No primeiro semestre de 1970, nos Estados Unidos da América, Miles Davis lançou o icônico álbum Bitches Brew. No segundo semestre, Santana lançou o álbum Abraxas. Os tempos eram de efervescência política e cultural no país e estes dois álbuns podem ser compreendidos como sintomáticos do momento em que foram produzidos. De um lado, o trompetista negro bem-sucedido conduzindo o jazz a uma forma quase irreconhecível, desafiando os conhecedores e apreciadores do estilo a acompanharem os mais de 80 minutos de música. Do outro, a banda do guitarrista Carlos Santana, composta por negros e latinos, misturando rock psicodélico com uma pitada de jazz e ritmos caribenhos. Entre esses dois trabalhos há o pintor Mati Klarwein (1932-2002), que produziu as obras que se tornaram capas para cada álbum. Este artigo procura analisar a relação entre a capa e a sonoridade de cada álbum, procurando identificar uma unidade entre música e imagem, assim como pensar a capa de disco enquanto suporte para a obra do artista.
O som de Bitches Brew
O cenário musical já havia sido abalado anteriormente por outros lançamentos do artista, como The Birth Of The Cool, que propunha novas formas de jazz. Porém, nenhuma novidade foi tão intensa quando o álbum lançado no primeiro semestre de 1970, Bitches Brew, do já famoso Miles Davis. Nas palavras de Ralph J. Gleason,1 o álbum o atingiu como um choque elétrico (DAVIS, 1970). O crítico escreve para a parte interna da capa do disco em estilo beat, aparentemente em fluxo de consciência, e fala sobre o álbum e sobre a música em geral. Em um momento, afirma que
Música elétrica é a música desta cultura e na ruptura (não na quebra) das formas previamente assumidas um novo tipo de música está emergindo. Toda a sociedade está assim. As formas antigas são inadequadas, não as velhas e eternas verdades, mas as velhas estruturas. E música nova não é nova também neste sentido, ela ainda é criação que é vida em si mesma e só pode ser feita de novas maneiras com novos materiais. (GLEASON in. DAVIS, 1970, encarte).
A partir deste fragmento de seu texto, podemos destacar algumas questões do álbum. Primeiramente os novos materiais. Miles Davis já vinha eletrificando sua banda. A tradição dos instrumentos necessariamente acústicos já não parecia interessar o jazzista que conta com mais de um tecladista para tocar piano elétrico, John McLaughlin para a guitarra elétrica e um baixista adicional tocando baixo também elétrico, além de ter dois bateristas e mais alguns percussionistas tocando simultaneamente. A essa época, o rock já havia se tornado elemento forte da contracultura, diversas bandas embalavam a juventude em canções produzidas por potentes amplificadores e a guitarra se tornara um símbolo da identidade cultural jovem. Trazer alguns desses elementos para seu jazz representou uma potente expansão de suas possibilidades criativas dentro do que o crítico parece considerar a sonoridade da época.
A sociedade em agitações vertiginosas: direitos civis ainda negados aos negros em diversos Estados do país, os jovens construindo uma cultura de afronta ao tradicional conformismo americano, baseada na liberdade do corpo e da mente (sexo e drogas), manifestações contra a guerra e, principalmente, a ofensiva norte-americana contra o Vietnã. Dentro desse contexto, sua música também se rearticula. O disco duplo abre com duas longas faixas mais soltas em sua forma. Pharao's Dance e Bitches Brew ocupam cada uma um lado inteiro do primeiro disco. Aproveitando a extensão do LP (disco long-play) de cerca de 22 minutos em cada lado, o artista faz com que a carga de timbres e frases melódicas, tão variada e de coesão frágil, seja compreendida pelo público. Ou o ouvinte se esforça ativamente para identificar alguma ordem lógica nas faixas musicais, ou se entrega a elas sem oferecer resistência.
Essa complexidade coloca o álbum em um nível altíssimo, porém sem perder elementos do jazz que permitem a entrega e o acompanhamento por parte do público que já tem certa familiaridade com o estilo. A partir de Spanish Key, momentos de maior coesão tornam a escuta mais confortável. Porém, a tônica do álbum, os múltiplos timbres e fraseados, permanecem selvagens. Selvagem tanto no sentido de agressivo quanto de vasto. Não é só o trompete, é um conceito, ainda citando o mesmo texto de Gleason. Conceito este de expansão que pode ser facilmente associado às experiências de ampliação da consciência conduzidas pelo psicólogo e escritor Timothy Leary (1920-1996) a partir de ácidos com efeitos psicodélicos. E ao movimento hippie. E a outros tantos jovens adeptos da contracultura no país. A música de Miles neste álbum entra em contato com o que tantos artistas estavam fazendo no rock. É a construção de uma sonoridade que rompe com o convencional das fórmulas caretas. A improvisação e a composição livre são a base do processo.
