INTRODUÇÃO

O interesse pelo tema “voz na contemporaneidade” surgiu na vivência como aluno do curso de Licenciatura em Música com habilitação em canto, na Universidade do Estado de Minas Gerais, justamente por não ter tido contato com esse tipo de música naquele período. De início, cabem aqui considerações preventivas. A terminologia “música contemporânea” pode ser encontrada na literatura musical aludindo à música de concerto dentro do universo erudito, como se vê em Neves (2008), Oliveira (2007), Becker (2008), Lovaglio (2010), Valente (1999). Por outro lado, a definição de contemporâneo, segundo o dicionário online Michaelis, é mais ampla: “Adjetivo: 1) que é do mesmo tempo; que vive na mesma época; coetâneo, coevo; 2) que é do tempo atual. Substantivo masculino: 1) homem do mesmo tempo; 2) homem do nosso tempo”. Seguindo essa definição, a produção musical criada nos tempos atuais, originada das composições do cenário musical popular, também pode ser chamada de contemporânea. Tal estado de coisas gera um segundo significado para o mesmo termo.

Por compreender que as definições do que é contemporâneo na arte, e como consequência na música, é um tema controverso e que foge do foco desse trabalho, basta esclarecer que este artigo trata especificamente da música vocal de concerto inserida no contexto erudito. Na bibliografia que trata do assunto, há uma variedade de nomenclaturas: “música nova”, “música experimental”, “música incidental”, “música de vanguarda” e “música contemporânea”. Todos esses termos se referem à corrente composicional que timidamente começa a ganhar espaço nas primeiras décadas do século 20 e atinge seu ápice produtivo a partir dos anos de 1950 até os dias de hoje. Zampronha (2011) coloca que tal “corrente composicional musical é heterogênea e multifacetada. Portanto, seria um erro reduzi-la a um nome ou aos nomes das técnicas composicionais que a construíram”. Então, por se apresentar mais abrangente e por ser mais usual dentre os demais citados, apenas o termo “música contemporânea” será usado daqui em diante.

Como mencionado, a partir do século 20 (de maneira mais efetiva no período pós-década de 1950), a forma de pensar e de fazer música de concerto passa por um processo de renovação e experimentalismo. Essa mudança surge da tendência de esgotamento do pensar composicional tradicional no Ocidente. Junto às várias técnicas de composição (serialismo, dodecafonismo, atonalismo, música eletrônica, música aleatória, música eletroacústica, música concreta, etc.) que surgem na Europa e nos Estados Unidos e que se espalham pelo mundo, tal esgotamento forma um novo conceito de “fazer musical”. Dentro desse contexto, a voz, bem como todos os referenciais de qualidade vocal (perpetuados pela supremacia do Bel Canto italiano, das técnicas cantábiles da melodie francesa e do lied alemão, além dos aspectos estéticos da voz barroca e clássica), passou por um processo substancial de reformulação de valores. Nesse novo cenário experimental, o legato, fio condutor da linha melódica vocal, não se faz necessário. O cantar apoiado nas vogais, buscando uma unidade de timbre ao longo das alturas musicais, perde espaço para, por exemplo, o Sprechgesang (voz falada) de Shoenberg, que, em sua obra-marco Pierrot Lunaire (1912), segundo Valente (1999), sistematiza uma nova técnica de emissão vocal em toda a peça. A autora cita que a linha cantável, para Shoenberg, devia se submeter à parte rítmica e que os cantores não deviam se expressar de uma forma que lembrasse o canto tradicional.

Outros parâmetros vocais que perderam significado nesse novo cenário musical de experimentação foram a altura sonora e a emissão vocal pura. Os jogos intervalares — ora consonantes, ora dissonantes — que traziam a chamada musicalidade à obra, bem como a procura por uma emissão vocal que evitasse sons não musicais (voz soprosa, ruídos, gritos, sussurros, estalos de língua) perderam seu prestígio. Um novo cenário vocal surge, o que, para Storolli (2013, p. 1), é influenciado pelo futurismo e pelo dadaísmo, trazendo consequentemente a referência do ruído urbano para o universo vocal.

