RITMANA.... RITMANALI... RITMANALIZAÇÕES VO-CÁ-BU-LO-POLÍTICAS

ARTIGO DE CRISTINA THORSTENBERG RIBAS

Doutora pelo Departamento de Artes do Goldsmiths College University of London (2017), mestre pelo Programa de Pós-graduação do Instituto de Artes da UERJ (2008) e graduada em Porto Alegre, pelo Instituto de Artes da UFRGS (2004). Tem experiência na concepção de projetos operando passagens entre a estética e a política, na forma de residência artística, pesquisa militante e pedagogia radical. Em 2011, criou a plataforma on-line Desarquivo.org a partir do projeto e arquivo Arquivo de emergência (2005). Faz parte da rede de pesquisadores Conceptualismos del Sur. Trabalha como pesquisadora e artista. Bolsista de Pós-doutorado PNPD/CAPES no Programa de Pós-graduação do Instituto de Artes da UFRGS (desde abril de 2018).

RESUMO

Como se pode compreender as transformações atuais na criação e na recepção de processos estéticos que aliam a estética à política? De que maneira um olhar sobre a noção de conceito a partir da filosofia da diferença pode pensar uma atualização de vocabulários e modificar as práticas elas mesmas? De que maneira configurações institucionais garantem o desenvolvimento de estratégias que permitem uma passagem fluida entre processos estéticos e a criação de novos conceitos e saberes sobre as práticas elas mesmas? A partir da breve análise de dois projetos, o Vocabulário político para processos estéticos e o Protocolo para intersectar vocabulários, faço um desenvolvimento breve dessas questões. A perspectiva implementada é aquela que olha para as mudanças de um campo de ação, assumindo transformações.

PALAVRAS-CHAVE

Processos estéticos, Estético-política, Transformação.

ABSTRACT

How can we understand the current transformations in the generation and reception of aesthetic processes that relate aesthetics to politics? In what way can an approach to the notion of ‘concept’, from the philosophy of difference, allow for a renewal of vocabularies, which can, somehow, modify the practices themselves? What sort of institutional configurations guarantee the development of strategies that allow a processual transition between aesthetic processes and the generation of concepts and knowledge about the practices themselves? From the brief analysis of two projects, the Political Vocabulary for Aesthetic Processes and the Protocol to intersect vocabularies, I will briefly develop these questions. The pmethodological perspective is the one that looks at the changes of a field of action, assuming transformations.

KEYWORDS

Aesthetic processes, Aesthetics and politics, Transformation.

Revista Arte ConTexto

REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.6, Nº15, MAR., ANO 2019
VERBETES DA ARTE

1. Abertura do diagrama
De que maneira a arte se guia pela trajetória de sua história e ao mesmo tempo se produz a partir de novos aportes? Uma perspectiva que olha para as mudanças é uma perspectiva que vai assumindo essas transformações. Encontrar aliados teóricos que façam jus a elas se torna extremamente necessário para seguir nos movendo na contemporaneidade. Félix Guattari, filósofo, psiquiatra, editor de revistas e organizador político que viveu entre 1933 e 1992, se torna aqui um aliado para pensar a pragmática das transformações conceituais e operacionais em processos estéticos, uma transformação vista para além da dicotomia entre linguagem e instituição, ou aquilo que a história da arte institui sobre a pragmática do acontecimento da arte mesma. Guattari (1988; 1992) nos ajuda a constituir um diagrama deveras mais complexo.

A forma como conceitos são (re)inventados e como a sua invenção traz transformações cruciais para a experiência estética, seja na sua criação ou realização, vem sendo abordada por mim como pesquisadora, artista e catalizadora de projetos há cerca de cinco anos. Um dos primeiros projetos que realizei, o Vocabulário político para processos estéticos1, em 2014, foi uma maneira de endereçar coletivamente algumas questões que aqui se apresentam2. Depois daquele projeto se instalou um processo de pesquisa a partir do qual desenvolvi ações desenhando protocolos de improvisação corporal, de som e voz – um trabalho que se chama Protocolo para Intersectar Vocabulários (2015 até hoje).

