozinha, tropecei no questionário da mãe: Para que isso?
Em poucos segundos, eu, de pensamento tão moroso, teria de elaborar uma boa desculpa. Explico: a gente aqui de casa é cristã. Rigorosamente cristã. Gente cheia de dogmas e crenças e culpas. Deu para acreditar em macumba, é? Eu ouviria, bem sei. Assim, para não ser recebida com alguma reprimenda, tratei logo de dizer que minha garganta doía. A mãe sempre diz que o chá da romã funciona feito anti-inflamatório para diminuir a dor, e eu tinha alguns créditos para concluir a encenação, visto que vivo doente pelos cantos. Mas desta vez não era de chaga física que eu ansiava por ser curada.
Talvez por este motivo foi que me neguei a responder com verdade o que faria com a romã. Digo, que diabo falaria? Mãe, algo me dói, mas não sei em qual canto, eu diria. Mãe, como é que se cura uma enfermidade da qual não se reconhece a causa? Eu diria. Mãe, preciso de alguma proteção tal como você precisa do teu cristo.
Mas fugi da palavra e fui calada para o quarto, à espera de me benzer assim que todos se deitassem. Lá pela meia-noite, as luzes já haviam sido apagadas e a casa dormia. Na mudez do corredor, pude ouvir o ronco abafado vindo do quarto do pai. O quarto da mãe sequer conferi, que eu bem conheço seu sono pesado. Só por precaução é que fui a passos leves até a cozinha. Então, ali, tinha eu sal grosso, romã e um bocado de silêncio. Péssima crente que sou, pus a água no fogo, já desassossegada. Questionava o que havia de tão sujo e gasto pairando sob o meu peito, sujo o suficiente para que eu buscasse limpeza. Limpeza de quê? Pediria proteção para quem? Muito pensava. Qual ardor latente me levou até esta espécie de prece? A angústia só entrou em trégua quando vi a água em ebulição, e ali coloquei a romã cortada com um bom tanto de sal.
Tratei de coar aquele amontoado de sementes e logo fomos para o banheiro, a bacia d’água, a caneca e eu. Tomei o banho rotineiro sem pressa, mas, enquanto me ensaboava, permaneci aflita: estaria eu faltando com cuidado nisto? Estaria caçoando de um rito sério? Ainda pensava sobre as ardências tantas. De banho tomado, continuei matutando: caso o santo não aceite a bronca de me cuidar, mal nenhum ele me fará. Daí que, baixinho, no pensamento mesmo, iniciei a súplica: que do meu peito se faça um campo forte, resistente, íntegro, mas não menos sensível. Que eu me torne suscetível ao mundo, mas que, ao mesmo tempo, não deixe sucumbir o passo a qualquer tremor ou vacilo. Que o tempo passe por mim e me envergue, me dome, me vire do avesso, mas não me derrube. Ou, ainda, derrube. Mas que, no tombo, eu não crie raízes no chão. E força. Muita força. Fortalecer sem endurecer, sem secar, sem tornar-se estéril. Estas me pareciam as melhores das bênçãos. Pensando nelas foi que aproximei a bacia, com a caneca já em mãos, e deixei que a água caminhasse sem freio pela pele.
Com o percurso da água, corriam também os meus olhos atentos a certas partes do corpo que eu havia esquecido. Avistei as cicatrizes no alto do joelho direito. Estavam ali as andanças de bicicleta, tombos e rodopios pueris. E por todo o comprimento da perna as cicatrizes estavam. Na altura do quadril, algumas marcas não tão acidentais, o corte brusco da adolescência fincado na pele. O nariz do pai, o queixo da mãe. Os brutos nós dos meus dois pés, grosseiros, crus. As bolhas recentes causadas pela sandália de plástico que, apesar de machucar, é a minha favorita. Também alguns ralados outros cuja causa não me recordo. Percebi: tenho o tempo cravado na pele. Assim é que despejava a água salgada do ombro para baixo.
Teria eu o fôlego necessário para assistir ao embranquecer destes cabelos pretos que agora recobrem a minha cabeça? Na metade da água, achei que aquilo bastava e me percebi miúda entre as paredes do banheiro. Deixei que o restante da bacia corresse pelo ralo do chuveiro para, talvez, agraciar as baratas da casa. E passada a prece, num instante sutil e de peito amansado, reconheci no espelho aquele corpo colérico em pé. Bicho estranho.
QUEBRANTO
TEXTO-OBRA Juliana Camila da Silva
Artista, educadora e pesquisadora graduada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Londrina. É integrante do Coletivo Negro Prata, onde compõe uma pesquisa conjunta sobre arte afro-brasileira. Fez parte de algumas exposições pelo norte do Paraná, entre elas Mesclada (2018) e No fim do mundo, o começo (2021), ambas promovidas pela Divisão de Artes Plásticas de Londrina. Investiga atualmente as intersecções entre memória, materialidade e escrita no campo da arte contemporânea.
Revista Arte ConTexto
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº17, MAR., ANO 2022
TRABALHO EM ARTE E CUIDADO
RESUMO
Este pequeno texto-obra resulta do exercício de pensar-se na escrita e na visualidade, interseccionando ambos os meios de fabulação e suas possibilidades. Todo o processo esteve em direta conversação com o trabalho de Tracey Emin e a escrita Clariceana (especificamente Sad Shower in New York, 1995, e A Via Crucis do corpo, 1974, respectivamente), levando em consideração os modos de gerenciar a angústia e a lida com a intimidade. A narrativa gerada tenciona, através da ficção, lançar um olhar cuidadoso sobre corpo, memória e vulnerabilidade. Do mesmo modo busca-se, através da aquarela, emprestar certa plasticidade para aquilo de íntimo que o texto intenta evocar.