Essas mudanças cooperam para o surgimento de uma voz que abandona os padrões de uma impostação tida até então como ideal, do Bel Canto, e se deixa povoar por gritos, sussurros, gemidos, sons guturais, assobios, estalos de língua, e muitas outras possibilidades do aparelho fonador. Para essa nova situação são inicialmente determinantes o movimento dos futuristas e dadaístas, ainda no início do século, movimentos que denunciam uma nova paisagem sonora, a paisagem urbana-industrial. A presença cada vez mais constante de máquinas e a revolução tecnológica transforma a paisagem sonora, nossos ouvidos e nossas vozes...

A instrumentação nas obras contemporâneas é outro fator que é drasticamente desconstruído em relação ao formato consagrado da música vocal tradicional. A voz constrói uma relação com sons computadorizados e artificiais, que assumem, muitas vezes, o papel dos músicos acompanhadores na performance vocal. Como a função de acompanhamento é pouco requerida nas obras vocais contemporâneas, os instrumentos (oboé, flauta, violino e outros) antes pouco utilizados em parcerias com a voz devido ao seu caráter solista ganham maior espaço nas obras vocais, o que promove uma revolução nos referenciais de escuta e execução dos cantores. As obras vocais contemporâneas, agora essencialmente camerísticas, desprendem-se de um consagrado fiel escudeiro: o piano, um instrumento que sempre esteve presente na vida do cantor como referência para afinação e como parte do resultado sonoro final. O cantor molda seu timbre e impostação vocal de acordo com o que ouve, e a ausência do piano muda categoricamente a forma com que constrói sua emissão vocal. Ray e Mestrinho, em trabalho apresentado no 16º Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (2006, p. 1039), colocam:

A presença do piano é constante na formação do cantor erudito, até por exigência do repertório comumente solicitado pelos programas de ensino: vocalizes, “árias antigas”, canções de câmara e até árias de ópera, são tradicionalmente acompanhadas por um pianista correpetidor. Tal fato justifica a grande familiaridade que o cantor tem com o piano, dentro de uma tradição que consolidou este instrumento como parceiro da voz no lied alemão, na melodie francesa, e na canção de câmara em geral. Dentro do ensino tradicional do canto lírico, praticamente não se trabalha a voz em sala de aula sem o piano.

O CENÁRIO ATUAL

Ainda é restrito para professores, alunos, performers e para o público em geral o acesso à música contemporânea. Embora Minas Gerais tenha tradição na composição de peças contemporâneas escritas para cantores, tendo sediado vários encontros de compositores e festivais, como se constata em Lovaglio (2010), as performances de obras contemporâneas vocais nos dias de hoje são raras. Tanto em ambiente acadêmico quanto de modo geral na oferta musical fora da universidade, as produções camerísticas e operísticas ainda privilegiam, de forma contundente, a música tradicional. Levanta-se aqui a hipótese: Deve haver uma fissura na relação compositor/metodologia de ensino/performance. Como existem compositores interessados em compor dentro dessa nova estética musical embora haja pouca produção performática, o processo de transmissão de conhecimento que liga o compositor ao intérprete da obra deve ser revisto. O professor de canto, especificamente, deveria compreender os recursos técnicos dessa nova realidade vocal, de modo que esse processo de transmissão de conhecimento poderia ser feito pelo professor através do ensino da técnica vocal, de conceitos estéticos do estilo e da notação musical que, muitas vezes, não segue o padrão tradicional. Ao se confrontar esse problema de realidade com a bibliografia sobre metodologia de ensino da música vocal, fica nítida a carência de referência bibliográfica que trate da metodologia do ensino da técnica vocal usada nas obras contemporâneas.

