TRABALHO EM ARTE E CUIDADO
“O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais do que um ato; é uma atitude.”
Leonardo Boff, Saber cuidar: ética do humano — compaixão pela terra, 1999
Após um intervalo de dois anos, a Arte ConTexto retoma as atividades com uma nova equipe de editoras, formada por Camila Savoi, Renata Santini, e Talitha Motter, que atua desde a criação da revista. Enquanto o país tenta retomar algum ritmo próximo da normalidade, nossa décima sétima edição apresenta como tema “Trabalho em Arte e Cuidado”. Neste retorno, sugerimos um pensamento crítico no contrafluxo de um contexto sociocultural que exige cada vez mais de nós mesmos. Dentro da definição de cuidado, pode-se abranger diferentes aspectos: do acolhimento, da cautela, de se dedicar a alguém ou a algo, de uma reflexão atenta etc.
Para ativarmos as potências viabilizadoras de sentidos no trabalho em arte, escolhemos Vanessa Freitag como a primeira Artista Residente em nosso Instagram, onde produções vinculadas à temática da revista são apresentadas. Entre os dias 8 e 19 de novembro de 2021, imagens do seu cotidiano no atelier foram compartilhadas com nosso público. A dedicação presente em todas as etapas do seu trabalho, como no uso do corpo, no fazer manual e nas relações com o entorno, incluindo a maternagem, levou à escolha dessa artista. Freitag se conecta, de forma muito especial, a todas as pessoas envolvidas no trabalho de arte e no cuidado.
Os textos desta edição tensionam essas relações em diferentes campos, como a prática, a conservação, a arte-educação e a curadoria. A revista se adaptou ao tema, aceitando o formato Documentos de Trabalho, a partir do qual Cecilia Crocsel, Elke Coelho e Renata Requião puderam revelar seus cotidianos de cuidado em suas ações. Além disso, atualizamos as linguagens aceitas para publicação, recebendo também trabalhos em áudio e vídeo. Os sons que entornam as atividades da casa são revelados nos áudios “Feijão” e “Turvo”, criados respectivamente por Natália Chaves Bandeira e pela dupla Martha Gofre e Jessica Porciuncula. Essas produções se conectam com o Documento de Trabalho de Renata Requião, no qual imagem e som ressignificam o habitar no processo de viver a pandemia. Na peça sonora “Súplica ao silêncio”, de Marcelo Armani, ocorre a apropriação crítica de áudios de alguns dos depoentes à CPI da Pandemia no ano de 2021, com interferências geradas pelo som de um respirador.
Na categoria Vídeo, apresentamos a obra do coletivo Semilleros “Enquanto Vivas”, que lança um olhar sobre a situação de risco da mulher na sociedade contemporânea, agravada durante a pandemia. Nessa mesma direção, publicamos o Portfólio de Rita de Souza, “5 Marias Não Manipuláveis”, em que a artista também aborda o feminicídio e antevê uma possibilidade de resistência. As contribuições textuais de Edith-Anne Pageot e de Maude Darsigny-Trépanier, que analisam as obras de artistas mulheres a partir de uma abordagem teórica do care, enriquecem esse debate.
Entre os Portfólios, contamos ainda com os trabalhos de Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., Guilherme Bergamini, Jessica Porciuncula e Mariana Hauck, os quais nos fazem tomar consciência da importância do cuidado direcionado aos que estão próximos de nós, às obras de arte e à sociedade como um todo. Nessa mesma linha, os Textos-Obra dos artistas Boris Grisot e Tifaine Coignoux nos transportam para uma experiência relacional do mundo e da criação, dentro de uma visão sistêmica.
Refletir sobre maneiras de gravar imagens usando procedimentos menos tóxicos é igualmente uma forma de cuidado no trabalho em arte – sendo essa a proposta que encontramos nas produções de Cecilia Noemí Conforti, Natália Bernardi, Malena Liberali e Cecilia Crocsel.
Nós, editoras, nos sentimos acolhidas, enquanto participantes do contexto artístico, pelas trocas de experiências nas produções aqui publicadas. A partir deste conteúdo, a equipe da Arte ConTexto busca chamar a atenção para o estado persistente de vulnerabilidade de nossos corpos orgânicos, institucionais, científicos, patrimoniais e culturais. Esses corpos nem sempre recebem o respeito que merecem devido ao ritmo frenético de nossa sociedade – a qual, muitas vezes, não dá espaço para o acolhimento e para as diferentes formas que ele pode assumir. Com o objetivo de germinar ideias de proximidade, de respeito e de empatia direcionadas a nós, aos outros e aos objetos, desejamos a todes uma boa leitura!
Camila Savoi, Renata Santini e Talitha Motter
REVISTA ARTE CONTEXTO
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº17, MAR., ANO 2022
TRABALHO EM ARTE E CUIDADO
Capa: Vanessa Freitag, “Chantli”, da série Jardin Invisible: o que brota depois das chuvas, 2022. Foto: Juliette Villalobos
CITAÇÃO
Daí que, baixinho, no pensamento mesmo, iniciei a súplica: que do meu peito se faça um campo forte, resistente, íntegro, mas não menos sensível. Que eu me torne suscetível ao mundo, mas que, ao mesmo tempo, não deixe sucumbir o passo a qualquer tremor ou vacilo. Que o tempo passe por mim e me envergue, me dome, me vire do avesso, mas não me derrube. Ou, ainda, derrube.
Mas que, no tombo, eu não crie raízes no chão. E força. Muita força. Fortalecer sem endurecer, sem secar, sem tornar-se estéril. Estas me pareciam as melhores das bênçãos.
Juliana Camila da Silva
GALERIA ARTE CONTEXTO
Na Galeria desta edição apresentamos cinco Portfólios que ponderam a questão do cuidado em suas práticas artísticas. A série de performances de Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. joga com as relações que se estabelecem entre a arquitetura, as obras e o público, evidenciando os gestos daqueles que devem assegurar esse convívio. Em “Reavivar”, Guilherme Bergamini transforma a experiência do confinamento e da separação do outro ao abordar a proximidade entre pai e filha. Um paralelo entre desenhos e fotografias mostra esses momentos avivados pelo contato com a natureza. Também buscando outras formas de lidar com o contexto da pandemia, agravado pelo atual governo brasileiro, Jessica Porciuncula apresenta seu projeto “Era Venenosa”. A partir de um corpo ornado de elementos de nossa paisagem, sua série de fotografias abre para uma integração de mãos e flores, de pele e areia, de rosto e verde. O toque, que é uma das maneiras de entrarmos em contato com o que nos entorna, é tratado por Mariana Hauck, em “Gestos Paisagísticos”. Suas imagens são radiografias de possíveis encontros entre o humano e fragmentos de paisagem. Finalmente, a ação de tocar se apresenta pela sua antítese no trabalho “As 5 Marias Não Manipuláveis”, de Rita de Souza. Nele, vemos que todo o toque sem cuidado é uma agressão.