1. Porto Alegre e o Guaíba
O lago Guaíba está diretamente ligado à memória e à imagem da cidade de Porto Alegre, presente nas discussões sobre planejamento e gestão urbana, nos temas de mestrados e doutorados, além de ser objeto de estudo dos ateliês de projeto arquitetônico e urbanístico desenvolvido nas universidades do Estado do Rio Grande do Sul. Além disso, o Guaíba constitui um modo de dizer, falar e reconhecer Porto Alegre marcado nos cartões postais, fotografias, músicas, poesias.
A relação entre cidade-rio e rio-cidade pode ser identificada através dos estudos de Souza e Müller (1997). A partir desses estudos, observou-se que o lago Guaíba constituiu um importante elemento geográfico para a implantação do núcleo formador da cidade. Historicamente, o período de metropolização em Porto Alegre ocorreu a partir de 1945. Na década de 1960, a cidade e seus municípios vizinhos passaram a formar um todo orgânico que reclamava de iniciativas e soluções metropolitanas. Conforme o censo de 1970, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Porto Alegre possuía 885.545 habitantes e a estimativa para 1980 era de 1 milhão de habitantes. Assim, conforme a cidade cresce, o lago continua se deteriorando, perdendo a sua balneabilidade.
Na década de 1970, a construção do muro da Mauá tornou-se uma barreira física e visual afastando a relação do lago com a cidade. Segundo o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), o muro foi construído a fim de evitar catástrofes semelhantes à enchente de 1941. A partir desse fenômeno, no final da década de 1970 e durante a década de 1980, a cidade tenta reaproximar a população do Guaíba através da criação do Parque Marinha do Brasil e do Parque Maurício Sirotsky Sobrinho (Parque Harmonia), possibilitando a utilização de áreas públicas para recreação junto ao lago. No fim da década de 1980, surgiram projetos de despoluição das águas do lago como, por exemplo, o Projeto Pró-Guaíba . Na década de 1990, o Centro Cultural da Usina do Gasômetro, o Cais do Porto com programações permanentes e efêmeras realizadas ao longo da orla do lago, e posteriormente, a inauguração da Fundação Iberê Camargo em 2008, também estão aproximando o contato visual com o lago e possibilitando o uso e a ocupação do espaço público.
No entanto, enquanto a população ocupa as margens do Guaíba através das práticas sociais, religiosas, atividades de lazer, esporte e/ou apenas contemplação da paisagem, a cidade está passando por um processo de modificação espacial e social, pautado numa visão neoliberal de cidade, oriundo dos exemplos de planejamentos estratégicos que visualiza a cidade como mero negócio (VAINER, 2000). Essa atitude fez com que a população se manifestasse contra os encaminhamentos do setor público, uma vez que, a lei orgânica do município estabelece que “os interesses da iniciativa privada não podem se sobrepor aos interesses da coletividade” . É a partir desse contexto que este artigo tem por objetivo identificar, expor, explorar através de um ensaio a ideia de acolhimento usando as bordas do lago Guaíba como parâmetro afetivo no uso e na apropriação do espaço público. Nesse sentido, este artigo será dividido em quatro partes: discussão preliminar sobre as bordas de água, abordagem das relações de acolhimento, identificação das relações de acolhimento através das bordas de água do Guaíba e considerações (não) finais.
2. Falando de bordas de água
As bordas de água neste trabalho fazem referência à interface cidade-água entendida como um limite entre dois espaços, mas que ao mesmo tempo, permite ação mútua e trocas entre ambos (cidade-água, água-cidade). As bordam também aparecem enquanto limites nos estudos de Kevin Lynch (1960) sobre a Imagem da Cidade, constituídos por duas regiões distintas, que configuram quebras lineares na continuidade. Esses limites são aqueles que, além de constituírem barreiras visuais, são concebidos como obstáculos físicos, sem permeabilidade à circulação, mas também podem apresentar qualidades espaciais diferenciadas (muito larga ou muito estreita), tratamento intenso de vegetação e serem visíveis de outras partes da cidade, ou possibilitarem amplos visuais de e para outras partes da cidade.