Diante do exposto, cabe acrescentar que os estudos sobre música contemporânea são recentes, a maioria deles ainda em nível de trabalho acadêmico. Em levantamento bibliográfico, encontrou-se muita informação histórica e biográfica, como em Neves (2008), abordagens focadas nas técnicas composicionais (atonalismo, serialismo, música eletrônica, etc.), levantamentos de repertório e eventos em música contemporânea, como em Lovaglio (2010), trabalhos com foco na relação da voz com o corpo, como em Becker (2008). Porém, embora esses sejam trabalhos importantíssimos para contextualização do tema, não se alinham diretamente com a pedagogia vocal. Há também trabalhos sobre performance vocal contemporânea em Valente (2008) e Storolli (2013), que apesar de serem contundentes análises dos novos parâmetros vocais que se estabeleceram na música contemporânea, bem como das correntes estéticas que surgem no mundo vocal, não abordam também o aspecto didático dessa “nova voz”.

O cenário no qual se encontra a música vocal contemporânea em Minas Gerais sugere a necessidade de difundir as obras desse gênero até mesmo entre a própria comunidade de cantores e professores. Essa difusão passa necessariamente pelo ensino desse repertório, e, como mencionado, não há disponível uma clara metodologia de ensino para tal. As universidades, que são os pilares do conhecimento, não incorporaram a música vocal contemporânea em sua rotina. A título de exemplo, não consta ainda, nos programas de habilidades específicas dos vestibulares das duas principais universidades mineiras que oferecem o curso de música (Universidade do Estado de Minas Gerais e Universidade Federal de Minas Gerais1), a exigência de execução de peças contemporâneas. Não consta também a oferta de acesso a esse tipo de peça nos programas de repertório da disciplina de canto tanto dos cursos de licenciatura quanto dos cursos de bacharelado das universidades citadas acima.

UM OLHAR CRÍTICO SOBRE A PEÇA QUANDO EU MORRER DE AMOR, PARA BARÍTONO E PIANO TEMPERADO, DO COMPOSITOR MINEIRO GUILHERME NASCIMENTO

Composta entre 2007 e 2008 em Belo Horizonte, a peça Quando Eu Morrer de Amor, de Guilherme Nascimento, foi uma encomenda dos músicos Eládio Perez e Berenice Menegale. Por se tratar de uma obra composta por um compositor que reconhecidamente trabalha com a música contemporrânea na cidade onde vivo, pela facilidade de acesso ao áudio e partitura da peça e pela possibilidade de dialogar com o próprio compositor sobre ela, é que tal obra foi escolhida para este estudo. Sem um viés de análise musical, buscou-se identificar nessa obra elementos característicos da música vocal contemporânea.

Para tal, utilizaram-se a partitura da peça,2 o áudio e as suas instruções de execução, que estão disponíveis no site do autor e nesse artigo. Já no início das intruções que o autor deixa aos intérptretes, nota-se que não há um pulso definido na peça, uma vez que há um pedido de que as barras de compasso atuem apenas como guia.


 

O autor não exige uma afinação precisa, como é de costume na música tradicional de concerto. Abaixo, uma instrução para que o performer utilize quartos de tom no lugar de semitons.3


 

Como mencionado anteriormente, o papel do piano nas peças vocais contemporâneas também não é o mesmo que no Bel Canto. Na peça em questão, por opção do autor, o piano passa por uma preparação, a fim de modificar seu timbre.


 

Destaca-se aqui uma alteração na notação musical proposta pelo compositor já nas instruções de performance.


 

Destaca-se aqui um trecho em que o compositor pede que o texto seja falado aos invés de cantado, outro recurso valorizado nas peças vocais na contemporaneidade desde o Sprechgesang de Shoenberg.


 

Além dos exemplos pontuados acima, foi possível identificar na peça analisada, de forma menos explícita, características da música vocal do século 20. Na medida em que o compositor não estabelece uma pulsação para a peça, a execução da linha melódica quanto a duração das notas fica a cargo da criatividade do intérprete, condição muito comum nas obras vocais na contemporaneidade. Outro aspecto muito comum na vocalidade contemporrânea presente na obra em análise foi a ausência de acentuação dos tempos fortes da melodia vocal. Por essa condição, a condução do fraseado, além de não valorizar a precisão rítmica, também desconsiderava quais notas deveriam ser enfatizadas na linha do canto, o que fazia com que certas palavras do texto fossem enfatizadas, corforme escolha do intérprete, nas sílabas átonas. Essa concepção de desconstruição da regularidade métrica do texto é uma forte marca da voz na contemporaneidade.