O som de Abraxas
Após o primeiro álbum, Carlos Santana e sua banda já desfrutavam de crescente prestígio entre os jovens e a cena do rock psicodélico nos Estados Unidos. Este segundo álbum, lançado no segundo semestre de 1970, apresenta a banda de músicos ainda jovens, porém com um refinamento no que diz respeito à criação e à incorporação de ritmos e de elementos que não costumavam ser integrados ao rock desta maneira. Em um mesmo ambiente social que Miles Davis, as mesmas forças agindo sobre a sociedade e a insurgência de grupos contraculturais, porém outro gênero musical. Rock. Em comparação com o maduro negro que mudou o jazz no mesmo ano, uma banda de rapazes ainda jovens, com um contrato recente com a gravadora Columbia e uma carreira que parecia andar rápido. Com o primeiro disco lançado em 1969 e uma participação no épico festival de arte, cultura e música de Woodstock no mesmo ano, o grupo construiu um segundo álbum mais rico e que, apesar de não revolucionar a música como fez Bitches Brew de Miles Davis, causou impacto e mostrou-se um forte exemplo da miscelânea de elementos e possibilidades que a contracultura já poderosa permitia e defendia.
O álbum abre com a faixa Singing winds, crying beasts (ventos que cantam, bestas que choram). Um piano soa ao som do vento e do tilintar agudo de metais. A guitarra surge melódica e suave acompanhando o piano, e os pratos da bateria soam crescentes. Começa a tumbadora com o ritmo que lembra algo entre o latino e o africano, algo tribal. O piano permanece com toques de guitarra e a sonoridade sugere um ambiente exótico, com brilhos e cores e segredos. É uma introdução instrumental para o resto do álbum, que trará misturas harmonizadas de maneira consistente.
Rock com salsa, rock com latinidade e pitadas, inclusive, de jazz. É o que Santana constrói em Abraxas. E cada elemento dessa mistura é explorado com competência, se mostrando mais cuidadoso e maduro que o primeiro álbum do grupo. As letras falando em mulheres negras, feiticeiras, romances, ritmos diferentes. E a presença vigorosa de bongôs e tumbadoras reforçando a área da percussão. Prrrrrrrrrrr, sabor! Oye Como Va abre sua melodia que quase escapa do rock e, dançante, apresenta letra em espanhol a um público que fala o inglês como língua materna. Os solos de teclado e guitarra mantêm a referência da psicodelia do rock ao qual a banda se associa, e a experiência multiétnica é completa.
Na faixa seguinte, Incident At Nashbur, a música começa selvagem, rápida, para logo cair em modulações que destacam o rock da banda. E, sem ser possível apontar exatamente onde e quando, estamos ouvindo algo de jazz bem pronunciado. Diversos sotaques em uma música abrangente e ampla que, por volta da metade, cai em outras levadas de percussão, quebras que mantêm a harmonia até uma sequência mais branda e delicada, seguindo assim até o final. Aqui temos, talvez, junto com a introdução, uma ótima definição do álbum concentrada em apenas duas faixas.
Mas, claro, a amplitude deste cuidadoso projeto não se resume a essas faixas. Cada canção apresenta e aprofunda determinados elementos. A mistura de timbres e estilos exigiu, certamente, muito cuidado na produção do álbum. Como quando destacar um ou outro instrumento, a exemplo da percussão que toma a frente de Se A Cabo,2 repicando e ricocheteando precisa e enérgica. Em Samba Pa Ti, que não se trata de samba apesar do título, Carlos Santana desenvolve uma bela melodia de guitarra ao longo de toda a música, sem cair em fraseados repetitivos, soando mais como frases, como a letra da canção com seus versos que se sucedem sem ficar em repetição contínua.
Em suma, o álbum trabalha com diversidades sonoras, culturais, e quebra o que seria o rock puro ao permitir a entrada de ritmos e instrumentos latinos, harmonizando diversidade sem hierarquias. O cuidado com os múltiplos sons se faz presente neste álbum assim como o de Miles Davis, indo além do tradicional formato básico do rock: uma bateria, uma guitarra — ou duas — e um baixo elétrico. Quando esses rapazes resolvem introduzir mais elementos percussivos e piano elétrico com efeitos, a qualidade da gravação e da mixagem exige mais atenção. Colorido e múltiplo, Abraxas acontece como um marco para o rock da época e, quando visto individualmente, mantém a relevância e a beleza de um disco bem composto e bem gravado por garotos que, apesar de jovens, estavam convictos e dominavam os conceitos com os quais queriam jogar.
