Curitiba, 2 de setembro de 2017
“Há algo no que fazemos e no que nos acontece, tanto nas artes como na educação, que não sabemos muito bem o que é, mas que é algo sobre o que temos vontade de falar, e de continuar falando, algo sobre o que temos vontade de pensar, e de continuar pensando, e algo a partir do que temos vontade de cantar, e de continuar cantando, porque justamente isso é o que faz com que a educação seja educação, com que a arte seja arte e, certamente, com que a vida esteja viva, ou seja, aberta a sua própria abertura” (Larrosa, 2016, p. 13).
O objetivo deste texto é apresentar a aposta da atual edição da revista Arte Contexto: a produção de Textos-Obra que André Winter Noble & Renata Azevedo Requião1 submeteram a este periódico nas respectivas edições: Colecionismos, acervos e tipologias como prática intelectual e artística;2 Entre arte e ciência;3 Práticas sistêmicas e os papéis do agente cultural;4 Sobre o que (quase) está5 e Pensar juntos/ Fazer juntos.6 Tal produção, que se caracteriza como “um investimento verbal de tipo epistolar”,7 possibilitou-me elaborar brevíssimas reflexões acerca do ato de escrever, ler, escutar, ver e acerca da possibilidade de uma conversação a partir de experiências com obras de arte, fundamentadas em textos de Jorge Larrosa.
Gostaria de, ainda no início de minhas tessituras, esclarecer que “compartilho nestas páginas certa experiência pessoal, pois afinal é para isso que servem as trocas de cartas”8 (ainda [e mesmo] que tenham sido endereçadas a outrem). Peço-vos desculpas adiantadamente (estou endereçando [o que era sem prévio aviso, agora, avisado está] minhas palavras especialmente a André e Renata), pois, por mais que eu tenha por costume, já há certo tempo, ler cartas de: escritores, artistas, cineastas e outros tipos, quando publicadas em livros — tais modos de escrita raramente acompanham meus dedos. Minto! Os e-mails tão frequentemente trocados assumem certo aspecto epistolar, mas parece-me que, na maioria das vezes, os resultados de tais produções não compartilham da mesma natureza. Há nas cartas escritas como cartas, a sobrevivência de uma ternura que os e-mails, quando escritos como e-mails (tão instrumentais, práticos e assertivos!), frequentemente não sabem guardar. No entanto, Andréan Renand (posso chamá-los assim, como se chamam?), e encorajado por seu projeto, me arriscarei. Estas linhas são uma carta endereçada a você(s)!
Ao ler as cinco cartas publicadas: Pequena carta a Elida Tessler, Pequena carta a Walmor Corrêa, Pequena carta a Frans Krajcberg, Pequena carta a Fan Ho, fotógrafo chinês e por fim Pequena carta a Marina Abramovich, a quem chamo Maria, corpo de todas as mulheres, passou-me a seguinte impressão: estaria contido nessas cartas um desejo de exclamar: isto que eu vi, viu você também? Ou, confirma minhas sensações diante e suas propostas de experiência? Tudo isso atravessado pelo árduo trabalho de transcrição (inscrições em trânsito de uma linguagem à outra, ou seja, do intraduzível), e pergunto-me se uma carta seria então o puxar de um fio que desacomode a tessitura lisa e acabada, tencionando o fio da linguagem. Seria uma carta uma tentativa de conversação?