A definição de borda também aparece enquanto um extremo ou uma margem de algo, ou seja, pode ser entendida como um confim no qual se verifica um limite, perfil ou figura que fecha uma forma, gerando um fecho perimetral. Segundo Arroyo (2007), no espaço urbano, as bordas podem gerar um fenômeno que se registra tanto na ordem física da cidade como na ordem simbólica: uma via marginal não só implica o limite entre a terra firme e a passagem à água como também um encontro entre cidade e natureza. Na literatura americana o termo borda aparece como edge – extremidade de um caminho, onde as diferenças podem ser vistas e sentidas pela variação de gabarito horizontal e vertical, adensamento, tipos e quantidades de espécies (BROCANELI, 2008). Porém, também é usado como waterfront (margens de água) para designar espaços que tiveram intervenções arquitetônico-urbanística, como é o caso de Baltimore nos EUA, objeto de investigação de David Harvey (1996). Segundo Zaú e Freitas (2007) são as bordas criadas pelo homem que vêm gerando grande preocupação para o planejamento e a gestão das cidades.
No campo filosófico, as bordas aparecem de forma abstrata, virtual, enquanto traço invisível, indivisível que separa o dentro/fora e, que ao mesmo tempo, pode constituir o não fora e o não dentro. Segundo Derrida (1978) o dentro/fora está relacionado à figura do parergon, ou seja, uma moldura que possui interrupções e que permite pensar os limites tanto nas artes quanto no campo das ciências sociais aplicadas. Nesse sentido, o parergon abre uma possibilidade de problematizar os elementos que constituem o “fora” e o “dentro”, permitindo questionar os (não) limites geográficos propostos para as bordas de água, supostamente, marcados pelo projeto, como algo que não tem limite, nem início centro e fim, que está em constante devir, desconstruindo o desenho enquanto regulador e limitador dos espaços urbanos. Esse entendimento é importante porque permite questionar as consequências e efeitos dos projetos urbanos contemporâneos, não somente para o trecho de borda que foi implantado, mas para a unidade de vizinhança, bairro, usuários e, assim por sua vez, para a cidade.
Dessa forma, pensar as bordas de água a partir da aproximação da Filosofia com a Arquitetura e Urbanismo, abre uma possibilidade para identificar as características imateriais que não são pautadas no planejamento usual de bordas de água. Essas características poderiam estar vinculadas às formas, não somente desenhadas pela arquitetura e o urbanismo, mas pelo maciço de áreas verdes, nos cheios e vazios urbanos, no desenho das calçadas e esquinas tortas e pela animação urbana (JACOBS, 2000). Além disso, pensar a imaterialidade é também dizer sobre cheiros (mata, terra, esgoto, fumaça), cores (texturas), luzes (brilho, transparência, sombras, opacidade), sons (água, animais, carros, pessoas passando, passos, manifestos em prol da proteção ambiental) e pessoas que se apropriam e dão significados múltiplos ao lugar.
Buscando romper e problematizar as novas formas de ocupação das bordas de água, impostas por um modelo de cidade neoliberal e que utilizam as características físicas (topografia, áreas verdes, solo, clima), legais (leis ambientais e urbanísticas) e as formas de ocupação da população (lazer, esporte, turismo, comércio e habitação) enquanto potências à acumulação de capital, este trabalho pretende inserir os usuários e suas relações de afeto e acolhimento com as bordas de água que independem de intervenções projetais. Nesse sentido, faz-se necessário abordar conceitualmente as relações de afeto e acolhimento com a cidade para depois identificar estas relações a partir de fotos, imagens e desenhos sobre a orla de Porto Alegre.
3. A ideia de acolhimento no contexto urbano
Segundo Fuão (2012) acolher é abrir, dar passagem, ser acolhedor mais que físico, é uma questão ética. A ideia de inclusão, acolhimento, passa pela hospitalidade, o hóspede que hospeda , acolhe, cuida, espera, aceita a diferença. A partir da vontade da hospitalidade, tudo pode ser ressignificado para hospedar, ser acolhedor, um viaduto, uma passarela, um gesto, um abraço, um sorriso. Toda hospitalidade que se recebe é encontro, encontrar-se, ser aberto a tudo e a todos.