Em 2014 quando realizamos o projeto Vocabulário político, não nos interessava produzir uma análise da macropolítica a partir da produção estética. Mas antes, como eu havia explicitado no convite para os cerca de 20 participantes (grupo que cresceu mais ainda ao longo do processo), o que se objetivava era a criação de uma espécie de caixa de ferramentas para processos estético-políticos a partir de processos coletivos, grupais, mais ou menos institucionais e… transformativos. O contexto político brasileiro expressava a reverberação daquela urgência. Afinal, o Brasil que se conhecia pelas ruas desde os levantes de Junho de 2013, nesse “ano que não acabou”, produzia novas expressões, ações e táticas de criação e resistência a cada dia, a cada nova configuração do embate político que se instalava pré-golpe. Como parte de uma tática temporalizada, o Vocabulário político se endereçava então aos espaços comuns afetivos e ativos das ruas e das assembleias, das reuniões, das ações de tomada das ruas e das intervenções estéticas, um processo político-social que não víamos como encerrado, muito menos queríamos encerrar a arte dele. Alienação primeira da macropolítica: retirar-nos dela. Operação na qual queríamos nos meter: entender de que maneira uma atenção à micropolítica – por dizer, uma atenção aos fluxos de colaboração e produção, pode mudar a pragmática dos acontecimentos estéticos e, porventura, políticos3.

Conceitos
Este texto, que se coloca como pesquisa em processo, traz a atenção para os fluxos de colaboração e produção aportando a transformação da produção estético-política, desde a perspectiva das transformações conceituais. A atenção aos fluxos, à micropolítica (Deleuze, 2009; Rolnik, 2011) e a essa perspectiva que observa a criação de conceitos como uma passagem fluida entre conceito e criação insurgem da filosofia da diferença, do ciclo de produção que vai fazer uma crítica às instituições e ao modo de instituir conhecimento a partir dos anos 1960, alavancando formas de pensar a produção de subjetividade. As passagens que se dão entre os contextos europeu, o latino-americano e o brasileiro são analisados por vários autores (COIMBRA, 1995; HUR e VIANA, 2016; Ribas, 2017). Na próxima sessão, abordo a perspectiva das transformações a partir de novas configurações institucionais. Na mirada que a filosofia da diferença vai dar à filosofia histórica, Gilles Deleuze , filósofo e colaborador de Guattari, vai escrutinizar de que maneira se pode tomar a produção de conceitos como parte de uma apropriação da filosofia ela mesma (DELEUZE E GUATTARI, 2009). Ou seja, filosofia não como algo “lá”, mas como algo que se atualiza desde cada corpo que a toma. Ele olha para os “personagens filosóficos” e para os conceitos que lhes foram atribuídos no desenvolvimento de uma história da filosofia. Que conceitos foram assignados a quem? E o que isso implica hoje? Na busca por entender a origem de cada conceito, de maneira irônica, Deleuze diz: “a etimologia como atletismo propriamente filosófico” (2009. p. 16). E acrescenta:

Ora, apesar de datados, assinados e batizados, os conceitos têm sua maneira de não morrer, e todavia são submetidos a exigências de renovação, de substituição, de mutação, que dão à filosofia uma história e também uma geografia agitadas, das quais cada momento, cada lugar, se conservam no tempo, e passam, fora do tempo. (2009, p. 16).

Deleuze, assim como Guattari, atenta para a necessidade de atualizar os conceitos que nos interessam em relação às nossas vidas, às vidas em seus vetores de tempo e contextos específicos. Nesse sentido, uma análise do conceito ou da função conceitual não estaria remetida a um passado que não se pode acessar, mas seria reinscrita no presente. Agitar, fazer variar e transformar fazem parte das operações que eles vão propor em relação ao estudo e à produção de conceitos, de maneira a (re)encontrar “a questão da filosofia” e “o ponto singular onde o conceito e a criação se remetem um ao outro” (DELEUZE, 2009, p. 20). O conceito não está dado, dizem. Ele tampouco é forma (conceitual) de outra coisa. Ele se põe “em si mesmo”, é “autoposição”. Deleuze (2009, p. 20) diz: “o que é verdadeiramente criado, do ser vivo à obra de arte, desfruta por isso mesmo de uma autoposição de si, ou de um caráter autopoiético pelo qual ele é reconhecido”. Por isso, para Guattari (1988), emerge também a necessidade de estudar o signo, a semiótica na sua processualidade, e como ela interfere, é matéria estética e produz a vida ela mesma. Ou, em como ela é usada para conduzir e controlar modos de vida.