Mati Klarwein nas duas capas
Quando falamos de arte, corremos o risco de cometer bobagens, como a de acreditar que o que está representado pelo sistema legitimador de museus, galerias e academias é o que merece ser levado em consideração, o que é bom e importante — ou, igualmente bobagem, que por estar representada nessas instâncias, a arte é elitista e excludente, o que também não é verdade. Polarizar essa questão é sempre problemático uma vez que a arte pode usar de diversos meios e sentidos para se fazer relevante, para se conectar às pessoas, e não é o meio que deverá determinar a qualidade de sua produção ou relações possíveis.
Matias Klarwein e suas pinturas não são famosas no mundo sistêmico da dita alta arte ou arte acadêmica, inclusive, talvez por uma questão de estilo. Mati, como era conhecido, produzia imagens que podem ser identificadas formalmente com o surrealismo. Nos anos de 1970, a abstração e a desmaterialização da arte era o que estava em voga. Considerado desinteressante para a época pelo sistema das artes — ao que tudo indica —, Mati faz algo impactante e de acordo com as ideias contemporâneas ao se associar a músicos e usar a capa dos álbuns como um veículo poderoso para seu trabalho, atingindo públicos específicos interessados em criação, que fruem a obra em diversos níveis, mas com honestidade e sensibilidade diferentes das que geralmente são percebidas no circuito de museus e arte acadêmica. Após anos de viagens ao redor do mundo, conhecendo diferentes culturas exóticas para o ocidente, do qual o artista fazia parte (judeu nascido na Alemanha), Mati desenvolveu seu interesse por outras culturas e a representação surrealista nas artes . Isso poderia estar em desacordo com os valores das vanguardas artísticas que interessavam aos acadêmicos da época, mas foi ideal para expressões contraculturais do período que exploravam a ruptura e alteração das formas — nas artes — e do pensamento, entre outros pontos.
Importante criador de capas de disco desse momento explosivo, Storm Thorgerson escreveu sobre esta importante parte da produção artística com grande desenvolvimento nos anos 1960 e 1970. O artista afirma que antes da psicodelia, à exceção de muitos álbuns de jazz e alguns de música erudita, não havia projetos de capas de discos . Na realidade havia, mas não eram discursivos ou com estética voltada para o álbum, eram mais comerciais e sem pretensões artísticas. O que passa a acontecer é artistas visuais se associarem a músicos na criação dos álbuns, como o caso de Mati, enxergando na capa um espaço que não pode ser desconsiderado. E é essa exploração de uma unidade para os álbuns que o jazz e o rock psicodélico — e mais tarde o progressivo — conseguiram levar adiante a ponto de expandir o trabalho. Para Thorgerson, essa efervescência cultural marcada pela psicodelia permitiu que tudo fosse possível em termos artísticos, causando um florescimento da criatividade que tanto marcou essa época.
Em Bitches Brew, Mati Klarwein fez um trabalho especificamente para o álbum. Sua pintura é dividida ao meio em duas partes, correspondendo uma à frente e outra à contracapa. Com a capa aberta temos a continuidade da imagem que vai da esquerda, de escuridão e vastidão do universo estrelado, até a direita com a luz revelando a superfície da Terra, com nuvens de tempestade cobrindo parte do azul do céu. Entre ambas, duas faces de aparência africana fitam o horizonte: a negra para o dia/luz, a rosada — clara — para a noite/trevas. O jogo de opostos reverbera pela pintura, onde podemos ver uma figura com capuz à esquerda, solitária, em contraposição às duas figuras abraçadas próximas ao mar na direita. Duas mãos com dedos entrelaçados, uma afro e outra caucasiana; o mar separado do céu — mas unido por um trovão; uma flor em chamas bem abaixo das cabeças; uma figura com vestes exóticas e rosto pintado, com expressões afetadas e imenso cabelo afro.
A capa reflete a amplitude criativa do álbum, e a pintura surreal repete o que a sonoridade nos apresenta.
