Fazer uma arte que leve as pessoas
a uma relação afetiva com o mundo.
Hélio Oiticica 1



O tema “Por uma relação mais afetiva com os lugares que nos rodeiam” conduz meu projeto intitulado Alice e Floresta. A ação proposta nesse projeto envolve água, afeto e duas habitações: meu ateliê no Rio de Janeiro e a fazenda do pai da minha filha no sertão nordestino do estado de Pernambuco. O trabalho a ser realizado propõe uma ação: captar e armazenar água proveniente da umidade do ambiente do ateliê e levá-la ao sertão para o cultivo de um jardim. Essa ação é derivada do afeto que minha filha e meu ateliê produzem em mim. Mas é também fruto do desenvolver da minha produção artística, onde a temática “afeto” está sempre envolvida. Meu trabalho se manifesta dentro do âmbito familiar, em ambientes domésticos, trazendo questões como memória, tempo e afetividade. Surge então minha maior questão: o quanto o afeto pode ser um gesto artístico? Podemos pensar nele enquanto potência geradora de arte?



Moro na Rua Alice, em Laranjeiras, Rio de Janeiro, há 14 anos. Desde 2013, minha vizinha me aluga seu porão que uso como ateliê. A entrada é por uma porta amarela que se abre diretamente para a rua. Lá dentro, meu espaço de produção. O sol não penetra no ambiente. Dois desumidificadores transformam constantemente umidade do vapor de água em água de fato. Apesar de eles ficarem ligados todo o tempo, a umidade sobe a partir do chão, manchando livros, papéis e objetos. Brota também das paredes, desenhando mapas de fronteiras volúveis. Semanalmente, retiro litros de água condensada do ar pelos desumidificadores e despejo-os na pia.

A cerca de 2.000 km de distância do Rio de Janeiro fica Floresta, um município de Pernambuco incrustado no sertão, na região do semiárido brasileiro. Há três anos o Rio Pajeú, afluente do São Francisco, responsável pela irrigação da região, está seco. Cerca de doze mil pessoas são diretamente afetadas por esse estado de secura nessa região. O pai da minha filha mora em Floresta.



Todos os dias em que despejo a água recolhida no meu ateliê, penso na seca que impede a proliferação do verde e da vida no sertão de Pernambuco. Lá não chove há três anos, enquanto no meu ateliê, “chove” sem parar.

Tenho como projeto engarrafar essa água que brota do ar no Rio de Janeiro e é condensada pelos desumidificadores e levá-la ao sertão, para regar a plantação de um jardim. A proposta é que a ação de engarrafar a água, levá-la ao sertão e regar o jardim seja fotografada por mim. Como imagens, o cenário amplo e horizontal do sertão seco em paralelo ao universo íntimo, restrito e úmido de um ateliê de artista. A falta de verde versus as paredes cobertas de hera. Enquanto a viagem ao sertão não acontece, crio imagens dentro do meu ateliê.

O que considero afeto nesse projeto não é o que entendemos simplesmente por sentimento. Penso aqui como afeto o que Spinoza propõe em seu livro Ética: “por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (2009, p.99). Resumidamente, o afeto é a relação entre dois corpos, nos quais e pelos quais a potência de agir é aumentada ou diminuída, provocando assim, respectivamente, alegria ou tristeza. Cada indivíduo, pensado como um modo singular de existência é afetado e afeta outros corpos incessantemente em suas experiências. Gilles Deleuze comenta Spinoza da seguinte forma: “Todo modo de pensamento enquanto não representativo será chamado de afeto. Uma volição, uma vontade, implica, a rigor, que eu queira alguma coisa; o que eu quero, isto é objeto de representação, o que eu quero é dado numa ideia, mas o fato de querer não é uma ideia, é um afeto, porque é um modo de pensamento não representativo” . Ou seja, o afeto aqui proposto é da ordem daquilo que não é representativo, mas presente, atuante e determinado pela relação entre dois corpos. Minha filha me afeta assim como meu ateliê. Minha filha me provoca alegria. O sertão seco me provoca tristeza.

Pensando, nas relações existentes em meu projeto até o momento, a relação com o sertão e com o pai de minha filha é sustentada somente pela minha relação afetiva com ela. Ou seja, minha relação com o sítio nordestino existe enquanto existe meu vínculo afetivo com minha filha e com meu ateliê, que é o espaço íntimo que fornece a matéria para a ação artística proposta. O gesto artístico aqui é estimulado pela relação com minha filha e materializado na ação de captar a umidade transformada em água do meu ateliê e engarrafá-la pensando na seca do sertão, que afeta minha filha diretamente e a mim indiretamente.