Quando leio e releio essa produção textual que procura, como quem tateia, abordar (e o faz) as obras dos artistas a quem tais cartas são endereçadas, sinto e penso e peso: parece-me que alguém fez-falou e alguém foi visto-ouvido! E fez-se possível crer ainda que há caminho possível para essa passagem. No momento em que escrevo estas palavras, encontram-se sobre a escrivaninha e diante dos meus olhos, a versão impressa e cheia de anotações nas entrelinhas, deste grupo de cinco textos-obra que apresentam e assumem uma possibilidade de escrever sobre certo tipo de experiência: a experiência com a obra de arte. Escolho a palavra “possibilidade”, pois creio que (posso falar por nós?) nosso desejo seja o de ampliar os modos de formulação destas relações, de produzir novos modos. Fazer ressoar as palavras. Por que escrever é por em crise, em jogo, o que se sabe. Reconheço que minhas palavras oscilam por distâncias e proximidades, que abro e fecho os assuntos, os parênteses e as notas de rodapé, mais do que o desejado para a efetividade e transparência da comunicação. Mas ocorre que tuas palavras, Andréan Renand, fizeram ressoar em meus ouvidos as palavras de outra pessoa, que já fora mencionada no início desta carta: Jorge Larrosa, e que já discorreu sobre várias das questões aqui abordadas. Larrosa propõe inventarmos uma língua para a conversação. Permita-me transcrever uma parte deste texto:
“Para podermos nos falar precisamos falar e escrever, ler e escutar, talvez pensar, em nome próprio, na primeira pessoa, com as próprias palavras que são ao mesmo tempo de todos e de ninguém. Falar (ou escrever) com as próprias palavras significa se colocar na língua a partir de dentro, sentir que as palavras que usamos têm a ver conosco, que as podemos sentir como próprias quando as dizemos, que são palavras que de alguma maneira nos dizem, embora não seja de nós de quem falam. Falar (ou escrever) na primeira pessoa não significa falar de si mesmo, colocar a si mesmo como tema ou conteúdo do que se diz, mas significa, de preferência, falar (ou escrever), a partir de si mesmo, colocar a si mesmo em jogo no que se diz ou se pensa, expor-se no que se diz e no que se pensa. Falar (ou escrever) em nome próprio significa abandonar a segurança de qualquer posição enunciativa para se expor na insegurança das próprias palavras, na incerteza dos próprios pensamentos. Além disso, trata-se de falar (ou de escrever), talvez de pensar, em direção a alguém. A língua da experiência não só traz a marca do falante, mas também a do ouvinte, a do leitor, a do destinatário sempre desconhecido de nossas palavras e de nossos pensamentos. Ao contrário dos que falam (ou escrevem) para ninguém ou para estranhas abstrações, como o especialista, o estudante, o expert, o profissional, ou a opinião pública, falar (ou escrever) em nome próprio significa também fazê-lo com alguém e para alguém” (LARROSA, 2016, p. 69-70).
São lindas essas palavras, não? Desculpe-me a longa transcrição, mas não contive o desejo de compartilhá-la contigo. Já conhecia?
Nos últimos tempos, as palavras de Walter Benjamin são outras que não me saem da cabeça, quando este lança a questão em um texto de 1917 sobre o que afinal se manifesta na linguagem. Benjamin diz que, o que se manifesta na linguagem é a essência espiritual da própria linguagem, e que esta manifestação se dá, não através da linguagem, mas na própria linguagem (BENJAMIN, 2013, p. 52). Portanto, o modo de escrever, de dizer as palavras, importa.
Andréan Renand, uma das lições (e gostaria que esta palavra também fosse considerada no sentido de outro texto de Larrosa9) que guardo da experiência com a leitura de tuas cartas é que aquele que se põe a escrever, arriscar-se no trabalho de escuta e escrita e aquele que lê uma carta lê como quem ouve seu escritor. É somente com ouvidos retrospectivos que as cartas podem ser lidas. Encontro em tuas cartas o desejo de compartilhar experiências vividas, de lançar um farol sobre certos aspectos descobertos diante das obras que menciona, de, uma vez tocado pela experiência, dar vazão a isto que não cabe sozinho. Sinto que há um espaço aberto para mais em suas cartas, entre suas palavras. E aqui estão as minhas, tecidas nas entrelinhas do que fora lido e vivido.
Obrigado!
Abraços,
Emanuel Monteiro