Sensibilidade essa que é um elemento fundamental da contracultura. Segundo Ken Goffman e Dan Joy, contracultura defini-se não por um programa objetivo e fechado, mas por algumas ideias que norteiam atitudes e relações, sendo algumas delas o desafio ao autoritarismo, a precedência da individualidade sobre as convenções sociais. Para isso, percebemos características recorrentes nas diversas possibilidades de contracultura: rupturas artísticas, científicas e espirituais, diversidade, comunicação verdadeira e profundo contato interpessoal — que acontece no cenário da música popular, aqui destacando rock e jazz (GOFFMAN; JOY, 2007, p. 50-58).
O trabalho que serve de capa para Abraxas não foi pintado especificamente para o álbum. É uma tela chamada Anunciação, de 1961. Carlos Santana viu a obra em uma reprodução e entrou em contato com o pintor para usá-la como capa do novo álbum da banda. Esse fato não configura um problema para o resultado final, para a unidade do álbum considerando-se a música e a imagem. A pintura apresenta diversos elementos juntos, elementos que podem ser explorados minuciosamente e que compõem uma imagem rica em variedades assim como o som. O aspecto exótico e selvagem está presente: a montanha e as árvores ao fundo, mulheres com trajes típicos de alguma comunidade africana ou andina (podemos supor), as flores e frutas características do novo mundo e do oriente, curvas de nível que parecem as usadas na agricultura dos povos andinos e que levam até uma aldeia e ao mar, monumento arquitetônico atrás das três mulheres à esquerda, o elefante com adorno de cabeça à esquerda. Estes elementos, compondo uma imagem com diferentes escalas e perspectivas (vista frontal da cena ao mesmo tempo que se percebe uma vista superior da aldeia litorânea), remetem ao surrealismo. O fato de todos estes elementos estarem escondidos, espalhados e sobrepostos na imagem a se misturarem induz a um olhar que viaje, que não fique estático em determinados pontos da capa porque todos os elementos se relacionam com seu entorno abarrotado.
E como cena que parece ser central e que foi selecionada na dobra da capa para ser a parte frontal, uma mulher negra com rosto expressando aparente devaneio, seios fartos, com uma pomba branca em frente à vagina e o que se assemelha a um ovo rachado próximo à sua mão direita. Voltado para ela está uma figura de um anjo, identificado assim devido às asas e aos sinais das mãos, apesar das cores do corpo e da fisionomia feminina. Montado em uma tumbadora, o anjo gesticula algo com uma das mãos e com a outra aponta para um símbolo acima, ou para o céu. Através de códigos amplamente populares onde o cristianismo é dominante, temos a pomba como sinal de pureza, do Espírito Santo, e na pintura ela se encontra cobrindo o sexo da mulher. O anjo gesticula algo, e indica um lugar, como o anjo da anunciação. O ovo próximo, tendo em vista esses elementos anteriores, parece indicar vida. Confirmado pelo título da pintura, nessa anunciação figura uma Nossa Senhora negra. As formas do código permanecem, porém são alteradas. O anjo de corpo caracteristicamente feminino, esguio e com seios, montado em uma tumbadora (instrumento de difícil associação com o divino na cristandade), anunciando para a mulher negra, com o símbolo da pureza entre as pernas. Essa articulação por parte de Mati Klarwein lembra o que Gleason falou sobre novas formas, sobre rupturas, e está em concordância com ideias e comportamentos contraculturais.
Conclusão
A virada dos anos de 1960 para os anos de 1970 foi um momento de intensa criatividade e criação. Novas maneiras de ver, compreender, interpretar e representar o mundo e as relações foram desenvolvidas por pessoas em diversas áreas, e a onda da contracultura aponta que todas elas tinham um objetivo em comum: tocar as pessoas. As descobertas e alternativas eram quase sempre aplicáveis a um público interessado. Independente desse levar menos ou mais a sério tais transformações, a música pode ser percebida como o carro chefe destas mudanças. Mais ainda que o consumo de drogas para expansão de consciência, a música uniu as pessoas em projetos variados visando integração e harmonia, diversidade e convivência. E, esteticamente, as mudanças nos álbuns, tanto musicais quanto visuais, ajudaram a criar uma identidade inclusiva para os movimentos. Apesar dos estereótipos, havia uma rica gama de comportamentos e práticas. Essa expansão de possibilidades foi demonstrada em Bitches Brew e Abraxas, lançados no mesmo ano.
Nesse contexto de transformações, Mati Klarwein, um pintor que não encontrou espaço no meio tradicional das artes, associou sua poética a músicos que desenvolviam essas rupturas e transformações se mantendo ligados diretamente a um grande público, potencializando seu trabalho e encontrando uma maneira de ser relevante a uma quantidade imensa de pessoas, articulando sua estética surrealista e psicodélica de modo a enriquecer a visualidade característica da contracultura da época.