O quanto cada um desses espaços pode contribuir para esse gesto afetivo? Uma hipótese pode apontar para a diferença entre o dentro e o fora. O dentro como o espaço do ateliê, da casa, protegido da rua, mofado e úmido, versus o espaço natural do sertão, amplo, sujeito às forças da natureza que dita suas regras. O espaço íntimo pode ser apontado como produtor de afetividade que gera e expande esse afeto para o mundo. No caso do espaço do ateliê, um espaço com excesso de uma matéria geradora de vida. “A casa é sempre um núcleo de afeto, é uma fábrica de construção de afeto”, diz a artista Brígida Baltar (CANTON, 2009, p.69). Proponho meu ateliê enquanto casa, enquanto abrigo, moradia, espaço de habitação. Em seu texto Construir, habitar, pensar, Martin Heidegger estabelece uma relação entre o construir e o habitar. “Ambos os modos de construir -construir como cultivar, em latim, colere, cultura, e construir como edificar construções, aedificare - estão contidos no sentido próprio de bauen, isto é, no habitar.” (HEIDEGGER, 2002, p.127). O habitar não se limita a uma habitação, no sentido de uma moradia, mas estende-se na medida em que o espaço construído é palco para a vida. Habitamos a casa, a rua, o bairro, a cidade, habitamos também os espaços que surgem das relações que estabelecemos com os outros. Habitar é a nossa forma de estar no mundo e a partir desta forma construímos a realidade que nos circunda. Da mesma palavra do alemão antigo, buan, que significa habitar, deriva a palavra construir, e também as palavras permanecer, morar, e ser. Assim habitar, em seu vigor de essência, revela a amplitude de seu significado. Não somente construir é habitar, habitar é a maneira pela qual somos sobre a terra, e mais, o homem é à medida que habita. (HEIDEGGER, 2002, p.125-141). Assim, minha filha habita o sertão mesmo quando não está lá fisicamente, e eu, afetada por ela, também. No sentido de construir, habitar envolve, ao mesmo tempo, cultivo e crescimento. O cultivo de uma roseira no sertão passa a ser visto então como uma construção, que conforme nos fala Heidegger, engloba também uma habitação. Porém, uma habitação no fora, no espaço não controlado da natureza, sujeito às suas intempéries, e nesse caso, com escassez da matéria água. Penso no espaço dentro como doador e no espaço fora como receptor. Ambos edificados pelo mesmo gesto afetivo inicial.



A água que baseia todo o processo artístico e de pensamento deste projeto brota do ar e se transforma no estado líquido através da ajuda de aparelhos desumidificadores. Não sai de torneiras nem de canos. Não atravessa paredes e complexos sistemas de abastecimento. Ela brota do ar, da umidade constante de um ambiente. É uma modulação da matéria água que se apresenta aqui como um elemento em transformação capaz de impulsionar um gesto artístico advindo do afeto. Ou seja, parte da proposta é gerar e manter vida num ambiente amplo e natural com toda sua imprevisibilidade. Minha coleta de água tem “serventia” concreta: regar uma roseira no sertão e outra no meu ateliê. Em recente matéria publicada no jornal O Globo, em 9 de agosto de 2013, a jornalista Cleide Carvalho disse: “Como se não bastasse a falta de chuvas, o Brasil vê se alastrar no Nordeste um fenômeno ainda mais grave: a desidratação do solo a tal ponto que, em última instância, pode torná-lo imprestável. Um novo mapeamento feito por satélite pelo Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites da Universidade Federal de Alagoas (Lapis), que cruzou dados de presença de vegetação com índices de precipitação ao longo dos últimos 25 anos, até abril passado, mostra que a região tem hoje 230 mil km² de terras atingidas de forma grave ou muito grave pelo fenômeno”. Planejo uma ação que tem uma finalidade clara, porém incerta. O jardim construído sobreviverá à seca do ambiente árido do sertão?

1  FILHO, Cesar Oiticica. Encontros, Hélio Oiticica. Rio de janeiro, Azougue, 2009, p.77.

2  Disponível em: http://goo.gl/ywnX0w

CANTON, Katia. Espaço e Lugar. Col. Temas da Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia Prática. São Paulo: Escuta, 2002.

FILHO, Cesar Oiticica. Encontros, Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Azougue, 2009.

HEIDEGGER, Martin. Construir, Habitar, Pensar. In: ______. Ensaios e Conferências. (trad.) Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes. 2a ed. 2002.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. (trad.) Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

1  Claudia Tavares, Alice 1606 - Floresta s/nº, Rio de Janeiro, 2014.

2  Claudia Tavares, Alice 1606 - Floresta s/nº, Rio de Janeiro, 2014.

3  Claudia Tavares, Alice 1606 - Floresta s/nº, Rio de Janeiro, 2014.

4  Claudia Tavares, Alice 1606 - Floresta s/nº, Rio de Janeiro, 2014.

5  Claudia Tavares, Alice 1606 - Floresta s/nº, Rio de Janeiro, 2014.