CONCLUSÃO

No que tange o cenário da música vocal contemporânea, indentificou-se a necessidade de construção de um núcleo de conhecimento a partir de um olhar mais focado para o processo didático. Como mencionado anteriormente, os trabalhos levantados em língua portuguesa tratam prioritariamente dos aspectos técnicos dos novos recursos vocais, da conjuntura histórica que culminou no movimento contemporâneo, do levantamento de repertório, dos eventos que aconteceram tendo essa “nova música” como tema e do debate sobre as correntes composicionais que fazem parte da estrutura desse gênero musical. Deve-se, portanto, compreender melhor o processo de ensino da técnica vocal usada no canto contemporâneo. Através da peça Quando Eu Morrer de Amor, do compositor Guilherme Nascimento, identificou-se alguns elementos musicais característicos do movimento experimental que acometeu a música vocal de concerto no século 20. Mesmo conservando alguns aspectos da música tradicional, destacaram-se parâmetros não usuais no Bel Canto, como a afinação imprecisa, pulsação irregular, trechos falados, um piano preparado (visando a alteração do som), entre outros, como elementos de um “novo modo” de pensar a música.

1  Conferir o programa de vestibular da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Universidade Federal de Minas Gerais em: http://www.uemg.br/downloads/Manual_Especficas.pdf e https://www.ufmg.br/copeve/Arquivos/2015/vest_edital_ufmg2016.pdf .

2  Partitura e instruções da peça estão disponíveis em: http://www.guilhermenascimento.com/pt/home/.

3  Trata-se de fragmento das instruções do autor para performance da peça Quando Eu Morrer de Amor.

BECKER, Susie. A voz contemporânea. 2008. 213f. Dissertação (Mestrado Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

LOVAGLIO, Vânia Carvalho. Música contemporânea em Minas Gerais: Os encontros de compositores latino-americanos em Belo Horizonte (1986-2002). 2010. 322f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2010.

MICHAELIS, Dicionário online. Dicionário de português online. São Paulo: Ed. Melhoramentos, 2009. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?typePag=sobre&languageText=portugues-portugues. Acessado em: 24 maio 2016.

NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008.

DE OLIVEIRA, Nelson Salomé. A Música Contemporânea em Belo Horizonte na Década de 80. Cadernos do Colóquio, v. 1, n. 1, 2007.

RAY, Sônia; MESTRINHO, Malú. Música brasileira de câmara contemporânea: a voz em formações sem piano. Trabalho apresentado no XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM). Brasília, 2006, p. 1039-1044.

STOROLLI, Wânia Mara Agostini. Vozes performáticas: dissolvendo fronteiras. São Paulo. 2013. 13 f. Projeto (Pesquisa de Pós-Doutorado). Escola de Comunicações e Artes (ECA). Universidade de São Paulo (USP).

VALENTE, Heloísa de Araújo Duarte. Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio. 1ª ed. São Paulo: Annablume. 1999.

ZAMPRONHA, Edson. Música contemporânea... A música clássica do nosso tempo? Portal Concertino, 2011. Disponível em: http://www.concertino.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2215:musica-contemporanea-a-musica-classica-de-nosso-tempo-01 . Acesso em: 18 maio 2016.

ZILLE, José Baêta. Orientações e normas para escrita de trabalhos acadêmico-científico. Belo Horizonte: Esmu – Uemg, 2011.

Fragmentos das instruções de execução da peça Quando Eu Morrer de Amor.

Fragmentos das instruções de execução da peça Quando Eu Morrer de Amor.

Fragmentos das instruções de execução da peça Quando Eu Morrer de Amor.

Fragmentos das instruções de execução da peça Quando Eu Morrer de Amor.

Fragmentos das instruções de execução da peça Quando Eu Morrer de Amor.