Ao longo da história, fomos levados a crer que a arte deveria se materializar em objetos, e que nós enquanto fruidores, deveríamos contemplá-los, admirá-los. A frase “proibido tocar as obras de arte”, comum em espaços expositivos, nos separa – inclusive corporalmente – das obras, e reafirma uma arte hierarquizada.
Porém, alguns artistas apresentam trabalhos cuja potência é justamente subverter essa hierarquia, promovendo encontros horizontalizados entre a arte, o homem, e seu entorno. Aqui, a arte se torna um espaço, uma ação, uma experiência.
Esse tipo de abordagem pode ser encontrada nos trabalhos de Hélio Oiticica, artista brasileiro cuja produção, desde o Neoconcretismo do final dos anos de 1950, já tinha intenção de viabilizar/demandar uma maior participação de seus espectadores. “Começando em 1959, minha obra passou a assumir o experimental. [...] Conceitos de pintura, obra de arte acabada e contemplação desintegram-se simultaneamente.” (OITICICA, 2010, p.104). Na primeira mostra neoconcreta do MAM-SP, em 1959, ainda trabalhando com pintura, Oiticica já apontava para a centralidade da participação corporal na obra, ao pintar ambas as faces dos quadros, pendurados no espaço para que o espectador transitasse entre eles, sob eles ou sobre eles. (MARTINS, 2010, p. 20).
Em 1964, Oiticica cria os Parangolés: blocos de cores e formas, texturas e textos se transformam em indumentários disformes, que os espectadores devem vestir para fruir, uma obra que tem o corpo como elemento constituinte. Permitindo uma quebra na postura contemplativa, tal alteração de percepção geraria ressonâncias também no contexto social, afirmando uma economia da ação e do pertencimento não hierarquizados. Se atentarmos para o fato de que os Parangolés foram apresentados no elitista MAM-RJ, dançados por moradores da favela e ao som de sambistas da Mangueira, evidencia-se a forte carga política que esses corpos trazem a si ao realizar tais ações.
Mais que um criador de objetos, nessas obras o artista atua como um propositor de ações, um ativador de experiências, cuja estética sensorial se completa na ação do outro. Nesse sentido, o foco do interesse desse artista deixa de ser objetivo e torna-se experimental. É o corpo do seu público que essa arte quer mobilizar, remexido ao ser atingido por uma arte que o chama a agir: “Parangolés (...) se tornavam extensões do corpo... estruturas que propunham um não teatro, um não ritual, um não objeto de arte”. (FILHO, 2010, p. 227).
De forma semelhante, encontramos na obra do argentino radicado na Tailândia, Rirkrit Tiravanija, uma preocupação em criar espaços que possam incentivar o público a se mesclar à arte e tornar-se parte integrante do processo artístico. Seu trabalho, que tem início nos anos 1990, derrete por completo as fronteiras entre espectador e obra, pois convida à participação informal, enquanto instaura um espaço de convivência. Dessa forma, “sua obra de arte se torna um lugar de negociação entre realidade e ficção, narrativa e comentário”. (BOURRIAUD, 2004, p. 51). O artista frequentemente planeja espaços que convidam à interação e à comunicação, como numa exposição em que fez uma réplica de seu apartamento em Nova Iorque. Durante o período da exposição, a instituição que abrigava o trabalho, a Kunstverein, em Colônia, permaneceu aberta dia e noite e era frequentada por pessoas de fora do mundo das artes, como se estivessem indo à casa de um amigo ouvir música.
Nessas obras, percebe-se claramente uma vontade de inventar novos vínculos entre a atividade artística e o conjunto das atividades humanas. A obra fornece uma narrativa, uma estrutura a partir da qual se forma uma realidade plástica: espaços destinados à realização de funções cotidianas do corpo – ouvir música, comer, beber, descansar, discutir, ler.
Em sua retrospectiva, no Museu de Arte Moderna de Paris, em 2005, Tiravanija apresentou um lugar vazio. Os visitantes, quando chegavam ao local, eram recepcionados por monitores que lhes explicavam algumas das ações artísticas que o artista havia realizado, gerando encontros em meio ao isolamento da vida contemporânea.
Conceituada pelo crítico francês Nicolas Bourriaud como “estética relacional” a arte como a produzida por Hélio Oiticica e por Tiravanija, produz modos de sociabilidade entre seus espectadores.