Transformações institucionais
Em minha pesquisa de doutorado fui percorrendo os caminhos da filosofia da diferença no Brasil a partir de meados dos anos 1970, tentando compreender de que maneira certos conceitos e práticas se tornaram tão relevantes para o desenvolvimento de instituições acadêmicas em transversalidade com outras instituições e grupos. Considerando a contribuição do trabalho de Guattari ao campo da estética, sobretudo com a publicação de Caosmose (1992), obra na qual ele propõe um novo paradigma “estético” (para diferenciar do “científico” e para relacionar à subjetividade de outra forma que não a causalista)4, um olhar sobre as transformações institucionais que aqui vou desenvolver brevemente se refere também às transformações que incorrem no seio da produção artística e historiográfica naquele período, e que seguem reverberando em nossa atualidade. Fica para ser estudada com mais detalhe a relação entre a análise institucional e a crítica institucional, para a qual este texto quer contribuir.5 A análise institucional e a antipsiquiatria junto da “cartografia esquizoanalítica” foram amplamente difundidas na América Latina, e esta última continua a ser estudada e desenvolvida em diversas configurações institucionais singulares (COIMBRA, 1995)6. É a partir de um olhar para as transformações institucionais que se pode entender de que maneira é possível pensar a atualização dos conceitos, e a sua relação de passagem, fluida e, por que não, “afetante” em relação à pragmática dos processos estético-políticos.

A análise institucional e a mobilização da filosofia da diferença não foram desenvolvidas apenas a partir da academia, mas de maneira transversal entre várias práticas e instituições de formação e ação social. A atualidade desses saberes hoje é um reflexo da história bastarda que constituiu a difusão da filosofia da diferença em relação a saberes locais e a outros fluxos que podemos chamar de decoloniais no Brasil. Em minha percepção, uma das afirmações mais assertivas do que acontecia nesse momento é feita por René Lourau (1993), segundo o qual toda análise institucional encontra a análise do Estado. Ou seja, a cadeia de instituições que organiza a sociedade tem o Estado como agenciador maior das políticas de subjetivação, garantindo a reprodução de um sistema de controle disciplinar, e, portanto, produtivo, de certa forma.7 Diante da destruição institucional realizada pelo Estado no período das ditaduras (a democracia colocada em um horizonte inalcançável), era necessário reinvestir nas instituições de maneira que se tornassem dispositivos de produção distribuídos, capazes de lutar molecularmente contra a estrutura econômica e culturalmente controladora que se sobrepunha à sociedade, reforçando segregações sociais e privilégios que se tornariam, na grande maioria, irreversíveis, cujos efeitos seguimos lutando para transformar no Brasil de hoje.

Os anos de 1960 e 1970 foram caracterizados por uma composição mista das pastorais religiosas, a organização de lutas populares e os movimentos de periferia com a filosofia da diferença. Seu desenvolvimento refletia os processos de resistência à opressão institucional do regime ditatorial e empurrou o processo de abertura do país. As passagens de saber e, por que não, tráfico de saber, aconteceram em parte pela migração e pelo êxodo forçado ou voluntário de pesquisadores, psicanalistas, teatrólogos, psicólogos, entre outros, no período que vai do final dos anos 1960 até o começo dos anos 1980. A crítica à psicanálise e à sua construção a partir de uma instituição vertical ancorava o movimento institucionalista em um impulso ainda mais transversal, indo contra à ideia de pureza e do controle que caracterizava o processo de formação dos psicanalistas e dos psicólogos (COIMBRA, 1992), aprendendo da psicanálise, mas fazendo dela um rebatimento para práticas mais coletivas e mais transversais. Afinal a psicanálise, como ciência da subjetividade ancorada na linguagem, foi e segue sendo um objeto de análise da filosofia da diferença.