Curiosamente, a hospitalidade coloca o tema do espaço não no espaço, mas no indivíduo (FUÃO, 2012, p.49). Portanto, hospitalidade, como sinônimo de acolhimento, é cuidar, amar, é incondicional. No caso das cidades, especificamente das bordas de água, o acolhimento também ocorre através das extravagâncias do amor do pedestre por suas margens, seja através de sua singularidade física, pelo lugar público, que proporciona lazer, esporte, cultura ou pelo simples motivo de oferecer potência de encontros, descobertas, lugar de identidade e reconhecimento a partir do outro, território de todos, lugar de possibilidades e acontecimentos. É a partir da abordagem de acolhimento, das relações de hospitalidade e de encontros que esse ensaio volta-se, descrevendo e identificando as formas de acolhimento através da paisagem, da geografia, de visuais que se relacionam com os desenhos das bordas de água das cidades e dos afetos gerados pelo seu reconhecer.
3.1. As formas de Acolhimento
Conforme Fuão (2012), a ideia de acolhimento pode ser representada pelas formas côncavas, nas dobras onde se encontram o gesto de abrigo, proteção, o abraço, é a concavidade ulterior que recebe. Imagética e morfologicamente são os limites da natureza, construídas a partir de suas bordas. Diferentemente das extensas praias são as enseadas e as baias. Caracterizadas pelas curvaturas construídas pela ação da natureza.
Assim, como a curvatura da colher que guarda em si algo, o acolhimento é a dobra do corpo tensionado que recebe o outro. Fuão (2012) coloca que a dobra nasce como evento ao produzir as formas da espera, esperança para que o acolhimento à hospitalidade se realize. A dobra não tem lado, ela é o entre, o meio e está nos dois lados ao mesmo tempo. Sua imagem será um fractal, reflexo do outro, nem dentro nem fora. Assim, a dobra não é sinônimo de acolhimento, pois ele não está na dobra, mas ela expressa a ideia de acolhimento, pois através da dobra ocorre a abertura, a possibilidade de chegada dos outros, para Levinas essa abertura é o acolhimento (FUÃO, 2012).
O acolhimento pode estar em todo lugar, está nos encontros da natureza, nas relações entre a água e a terra, nas suas bordas, nos limites que configuram uma enseada e/ou a margem. As flexões de dobra sobre a natureza constituem as margens que se configuram em duas leituras: a primeira quando o fechamento sobre si leva à fissura, ao talho, à fresta, à abertura para o mar, acolhendo em sua interioridade. E a segunda leitura, quando se fecha totalmente, tornando um lago ou uma ilha, como gesto supremo de recolhimento, de guardação da terra ou da água.
As bordas de água podem ter um sentido de espera, de contenção, no qual a natureza se mostra como gesto de acolhimento natural, incondicional, pois todas as características da natureza se veem reunidas e guardadas uma em relação às outras. A partir do diagrama de acolhimento (Figura 1) observa-se que a forma côncava, diferentemente das linhas retas que negam a dobra, não possui lados, pois constitui o todo, aquilo que está próximo, ao lado e/ou junto. A partir do centro da forma côncava é possível ter a mesma visão das bordas, de forma compartilhada, ao contrário de uma forma linear que não tem uma noção de totalidade. Na borda, ocorre o enfrentamento dos limites do um com o outro. Ao contrário do caminho, da caminhada, da errância que faz deslocar, experimentar como gesto de movimento, a enseada propicia à contemplação, ao recolhimento (FUÃO, 2012).
Essas diferentes formas geográficas que acolhem e dão abertura à dimensão humana por sua concavidade expõem a fissura, a fenda, o encontro com a natureza do ser representada pelas suas formas: baia, enseada, a forma V ou U, abertura, estreito e meia lua. A partir da descrição das formas de acolhimento visualizadas através da geografia, buscou-se realizar um ensaio, um estudo empírico a partir da experiência como usuário. Observando as relações de afeto e acolhimento a partir da constituição física e social nas bordas de água do lago Guaíba, em Porto Alegre/RS.