Diante dessas abordagens, pretende-se levantar uma estratégia de criação artística surgida com base na estética relacional, em que a própria configuração dos mecanismos de provocação se dá de modo colaborativo, provocando modos de sociabilidade entre os espectadores e também entre os próprios artistas.
Para ilustrar, falaremos do trabalho Performafunk idealizado pela autora do presente texto e realizado a partir da articulação de propostas de seis artistas, oriundos de diversas linguagens artísticas como dança, teatro de rua, vídeo, fotografia, música e artes visuais. Facilitando a interface entre as formas de fazer artístico e seus diversos modos de experimentação, esse projeto inaugura, na criação da obra, ao vivo e na rua, um espaço de convívio e de criação compartilhada.
Nesse caso, as próprias instâncias de proposição de modos de sociabilidade interagem entre si e (des)organizam-se, de modo a fugir do controle do criador e fazendo com que ele também se socialize em meio à constante transformação de sua obra. Em camadas que se sobrepõem, a provocação do artista nunca se sujeita a uma só forma, uma só função, um só meio. Em Performafunk, as obras são imprevisíveis, pois são alteradas pelo público e pelos próprios artistas participantes, nada é constante. A definição de autoria se dilui nos oceanos de interações e participações, todas convergindo a um único lugar: o corpo.
Território onde se proliferam, o corpo é o espaço de potência estético-politizante no fazer Performafunk. Realizado em locais escolhidos por serem densamente habitados e com intenso e contínuo fluxo de pessoas, as intervenções são absorvidas pela cidade e, a partir desse momento, ficção e realidade promovem valores coletivos cujos limites nem mesmo os artistas propositores previam.
Planos social e individual se manifestam, criando e desfazendo enredos, mediados pelo corpo. Por constantemente estar a subverter o estabelecido sem gerar novos estabelecimentos – nada se estabelece, tudo é processado e em processo – Performafunk problematiza os corpos, os coloca em contínua crise. É na falta de solução que o corpo se resolve – existência na experimentação. Dessa forma, assim como nosso inconsciente tenta, bem ou mal, escapar à fatalidade da história familiar por meio da psicanálise, essa forma de arte destaca os enredos coletivos e propõe outros percursos dentro da realidade.
Com ajuda da cidade, que materializa essas narrativas impostas, essa arte instaura um espaço singular de posturas subvertidas ou reinventadas, configurando o que Deleuze e Guattari conceituam como “Corpo sem órgãos”.
Consideremos os três grandes estratos relacionados a nós, quer dizer, aqueles que nos amarram mais diretamente: o organismo, a significância e a subjetivação. [...] Ao conjunto de todos os estratos, o CsO opõe a desarticulação, (ou as n articulações) como propriedade do plano de consistência, a experimentação como operação sobre este plano (nada de significante, não interprete nunca!), o nomadismo como movimento [...] O que quer dizer desarticular, parar de ser um organismo? [...] Desfazer um organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões. (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 34).
Nesse sentido, é o uso do corpo e o uso do mundo que permitem criar novas narrativas. Não existe, de um lado, a criação viva e, de outro, a contemplação passiva da historia dos objetos. Os artistas em questão não estabelecem uma diferença entre seus trabalhos e os trabalhos dos outros, nem entre seus gestos e os de seus observadores.
Percebemos, ao longo da análise de obras de Hélio Oiticica, Rirkrit Tiravanija e da intervenção urbana Performafunk, quer seja na dessacralização do objeto de arte, seja na inclusão do corpo às estruturas artísticas, ou na proposição de novos enredos sociais, que a modernidade cria um estado não intelectual de criação artística.
Assim, alimentada pela participação coletiva, essa nova arte se utiliza de formulações éticas e estéticas que priorizam a participação livre e criativa, o experimento sensorial e corporal. Acessível a todos, o corpo na arte torna-se um lugar extremamente político, pois a participação de cada um é que vai dar sentido à obra. Nas palavras de Oiticica: “a imaginação pessoal e a participação corporal é o que resta e será a libertação de tudo: convencionalismo, opressão social, domínio individual, etc.” (FILHO, 2010, p. 64).
Essa nova arte centrada no corpo funda as condições de comportamento livre numa sociedade de consumo dirigido. Se sofrer uma forma imposta chama-se, em política, ditadura, o que essa arte propõe se aproxima de uma democracia: cria bases sobre as quais possam surgir novos modos de habitar o mundo, numa constante negociação de papéis sociais, estabelecendo um regime político fundamentado pelo diálogo e pela tolerância.