A abertura institucional foi criada como demanda em meio ao contexto das ditaduras na América Latina, não apenas no Brasil. A especificidade da configuração brasileira na aplicação da filosofia da diferença – mistura entre o pensamento institucionalista e a crítica ao estado – deram forma a ferramentas precisas que lutavam pela abertura das universidades e pela continuidade da relação com sua base social. Entre as ferramentas, a análise institucional reinventada fundava projetos de pesquisa e programas de pós-graduação de maneira que pouco se vê em outros países e contextos. Minha pesquisa doutoral debruçou-se sobre as redes que se criaram a partir dos anos 1970, algo que não cabe contar nesse texto. O que cabe contar é como, a partir deste contexto, se dá a emergência de pragmáticas construtivistas que nos ajudam a compreender de que maneira a criação institucional dá corpo à criação conceitual. Isso não ocorre sem uma reconfiguração sobre as políticas cognitivas, ou seja, ao mesmo tempo que se implica a cognição para pensar os processos do conhecer, pesquisadores e professores  também se implicam no trabalho de pensar a configuração institucional que vai ser capaz de agenciar certos modos de produzir conhecimento e… processo estético. O conhecer nessa nova configuração institucional não está separado da criação, tanto que um dos conceitos desenvolvido em meio à demanda por abertura e reinvenção institucional é o de “criação cognitiva” (KASTRUP, 2007).

Esse conceito emerge para dar consistência a uma nova política cognitiva e para rebater a concepção de certos regimes que viam a cognição meramente como faculdade representativa (ou dada à representação e simulação).8 Kastrup desenvolve seu trabalho a partir da Universidade Federal no Rio de Janeiro, contexto que persigo mais de perto. Neste aparato criam-se encontros de efeito transformativo entre a pesquisa, a produção do conhecimento, a criatividade e a subjetividade. Uma pesquisa em diálogo com a preocupação sobre a importância do processo estético e da subjetivação para Guattari. A perspectiva produzida por Kastrup, assim como vários pesquisadores que aportam a filosofia da diferença, recoloca a relação entre sujeito e objeto do conhecimento, definição que se constitui através de campos do conhecimento acadêmicos – de onde emerge que “sujeito e objeto são efeitos de uma relação, e não condição da atividade cognitiva” (MATURANA; VARELA apud KASTRUP, 2007). O interesse dos pesquisadores engajados com uma reconceitualização da cognição para além ou longe dos “modelos representativos” é uma necessidade de entender como a cognição muda na atualidade, não apenas relacionada à produção de conhecimento, mas também ao impacto da tecnologia e da ciência em processos cognitivos. Essa operação se colocava e se coloca, portanto, a tarefa de pensar também a produção de conceitos.

A criação e manutenção das configurações institucionais que não colocam a produção estética nem a produção de conhecimento devotas de uma verdade que não condiz ao contexto social e político presente, aquelas que replicam verdades conceituais de modo a manter as produções em um rebatimento tecnocrático (linhas de conservação), expõe, por sua vez, o tecido subjetivo que faz parte dessa nova pragmática institucional. É preciso, portanto, estar atento às passagens subjetivas que a configuração institucional permite. Passagens subjetivas que aliam conhecimento e estética. Escreveu Lourau em 2004: forças e vetores heterogêneos, dinâmicos e instáveis, diversificadores, variantes, mutantes.

Implicar corpos

Começamos. Na verdade acho que começamos quando Greve Geral urra no círculo de sons com o corpo. Garganta arranhada, temos algo entranhado? Um som do corpo que imediatamente vira voz esgarçada, voz de Greve Geral, de urgência (sensação de que é preciso significar logo, o protesto é real). Para mim, ação imprevista. Fico um pouco estarrecida, mas nada, acolho,… e seguimos. Toda expressão, qualquer expressão, é uma expressão válida (assim como a experiência política). Vamos tramando. “Medo” chega. E ainda que a coisa esteja se construindo, parece que é possível saltar alguns exercícios a partir do que estava programado, os corpos/gentes estão tão prontos que alguns exercícios se tornam desnecessários. Mas o que são “corpos prontos”? São corpos sem amarras, abertos a experimentar. Desses corpos saem volumes mais altos, mais descarregados, e contatos corporais mais ativos, mais afetados e afetáveis, mais inventivos. (trecho do relato de uma oficina realizada por mim no Capacete, Rio de Janeiro, 2017).