4. Identificação das relações de acolhimento através das bordas de água do Guaíba.
A identificação das relações de acolhimento nas bordas de água do Guaíba, em Porto Alegre/RS, foi realizada a partir de colagens que mesclaram fotos aéreas, imagens do google street view, croquis e fotografias de registro pessoal. As fotografias foram realizadas a partir de um percurso iniciado na Usina do Gasômetro (centro histórico e marco referencial da paisagem de Porto Alegre) até Ipanema (bairro da zona sul). O objetivo desse percurso foi registrar os modos de uso e de ocupação da população através das questões afetivas geradas pela geografia do território.
Representado por mapas e diagramas, o percurso estrutura-se em oito setores elaborados a partir das formas geográficas e seu poder de atração pela ideia de acolhimento. Dessa maneira, o ensaio organiza-se em três diagramas (que são formas de representação e de leitura): o primeiro expõe a definição dos setores por meio de imagens aéreas e a geografia do acolhimento (Figura 2), o segundo procura, por meio de imagens do percurso, explorar a experiência do usuário e o uso esse faz dos espaços de bordas (Figura 3), e o último, um diagrama conceitual ou mapa do acolhimento das formas de interação, foi construído a partir dos afetos gerados pela paisagem do território da água (as flexões de dobra e as relações de hospitalidade), conforme a Figura 4.
A partir da análise da geografia das margens, considerando as formas de acolhimento, definiram-se os setores como espaço de espera e acolhimento (setor 2, 4, 6, 8) e de continuidade e errância (setor 1, 3, 5, 7) (figura 2).
Num segundo momento, questões imagéticas dos lugares como forma de experiência foram analisadas a partir do percurso dos setores, gerando um diagrama conceitual ou um diagrama de forças da paisagem e expondo os lugares de permanência e de passagem (figura 3).
E por fim o mapa de acolhimento e hostilidade, de forma a retratar as possibilidades de afetos geradas através da paisagem (borda) e a apropriação pelo homem (figura 4).
5. Considerações (não) finais
As relações da cidade com o lago passaram por alterações, ao longo da sua evolução urbana, através dos períodos de ocupação, consolidação e metropolização. Embora possam ocorrer mudanças espaciais e sociais na orla da cidade, oriundas do início da implantação do projeto Cais Mauá, os porto-alegrenses mantêm forte identificação com a água. Essas relações são identificadas através das músicas, poemas, manifestações políticas e a partir do uso e da livre ocupação dos espaços públicos (lazer, cultura, esporte, religião).
A imposição dos novos usos para a Orla do Guaíba só foi conhecida pela comunidade através da primeira e única audiência pública solicitada pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio Grande do Sul (IAB-RS) à Câmara de Vereadores de Porto Alegre, que ocorreu em outubro de 2013. Outra grande polêmica do projeto refere-se ao alargamento do sistema viário, utilizando a praça em frente ao Gasômetro para estacionamento, removendo árvores e moradores de rua que ficam sob as instalações do aeromóvel (desativado) e a criação do shopping center no lugar da marina pública, que tem uma das vistas mais privilegiadas do pôr-do-sol do Guaíba (orgulho dos gaúchos).
A partir dos diagramas, observou-se que as formas geográficas que abrem e ou encerram paisagens criam espaços de permanência e de passagem que independem de infraestrutura de pavimentação e/ou presença de equipamentos urbanos, mas está relacionada com a paisagem e com as relações de afeto que a população tem pela orla, possibilitando o uso democrático e inclusivo nas bordas de água. Em outras palavras, observa-se que as formas de planejamento, que é pautado por uma organização técnico-racional do território, e a implantação dos grandes projetos urbanos, tomando como exemplo o Projeto Cais Mauá, não são e nem serão detentores e controladores do espaço de borda de Porto Alegre.