ACESSO À CULTURA
“O homem é um animal político porque é um animal literário, que se deixa desviar de sua destinação ‘natural’ pelo poder das palavras.” Jacques Rancière, A partilha do sensível, 2009, p. 59-60.
Ao completar dez anos de trabalho na construção de um espaço acessível à publicação, conectando diferentes agentes do meio cultural, a revista Arte ConTexto propõe como tema o acesso à cultura. O que pode ou não ser discutido nas artes? E quem pode fazer parte dessa discussão? Os diferentes conteúdos aqui publicados analisam essa problemática.
O artigo em linguagem de sinais O Espaço Mídia como Lugar para o Exercício da Cidadania Cultural Surda, produzido por membros da Chaire de recherche du Canada sur la citoyenneté culturelle des personnes sourdes et les pratiques d’équité culturelle, expõe como o vídeo pode colaborar no exercício da cidadania cultural da comunidade surda.
Já a contribuição de Michele Dacas, Um Contrapeso ou Dia de Visita em Museu de Arte Universitário, por meio do relato de uma visita de estudantes de museologia ao Museu de Arte da Universidade Federal do Paraná (MusA), trata das relações de mediação nos espaços institucionais do sensível.
Saindo do espaço institucional, o texto curto de Fabíola Tasca mostra a atuação de cientistas culturais diante da precariedade vivenciada pelo setor. A Cultura aos Cuidados da Arte no Projeto Próxima Paisagem descreve algumas ações que permitiram encontros significativos com habitantes da região do Bação, no município de Itabirito (MG).
Além dessas iniciativas de pesquisa que vão ao encontro da comunidade, constatamos a proliferação de podcasts como meio de disseminação da cultura. O VER.SAR de Priscila Costa Oliveira, que convida mulheres para ler outras mulheres, é um bom exemplo. Os episódios são apresentados fora do circuito oficial de arte, como em salões de beleza, bares, restaurantes e salas de espera.
Produções artísticas também tensionam as fronteiras do que pode ou não ser apresentado como arte. Os trabalhos da Galeria, representada por Guilherme Borsatto, Karen Elaine Spencer e Maria Baigur, incorporam elementos da vida cotidiana. Da mesma forma, o artista residente desta edição, que ocupou o Instagram da revista entre os dias 07 e 18 de novembro de 2022, Leonardo Lopes, elege como elemento estético de sua produção objetos que foram descartados na urbe. Seus desenhos são produzidos a partir das cinzas obtidas pela queima de parte desses objetos, integrando, assim, a materialidade do que foi rejeitado.
Uma novidade desta edição é o Dossiê Laboratório Feminista, organizado pela professora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo Talita Trizoli. Com colaborações de Camila Nader, Camila Savoi, Cristiane Novais, Ludmila Britto, Carolina Kasting e Kauam Pereira, o dossiê discute questões de gênero na arte, destacando os desafios enfrentados numa sociedade patriarcal.
A partir do conteúdo publicado no Nº18 da revista, buscamos ampliar as reflexões sobre o acesso à cultura. Boa leitura!
Camila Savoi, Renata Santini e Talitha Motter
REVISTA ARTE CONTEXTO
REFLEXÃO EM ARTE
ISSN 2318-5538
V.7, Nº18, MAR., ANO 2023
ACESSO À CULTURA
Capa: Leonardo Lopes, Sem título, 2022, carvão e pastel seco sobre papel, 120 x 120 cm (detalhe)
CITAÇÃO
Para falar de acesso à cultura no Brasil, eu poderia começar apresentando dados de indicadores culturais dos últimos dez anos: quase 90% dos municípios brasileiros não possuem salas de cinema, 75% não tem teatro ou salas de espetáculo, 72% não possuem museus e 63% carecem de centros culturais (IBGE). O Brasil perdeu, de 2015 a 2020, quase 800 bibliotecas públicas (SNBP). Em complemento, apenas 32% dos brasileiros admite gastos com cultura, o que torna os eventos gratuitos a preferência para a maior parte da população (JLeiva e Datafolha). […]
O relato acima serviria a uma distopia de contornos tão macabros que, se descrita em um livro de ficção, seria acusada de exagero. É claro que o contexto de arte e cultura no Brasil não se reduz aos espaços considerados nas estatísticas, ele irrompe de muitos lugares e se multiplica em diferentes cenas. Mas, tratando especificamente do enredo mencionado, proponho abordá-lo a partir de outro olhar: o da insistência na ativação dos espaços culturais com a prática da escrita e da ficção.
O ACESSO À CULTURA NO BRASIL OU QUANDO A DECADÊNCIA DOS ESPAÇOS CULTURAIS TOMA O CENTRO DE UMA POÉTICA
GALERIA ARTE CONTEXTO
Os três artistas da Galeria desta edição estabelecem relações entre arte e cotidiano. As fotografias das faixas com a frase “Esse Momento” do projeto de Maria Baigur indicam uma ambivalência entre algo que ocorreu no espaço público e o que é apresentado pela foto, sem o controle da artista. De forma semelhante, apresentamos um recorte do trabalho “movin‘ the charter” de Karen Elaine Spencer, que é acionado pelo grupo “janedoes”. Um painel contendo a sentença “toda pessoa tem direito ao respeito de sua vida privada”, do Código de direitos e liberdades do Québec, foi transportado pelos participantes do grupo para que a mensagem fosse apresentada nas ruas de Montreal. O grupo, que se apresenta de forma anônima, com seus rostos encapuzados, realiza um jogo com a escrita estilizada, de difícil leitura. De outro modo, Guilherme Borsatto pensa o cotidiano ao incorporar em seu trabalho fragmentos do contexto doméstico que poderiam ser facilmente encontrados em muitas moradas. A partir da série “Bolo de Coca-Cola”, nos questionamos como as imagens de outros se conectam com as nossas memórias. Esses trabalhos promovem uma vivência mais próxima com as práticas culturais, para além dos espaços institucionalizados.
DOSSIÊ LABORATÓRIO FEMINISTA
Entre abril e maio de 2022, foi realizado de modo totalmente independente um Laboratório de Crítica e Historiografia Feminista da Arte, em que participaram artistas, pesquisadores, professores, tanto mulheres quanto homens CIS, interessados em ler textos icônicos para a área de arte e feminismo. Ao longo de oito encontros foram discutidos ensaios, artigos, textos curatoriais e entrevistas de teóricas e teóricos feministas, ligados ao campo da história e da crítica de arte, desde a inaugural Linda Nochlin, passando por Pollock, Giunta, Simioni, Nelly Richard, Xabier Arakistain entre outras e outros. Muitos desses textos seguem ainda sem uma versão adequada em língua portuguesa, o que revela um sintoma da ineficiência da classe editorial local que já se arrasta por anos a fio, apesar do crescente interesse de uma nova geração de jovens mulheres comprometidas com as pautas políticas dos feminismos.
Talita Trizoli