Que tipo de estratégias podem ser criadas para colocar em movimento o falar e o fazer, o produzir de vozes comuns (não necessariamente de artistas), ativando não só a potência disruptiva da arte, mas também a potência criativa das lutas sociais? Não se trata de criar diagramas que possam analisar essa relação congelando conceitos (ou um saber-poder sobre algo) e a pragmática (as vidas, os corpos eles mesmos), que seria atingida pelos conceitos “depois” de sua elaboração. Como vimos pela manutenção das configurações institucionais que permitem uma passagem mais fluida entre criação e subjetivação, pela ideia de uma criação cognitiva, a criação está no “meio”. A criação de conceitos, nesse sentido, seria ativação da potência estética que toma corpo, contudo, em corpos implicados, em formas, em agenciamentos. Para ver dessa forma é preciso acessar a definição de um “espaço estético” (BOAL, 2002), como um espaço plástico e compositivo, o que me leva à pragmática do teatro, ou ao que chamo de um “laboratório de teatro”. Assim podemos perguntar: como é que esses diagramas de análise se voltam para o desejo da criação, e para os corpos que se implicam? A resposta é que nunca os deixaram. Os modos de olhar é que podem nos enunciar se os diagramas que se projetam permitem uma observação (e a interatuação) com as forças em curso, sobre esse “desejo de criação” e sobre produção estética ela mesma, ou não. Uma atenção a como se configuram esses diagramas e a como eles liberam a produção de conceitos pode ser entendida como uma atenção aos processos estético-políticos em curso. Uma atenção desse modo se pode pensar como atenção micropolítica, por ser uma atenção aos ritmos, à ritmanalização das experiências, saberes, desejos e mais em curso.9

Em meu trabalho de pesquisa e artístico tenho desenhado oficinas ou ações performáticas ao redor da criação dos Protocolos para Intersectar Vocabulários. Trata-se de produzir uma estratégia de atenção aos vocabulários políticos de quem participa dessas proposições, em uma “ritmanalização” em diferentes tempos e intersecções, de maneira a incitar processos de criação e pesquisa. Fazer isso é impossível sem conjurar os corpos implicados, implicados “em si mesmos”, autopoiéticos, como disseram Deleuze e Guattari sobre os conceitos. Corpos encarnados colocando em ação uma escuta de si, uma composição grupal temporal, fazendo com que esses corpos olhem para seus repertórios e operem a abertura de camadas e camadas de análise … e de criação.

Como interseccionamos nossos vocabulários, a partir de nossas experiências e vidas singulares? Que palavras, expressões, frases, enunciados falam de nossa relação com as passagens entre a estética e a política? Que vocabulários acessamos e produzimos quando operamos essas passagens? Como criamos vocabulários estético-políticos para nós mesmos? A partir de que vidas, grupos, movimentos, classes, gêneros, raças, sexualidades, gerações eles falam? Como nossos vocabulários interagem com, participam em, aprendem de outros vocabulários? Como criamos vocabulários a partir de nossos corpos (e vidas)? O que chamo de “vocabulário” é um certo conteúdo do discurso e da linguagem atentando para elementos a-significantes, pré-verbais, pré-individuais, corpóreos e extralinguísticos, de maneira a acessar vocabulários singulares, grupais, pessoais. Esta definição de vocabulário é artificial e provisória: ela quer servir para acessar a complexidade de nossos processos políticos e estéticos e produzir transversais entre vocabulários e práticas criando novos fluxos de enunciação e escuta.