Não sei se por crença ou por angústia, decidi que tomaria um banho de sal grosso. No pensamento me vinha a receita de uma velha e boa amiga: sal grosso para limpar o miolo, romã para proteger a casca. Já era tarde da noite quando fui até o quintal apanhar uma fruta do pé e, tornando à cozinha, tropecei no questionário da mãe: Para que isso?
Em poucos segundos, eu, de pensamento tão moroso, teria de elaborar uma boa desculpa. Explico: a gente aqui de casa é cristã. Rigorosamente cristã. Gente cheia de dogmas e crenças e culpas. Deu para acreditar em macumba, é? Eu ouviria, bem sei. Assim, para não ser recebida com alguma reprimenda, tratei logo de dizer que minha garganta doía. A mãe sempre diz que o chá da romã funciona feito anti-inflamatório para diminuir a dor, e eu tinha alguns créditos para concluir a encenação, visto que vivo doente pelos cantos. Mas desta vez não era de chaga física que eu ansiava por ser curada.
Talvez por este motivo foi que me neguei a responder com verdade o que faria com a romã. Digo, que diabo falaria? Mãe, algo me dói, mas não sei em qual canto, eu diria. Mãe, como é que se cura uma enfermidade da qual não se reconhece a causa? Eu diria. Mãe, preciso de alguma proteção tal como você precisa do teu cristo.
Mas fugi da palavra e fui calada para o quarto, à espera de me benzer assim que todos se deitassem. Lá pela meia-noite, as luzes já haviam sido apagadas e a casa dormia. Na mudez do corredor, pude ouvir o ronco abafado vindo do quarto do pai. O quarto da mãe sequer conferi, que eu bem conheço seu sono pesado. Só por precaução é que fui a passos leves até a cozinha. Então, ali, tinha eu sal grosso, romã e um bocado de silêncio. Péssima crente que sou, pus a água no fogo, já desassossegada. Questionava o que havia de tão sujo e gasto pairando sob o meu peito, sujo o suficiente para que eu buscasse limpeza. Limpeza de quê? Pediria proteção para quem? Muito pensava. Qual ardor latente me levou até esta espécie de prece? A angústia só entrou em trégua quando vi a água em ebulição, e ali coloquei a romã cortada com um bom tanto de sal.
Tratei de coar aquele amontoado de sementes e logo fomos para o banheiro, a bacia d’água, a caneca e eu. Tomei o banho rotineiro sem pressa, mas, enquanto me ensaboava, permaneci aflita: estaria eu faltando com cuidado nisto? Estaria caçoando de um rito sério? Ainda pensava sobre as ardências tantas. De banho tomado, continuei matutando: caso o santo não aceite a bronca de me cuidar, mal nenhum ele me fará. Daí que, baixinho, no pensamento mesmo, iniciei a súplica: que do meu peito se faça um campo forte, resistente, íntegro, mas não menos sensível. Que eu me torne suscetível ao mundo, mas que, ao mesmo tempo, não deixe sucumbir o passo a qualquer tremor ou vacilo. Que o tempo passe por mim e me envergue, me dome, me vire do avesso, mas não me derrube. Ou, ainda, derrube. Mas que, no tombo, eu não crie raízes no chão. E força. Muita força. Fortalecer sem endurecer, sem secar, sem tornar-se estéril. Estas me pareciam as melhores das bênçãos. Pensando nelas foi que aproximei a bacia, com a caneca já em mãos, e deixei que a água caminhasse sem freio pela pele.
Com o percurso da água, corriam também os meus olhos atentos a certas partes do corpo que eu havia esquecido. Avistei as cicatrizes no alto do joelho direito. Estavam ali as andanças de bicicleta, tombos e rodopios pueris. E por todo o comprimento da perna as cicatrizes estavam. Na altura do quadril, algumas marcas não tão acidentais, o corte brusco da adolescência fincado na pele. O nariz do pai, o queixo da mãe. Os brutos nós dos meus dois pés, grosseiros, crus. As bolhas recentes causadas pela sandália de plástico que, apesar de machucar, é a minha favorita. Também alguns ralados outros cuja causa não me recordo. Percebi: tenho o tempo cravado na pele. Assim é que despejava a água salgada do ombro para baixo.
Teria eu o fôlego necessário para assistir ao embranquecer destes cabelos pretos que agora recobrem a minha cabeça? Na metade da água, achei que aquilo bastava e me percebi miúda entre as paredes do banheiro. Deixei que o restante da bacia corresse pelo ralo do chuveiro para, talvez, agraciar as baratas da casa. E passada a prece, num instante sutil e de peito amansado, reconheci no espelho aquele corpo colérico em pé. Bicho estranho.
Referências Bibliográficas
DIAS, Aline; RAYCK, Diego (org.). Escrita em artes. Vitória: EDUFES, 2019.
LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
Referências Bibliográficas
DIAS, Aline; RAYCK, Diego (org.). Escrita em artes. Vitória: EDUFES, 2019.
LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
Lista de Imagens
1 Tracey Emin, Sad shower in New York, 1995, Monoimpressão, 42 x 59 cm. (Tate Museum Collection)
2 Juliana Silva, Bicho estranho, 2021, Aquarela, 12,5 x 12,5 cm.
3 Juliana Silva, Bicho estranho, 2021, Aquarela, 12,5 x 12,5 cm.
Lista de Imagens
1 Tracey Emin, Sad shower in New York, 1995, Monoimpressão, 42 x 59 cm. (Tate Museum Collection)
2 Juliana Silva, Bicho estranho, 2021, Aquarela, 12,5 x 12,5 cm.
3 Juliana Silva, Bicho estranho, 2021, Aquarela, 12,5 x 12,5 cm.