Na parede, uma pintura de um animal atento está ao lado de um recorte de revista e de uma notícia de jornal sobreposta ao chassi de outra tela. Nesta (ou será em outra ainda?), olhos espreitam através de uma janela. As listras de uma zebra reverberam nas frestas de luz que atravessam uma cortina semiaberta. Em algumas das telas, reconhecemos o rastro deixado por fitas adesivas retiradas da superfície pictórica.
De memória, ao tentar descrever uma obra de Letícia Lopes,1 sei que me equivoco. Nesse exercício, misturo, aproximo elementos de determinados trabalhos com outros, de outras obras. Imagino, com isso, reencenar um pouco o processo da artista.
Em sua produção, Letícia lança mão de referências de diferentes fontes que, ao serem aproximadas, constroem narrativas visuais marcadamente abertas. Suas escolhas – imagens encontradas em revistas, jornais, livros de arte, folhetos ordinários, desenhos animados, entre outros – parecem obedecer uma regra baseada na atenção absoluta ao que essas figuras escondem em sua aparência ordinária. Deslocadas de seus contextos originais, recontextualizadas em novos conjuntos, transfiguradas em pintura sobre tela, revelam a angústia da imagem fotográfica, cada vez mais imediatamente produzida, consumida e descartada. Do seu jeito, comentam Walter Benjamin e suas reflexões sobre reprodutibilidade técnica.
Estamos falando de pintura. Mas não de uma sucessão de telas independentes, nas quais é possível reconhecer mais ou menos os interesses, os partidos e os modos de atuar da artista. Diante de nós, várias telas, umas bastante grandes, outras realmente diminutas, conformam, juntas, um único trabalho. São como obras-frase, escritas com imagens sobre telas. Assim como as palavras-chave de um texto, estas imagens possuem autonomia, mas se apresentam conectadas compondo um sentido articulado. No entanto, Letícia abre mão da autonomia expressiva de cada elemento de suas obras sem, contudo, apoiar-se de modo radical em sua força “coletiva”. Ao contrário, a artista chega inclusive a considerar uma certa variação na formação desses agrupamentos.
Essa conformação do trabalho – múltiplos conjuntos de telas – “soa” como algo ligado ao sempre renovado impasse da pintura enquanto possibilidade expressiva, uma constante histórica secular, digamos assim. Enfrentando esse problema, Rauschenberg, por exemplo, primeiro apagou um De Kooning – uma ideia de pintura – para, em seguida, desenvolver suas Combine Series, telas com tinta, animais empalhados, vassouras e outros objetos; já Warhol propõe pinturas de “não ideias”, imagens dadas de produtos industrializados como sopas, sabão em pó ou ícones da cultura pop. São obras que comentam a própria arte e a condição humana – confusa, esvaziada, explosiva, múltipla, mediada.
Com sua fluidez, os conjuntos de telas de Letícia também desdenham de si mesmos, da pintura enquanto categoria. Seus agrupamentos reivindicam uma existência sem deferência, na qual o que está em jogo é a aproximação de diferentes fontes imagéticas na construção de sentidos e significados permanentemente abertos.
Quem são os demônios e deuses da artista, como coabitam, no panteão de uma memória acumulada, Albrecht Dürer e Revista Vogue? Hanna Barbera e Jasper Johns? Marcel Mauss e Marcel Duchamp? Edgar Alan Poe e Daniel Galera? Da pintura à literatura, da cultura pop aos artefatos culturais pré-coloniais, as referências de Letícia Lopes parecem se equilibrar de modo instável em um jogo no qual uma se sobrepõem à outra, ao mesmo tempo que nela se apoia para se manter na partida.
Com quantas telas se faz uma pintura?