Os protocolos são escritos para cada momento. Eles dependem do tamanho do grupo, das possíveis intenções do grupo. De uma certa maneira, os protocolos são os diagramas de ação, o script da ação. Eles querem ativar matérias de expressão a partir da dinamização corporal. Aplico métodos como do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, buscando variações despregradas da representação direta à qual muitas vezes incorre a política. A própria noção de enunciado político é colocada em questão aqui. Como abrir situações de conflito, de realidades de vida, de emergência da emoção, acolhendo-as e operando em meio às forças que se apresentam hoje?10 No Teatro do Oprimido, que foi desenvolvido a partir de várias experiências de teatro popular, se criam imagens a partir de situações reais. Essas imagens se tornam o detonador de imprevistos que abrem, por sua vez, aquela variabilidade desejada para transformar a percepção e a realidade na qual um corpo, uma vida está inscrita. Operam, portanto, uma transformação do objeto estético, fazendo dele um objeto estético-político.

A ritmanalização de corpos, como se pode ver em alguns vídeos que faço das oficinas e relatos que escrevo, abre um espaço de elaboração e, ao mesmo tempo, de confrontos, mas também de invenção. Trazendo um exemplo, se a compreensão que alguém tem de um conceito usado é diferente da minha – “feminismo” –, de que forma seguir na dinâmica uma vez que posições distintas se apresentaram? Observar e “abrir” para ritmanalizar (sem negar, ou calar) dilui duas falácias, ao menos. Uma, a de que a política só é possível diante de uma certa homogeneidade das identidades e da conciliação de enunciados comuns; e outra, a de que a experiência estética só seria possível “representando” uma política real de corpos e vidas que acontece “em outro lugar” (por exemplo, a arte tomando a política como “tema”). A operação radical aqui se torna então intersectar, ritmanalizar, colocar em relação e mistura conceitual, semiótica, que deixa aparecer as diferenças, os antagonismos, as novas composições possíveis. A ritmanalização não joga “para o futuro” a problemática entre estética e política, por dizer: contradiz a verdade que institui que a arte poderia “amadurecer” ou ensaiar questões, posicionamentos, pragmáticas que podem tomar espaço “depois” na vida e na política, mas, ao contrário, coloca em cena ali mesmo por aportar um potencial transformador.

Em direção a novos vocabulários
Guattari escreveu “em direção a novos vocabulários” por toda sua vida. Guattari era incansável em produzir conceitos que mutavam de tempos em tempos. A transformação de análise institucional em transversalidade, por exemplo, e de modelização em semiotização, ocorrem ao largo de suas décadas de produção. Guattari construiu um ferramental conceitual para pensar a produção estético-política a partir de diversos conceitos, entre eles o de “agenciamentos coletivos de enunciação”, cuja autoria ele comparte com Deleuze. A importância de criar conceitos é como Deleuze e Guattari (2009, p. 20) coloca em “O que é a filosofia”: “O que depende de uma atividade criadora livre é também o que se põe em si mesmo, independentemente e necessariamente: o mais subjetivo será o mais objetivo.” Ou seja, aquilo que parece que opera “por fora” pode emergir da invenção da subjetividade ela mesma. Devir fluido entre subjetividade que inventa a si e atenção aos fluxos de poder em si, e ao redor de si. Atenção micropolítica, atenção estético-política. Guattari escreve em “Inconsciente Maquínico” (1988, p. 34-35) que

[…] os campos pragmáticos das formações de poder, antes de se estabilizarem sob a forma da língua, de dialeto, etc, devem primeiro ser “experimentados” a título de performance coletiva: todos os intermediários, todos os graus de fluidez são assim concebíveis na passagem de uma performance semiótica individual, fosse este marginal ou mesmo delirante, até as codificações completamente esclerosadas, tipo dicionário, gramáticas acadêmicas, credo religioso ou político…; sua eficiência depende do modo dominante de semiotização que põe em obra e do fato, em particular, de que componentes diagramáticos desencadeiam ou não certas máquinas abstratas (financeiras, científicas, artísticas, etc…).

Ele fala que é preciso conceber agenciamentos coletivos de enunciação que superem o corte entre sujeito da enunciação e sujeito do enunciado (GUATTARI, 1987, p. 142). Como isso se inscreve com a produção estético-política que se ocupa da produção de conceitos? A problemática instável dos vocabulários se apresenta como forma de pensar isso. Porque os vocabulários aqui são pensados como uma articulação entre modos de vida, enunciados e discursos, pensados como uma dimensão viva e produtiva da faculdade da linguagem, na qual se confundem e se atravessam diversos contextos e lutas políticas. Afinal, como acessar nossos vocabulários “por fora” da funcionalidade que eles ocupam na faculdade da linguagem? E nos estudos linguísticos? Como colocar eles mesmos sob a condição de signos mutantes? Parece que é preciso investigar, ouvir mais, escrever sobre, sair para as ruas, conversar, mapear, intuir. Produzir vocabulários falados com o corpo inteiro, vocabulários a partir de excessos e que atravessam ou se colocam na margem de diversas mutabilidades.

Mas, e ainda, uma última pergunta, como se coloca em jogo, na produção de conhecimento sobre a pragmática dessa produção estético-política os registros e as análises sobre essas transformações? Não se trata de um projeto só do falar, do murmurar, do agitar e gritar, mas de investigar os modos de escrita e de registro dessas novas ativações de saber, que dependem também de uma memória e da ativação de encontros e enunciados efêmeros, que se registram nos muros e que se multiplicam na virtualidade da mídia, saber acadêmico e/ou ferramenta de luta. Se trata de manter aquela (co)produção institucional, de colocar a pesquisa em linha de transformação. Por isso, voltando ao projeto-livro, o Vocabulário político também tomou forma assumindo que é um livro-invenção, um livro como espaço de escuta e espaço de leitura, em voz alta, produzindo comuns, repletos de singularidades. Nas articulações dos processos estéticos que são constitutivos de modos de vida, de singularidades e de realidades comuns, as ações de improvisação corporal e o livro-invenção se somam, então, aos espaços que ativam a micropolítica da língua e da linguagem e a micropolítica das expressividades, visto que são espaços produtivos sobretudo da política como criação. São espaços que se valem de um intercâmbio de sensibilidades, da tomada de posições, da negociação de realidades em processo, criando colaborações e proliferando diferenças, amplificando as ritmanalizações vo-cá-bu-lo-estético-políticas. Diz Guattari que “[…] temos tendência de pensar que esse modo de conhecimento por afeto não-discursivo permanece rude, primitivo, espontaneísta”, contudo, é necessário não despreciar. O que se coloca entre o não discursivo e o discursivo “implica uma passagem entre complexidade real e uma virtual”, gerando “transferências de consistência ontológica entre o virtual e o real, entre o possível e o atual” (1992, p. 76).

Notas de Rodapé

1  Site do “Vocabulário político para processos estéticos”, onde se pode baixar o livro: <http://vocabpol.cristinaribas.org/>. Participantes presenciais do projeto na oficina interna foram Agência Transitiva, André Mesquita, Beatriz Lemos, Breno Silva, Cecilia Cotrim, Cristina Ribas, Davi Marcos, Daniela Mattos, Enrico Rocha, Graziela Kunsch, Inês Nin, Isabel Ferreira, Jeferson Andrade, Julia Ruiz di Giovanni, Juliana Leal Dorneles, Kadija de Paula, Laura Lima, Lucas Rodrigues, Lucas Sargentelli Tabajara, Margit Leisner, Raphi Soifer e Sara Uchoa.

2  Dois livros foram referência para esse projeto. Eles foram concebidos de maneira semelhante ao Vocabulário político, e circularam nos nossos encontros no Rio de Janeiro. Eles são Vocabulaboratoires, editado por Manuela Zechner, Anja Kanngieser e Paz Rojo; e Micropolíticas de Los Grupos: Para una Ecología de Las Prácticas Colectivas, organizado por Oliver Crabbé, Thierry Muller e David Vercauteren. Resultados de encontros e trocas, ambos operam tanto como caixas de ferramentas quanto como documento/arquivo de práticas e experiências.

3  “Uma pragmática micropolítica terá por objeto agenciamentos semióticos transbordando por todos os lados – do lado ‘infra’ em direção às intensidades corporais e do lado ‘supra’, em direção ao socius – à linguística personológica.” (GUATTARI, 1988, p. 34-35).

4  Guattari escreve: “O paradigma estético tem implicações ético-políticas porque quem fala em criação, fala em responsabilidade da instância criadora em relação à coisa criada, em inflexão do estado de coisas, em bifurcação para além de esquemas pré-estabelecidos e aqui, mais uma vez, em consideração do destino da alteridade em suas modalidades extremas. Mas a escolha ética não mais emana de uma enunciação transcendente, de um código de lei ou de um deus único e todo-poderoso. A própria gênese da enunciação encontra-se tomada pelo movimento de criação processual.” (1992, p. 137)

5  Em minha pesquisa pós-doutoral no PPGAV-Instituto de Artes da UFRGS tenho desenvolvido essa análise (início da pesquisa abril de 2017). Bolsa PNPD Pós-doutorado da CAPES. Resultados dessa pesquisa serão publicados em forma de artigo brevemente.

6  No Brasil, o Núcleo de Subjetividade na PUC de São Paulo é uma instituição implicada em estudar esquizoanálise e cartografia esquizoanalítica.

7  Uma análise contemporânea precisará sempre adicionar o mercado ou os mercados e sua relação com o Estado e esta relação com os processos de subjetivação. Não abordo esse problema neste artigo.

8  No Brasil, os pesquisadores Virgínia Kastrup, Eduardo Passos e Silvia Tedesco publicaram em 2008 o livro Políticas da cognição e antes disso criaram grupos de pesquisa dedicados a defender a produção de conhecimento por estratégias transdisciplinares. A crítica desses autores vai em sentido contrário à ciência computacional, à filosofia e à psicologia da linguagem e sua relação com a subjetivação.

9 A noção de ritmo aqui se aproxima muito da figura do “ritmanalista”, proposto por Henri Lefebvre, mas dialoga mais com dois textos constantes no livro Vocabulário político, um de Annick (“Mudez”) e outro por André Mesquita (“Escuta”) (RIBAS et al., 2014).

10 Não é comum que se alie a filosofia da diferença ao Teatro do Oprimido. Fiz isso em minha tese doutoral e também em um artigo publicado em 2017: “Teatro do Oprimido e Cartografia Esquizoanalítica”.

Referências Bibliográficas

COIMBRA, Cecília. Guardiões da memória: uma viagem pelas práticas ‘psi’ no Brasil do Milagre. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995.

CRABBÉ, Oliver et al (ed). Micropolíticas de Los Grupos: para una ecología de las prácticas colectivas. Madrid: Traficantes de Sueños, 2011.

DELEUZE, Gilles e Guattari, Félix. O que é a filosofia? São Paulo: Martins Fontes, 2009.

GUATTARI, Félix. Revolução Molecular. Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
______. O inconsciente maquínico. ensaios de esquizoanálise. Campinas: Papirus, 1988.

______. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.

______. Schizoanalytic Cartographies. London, Nova Iorque: Bloomsbury Academic, 2013.

HUR, Domênico Uhng; Viana, Douglas Alves. Práticas grupais e esquizoanálise: cartografia, oficina e esquizodrama. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, vol. 68, n. 1, abril 2016.

KASTRUP, Virgínia. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007 (1997).

LOURAU, René. Análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1993.

RIBAS, Cristina. Vocabulários interseccionando: uma transversal no Brasil entre Junhos disruptivos. Revista Mesa, 2015. Disponível em: http://institutomesa.org/RevistaMesa_2/vocabularios-interseccionando/.

______ et al. Vocabulário político para processos estéticos. Recife/Rio de Janeiro: Editora Aplicação e da editora, 2014.

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre, RS: Sulina, Editora da UFRGS, 2011.

Lista de Imagens

Diagrama das “entradas” a serem trabalhadas no Vocabulário político para processos estéticos. Rio de janeiro, Capacete, 2014. Foto: Cristina Ribas

  Oficina Protocol do Intersect Vocabularies, Graduate Festival, Goldsmiths College University of London, Londres, 2016. Fonte: Still do vídeo, Cristina Ribas.

3   Oficina Protocol do Intersect Vocabularies, Graduate Festival, Goldsmiths College University of London, Londres, 2016. Fonte: Still do vídeo, Cristina Ribas.